Categorias: LITERATURA

Troféu Valkirias de Melhores do Ano: Literatura – Capítulo 1

Uma das maiores ensaístas do século XX, Joan Didion abre O Álbum Branco dizendo que “Para viver, contamos histórias a nós mesmos”. O livro é um compilado de ensaios, onde fala sobre a conscientização da quebra de narrativas pessoais e sobre a transição de uma época “segura” para uma onde a regra era não ter regra e nada parecia fazer muito sentido. Para além dos grandes questionamentos e observações de Didion, a frase de abertura do livro condensa todo o pensamento acerca da literatura, independentemente de época ou lugar: para viver, contamos histórias a nós mesmos. Dificilmente sobreviveríamos não fossem as narrativas – reais ou fictícias – a que nos apegamos para suportarmos o cotidiano. 2019 foi um ano particularmente difícil de suportar. No mundo todo, vimos a ascensão da extrema direita e, especialmente aqui no Brasil, o ataque às artes e às liberdades. Não é à toa que a ficção tenha ganhado papel central em nossas narrativas pessoais – quando a vida está difícil, nos refugiamos em histórias. E tivemos mulheres maravilhosas nos contando as mais diversas histórias neste ano.

De um reconto feminista da Pequena Sereia, passando pela biografia sentimental de uma banda de rock fictícia, por uma protagonista que prefere dormir a encarar o mundo e indo até uma história sobre a fuga de uma capivara que causou furor numa cidade do interior do RS, nosso ano foi repleto de emoções e narrativas que refletiram nosso mundo interno e foram nosso abrigo nos momentos mais difíceis. Aqui está a primeira parte do nosso Troféu Valkirias de Melhores do Ano, na categoria Literatura.

A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, Louise O’Neill

Por Thay

“Ali eu já costumava me perguntar por que minha mãe não tivera um final feliz. Talvez eles fossem reservados apenas às meninas obedientes.”

Se você foi criança nos anos 1990, provavelmente cresceu assistindo quantas vezes fosse possível o clássico da Disney, A Pequena Sereia. Ainda que tenha sido baseado no conto de fadas escrito pelo elo dinamarquês Hans Christian Andersen, a animação nos poupa de muitos detalhes torturantes e tristes, algo que não acontece na releitura de Louise O’Neill. Em A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, a sereiazinha do título é Gaia, uma jovem sonhadora, dona de uma beleza estonteante e uma voz poderosa que, completar quinze anos, Gaia recebe permissão para ir até a superfície ver de perto o mundo dos humanos. Não demora para que ela se deixe encantar por aquilo que vê além do mar e decida trocar sua voz em troca de pernas e um virar de lua para conquistar o amor e continuar a viver.

Embora a estrutura narrativa seja similar ao que já conhecemos do conto de fadas A Sereiazinha, aqui Louise O’Neill insere questões pertinentes aos dias de hoje, espelhando nosso mundo real no mundo da corte do fundo do mar. Em A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, sereias são meros adornos no reino subaquático, reféns das vontades do rei e dos tritões. A prosa de O’Neill é eficaz ao fazer com que a tristeza de Gaia transborde pelas páginas, nos fazendo sentir a dor e o desolamento da protagonista em cada uma de suas páginas. O desfecho do livro busca referências nas versões de Hans Christian Andersen e dos estúdios Disney, mas tem seu próprio plot twist, trazendo novidade à uma história já conhecida – e aí reside toda a maestria de Louise O’Neill. — Comprar!

Para saber mais: A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões; De Frente com Valkirias: Louise O’Neill

A Rede de Alice, Kate Quinn

Por Ana Luíza

“Não somos flores que florescem para serem colhidas e protegidas, capitão. Somos flores que florescem no mal.”

Durante a Primeira Guerra Mundial, Alice Dubois (codinome de Louise De Bettignies) foi uma das mais prolíficas espiãs aliadas ao serviço de inteligência britânico. Em uma França, ocupada por oficiais alemães, Alice desenvolveu uma rede com mais de cem agentes e colaboradores, fornecendo informações valiosas ao exército britânico. Estima-se que, com seus serviços, a chamada Rede de Alice tenha salvado a vida de mais de mil soldados entre janeiro e setembro de 1915, mas poucos hoje são os que conhecem seu nome ou o impacto de seus feitos na história do mundo.

É numa tentativa de recuperar sua importância história que Kate Quinn traça seu mais recente romance publicado no Brasil. A partir das trajetórias de duas personagens fictícias, a autora constrói uma narrativa que entrelaça a Primeira e a Segunda Guerra Mundial às perdas, dores e experiências das protagonistas — mulheres tão distintas quanto complexas. É um mergulho por um passado esquecido, em partes porque muitas mulheres não se sentiam confortáveis com os serviços realizados durante a guerra e envergonhavam-se das honrarias que recebiam na volta para casa, que nos permite conhecer o feito de mulheres como Alice e tantas outras, que abdicaram de si mesmas para salvar seus países, em uma história não apenas de coragem, mas de redenção. — Comprar!

Cat Person e Outros Contos, Kristen Roupenian 

Por Mia

“Mas não foi eu quem te magoou. Você fez tudo isso, não eu. Eu sou só — só — a ferramenta que você usou para se machucar!”

Quando o conto-título do livro, “Cat Person”, saiu na The New Yorker, em 2017, eu o ignorei. Raramente leio coisas no hype, prefiro sempre deixar o tempo passar para ter uma visão mais distanciada da leitura, não correndo o risco de ir na onda da emoção coletiva. Foi ótimo ter feito isso porque, quando o conto finalmente virou um livro, pude lê-lo com calma e apreciar o talento de Kristen Roupenian.

Perturbador pode ser uma boa escolha de palavra para definir os contos presentes em Cat Person e Outros Contos. O livro, que conta com doze contos ao todo, possui seus altos e baixos, mas me deixou uma impressão forte. Não foram poucas as vezes, durante a leitura, que travei num parágrafo e fiquei pensando sobre as cenas que a autora descreve e o medo que surge através das palavras dela. Medo também é uma boa palavra para definir as histórias presentes no livro. Tive reações físicas durante a leitura, cheguei a me encolher em algumas partes, me cobrir com o cobertor em outras e apertar as mãos, nervosa, esperando pelo desfecho. Apesar de existir ali contos cujo protagonista é homem, a maioria conta a história do medo presente em relacionamentos — medo que, em especial, mulheres sentem. A escrita é íntima e esquisita, de um jeito bom, nos fazendo mergulhar em um universo tão semelhante ao nosso que assusta, onde uma adolescente de doze anos é assediada por um cara bem mais velho e um homem se enxerga sempre como bonzinho, enquanto destrói as vidas de mulheres. — Comprar!

Circe, Madeline Miller

Por Thay

“Eu não fiquei surpresa com o retrato que a canção pintava de mim: a bruxa orgulhosa desfeita diante da espada do herói, ajoelhando-se e pedindo misericórdia. Humilhar mulheres parece ser um dos passatempos preferidos dos poetas. Como se não pudesse haver uma história se não rastejarmos e choramingarmos.”

Como uma fã incansável de mitologia, poder ter Circe em mãos foi um dos momentos mais felizes do meu ano enquanto leitora. Escrito por Madeline Miller, a ideia por trás da concepção de Circe foi, nas palavras da própria autora, criar um novo mito, um novo épico, para sua protagonista. Enquanto os deuses e heróis mitológicos receberam todo tipo de louvação e narrativas de tirar o fôlego, o mesmo não pode ser dito de suas figuras femininas algo que Madeline Miller se propôs a fazer ao contar a história de Circe, a feiticeira mais antiga da História.

Em Circe, acompanhamos a trajetória da protagonista desde sua infância na corte de Hélio, deus do Sol, sua relação com os irmãos, os gêmeos Pasifae e Perses, e o caçula Aietes, sempre tão diferentes dela, além das interações pouco amorosas entre ela e sua mãe, a ninfa Perseis. A sensação de não pertencimento que Circe sente desde a infância, e que a segue por toda a vida, é algo fácil de se relacionar. Madeline Miller cria uma história verossímil repleta de momentos que espelham as vidas de muitas mulheres, suas tristezas e alegrias, suas frustrações e descobertas, seus maiores sonhos e pesadelos. — Comprar!

Para saber mais: Circe: muito além de A Odisséia

Coleção Arquivos da Repressão no Brasil, Heloísa Starling (org.)

Por Jéssica Bandeira

“Se hoje o debate está centrado na possível interferência do Supremo em assuntos que não são de sua seara, no passado o tribunal não era visto por atores políticos como árbitro capaz de fazer cumprir sua missão de resguardar a Constituição. Enxergar o STF pelo retrovisor exige, inicialmente, esse enquadramento, sob pena de projetar no passado os vícios e as virtudes do tribunal inventado pela Constituição de 1988 e por seus integrantes.”

Com coordenação da historiadora Heloísa Starling, a coleção Arquivos da Repressão no Brasil foi um dos lançamentos mais significativos do ano, um esforço para que o conhecimento sobre a ditadura militar causou ao Brasil destrua qualquer ideia estapafúrdia de que seria uma boa termos um regime ditatorial de volta. A coleção é formada por quatro livros, dentre eles o de Laura Mattos, também citado neste especial. É interessante observar como as quatro obras são muito diferentes entre si, mas convergem no seguinte ponto: a ditadura militar estava em todas as esferas, de forma mais proeminente ou não.

Tanques e Togas, de Felipe Recondo, por exemplo, é um relato profundo sobre como o STF atuou a favor ou contra os interesses dos militares. Houve resistência em todos os setores, inclusive no Judiciário. O livro de Recondo nos mostra como os ministros do STF foram punidos por irem contra o regime militar. Já Lugar Nenhum, de Lucas Figueiredo, versa sobre a ocultação de documentos importantíssimos para compreendermos a ditadura. Por que muitos documentos ainda permanecem em segredo? O que ainda existe a esconder? Trata-se de uma obra muito interessante para pensarmos em que dita o que pode ser lembrado ou não. Por último e não menos importante, temos Os Fuzis e as Flechas, de Rubens Valente, que resgata a resistência indígena durante a ditadura militar. A participação do povo indígena na luta contra os militares é desconhecida de muitos de nós, e esse livro faz esse resgate mais do que necessário. — Comprar!

Daisy Jones & The Six, Taylor Jenkins Reid  

Por Mia

“Eu não tinha o menor interesse em ser a porra da musa de alguém. Eu não sou a musa. Eu sou esse alguém. E assunto encerrado.”

Eu adoro uma história de banda. Adoro. Fictícias ou não, bandas de rock são fascinantes. Não é à toa que tantos dinossauros do rock, embora velhos ou mortos, ainda arrastam uma legião de fãs de todas as idades, espalhados pelo mundo todo. Bandas são organismos vivos que se equilibram em uma linha fina entre o ego e o talento. Nem sempre as coisas dão certo mas, quando dão, é épico.

Ainda que a banda cuja biografia Taylor Jenkins Reid escreveu, Daisy Jones & The Six, não exista, eu me vi mergulhada naquele universo, desejando muito que ela tivesse existido para poder ser fangirl e escutar todas as músicas em sequência, sem parar. A autora claramente queria ter sido jornalista de celebridades pois, em seus dois livros publicados no Brasil, ela nos traz biografias de artistas inventados que, entretanto, são tão (ou mais) interessantes do que aqueles que, de fato, existiram. É assim com Daisy Jones, a protagonista do livro. Ela é uma força da natureza: selvagem, elétrica e perigosa. Criada meio solta naquela atmosfera groupie dos EUA na década de 1970, ela descobre suas palavras e sua voz e se coloca como cantora num mundo que enxergava mulheres como musas, não como artistas independentes, marcado pela presença masculina. É nesse ambiente que ela conhece os The Six, banda baseada livremente em Fleetwood Mac, e a parceria desenvolvida entre eles é simplesmente explosiva. É impossível começar a ler esse livro sem ser imediatamente envolvido naquela atmosfera do auge das bandas de rock. Mas, para além de uma boa história de música e personagens cativantes, temos mulheres incríveis que, entre erros e acertos, assumem quem são sem medo da represália. Um conto de fadas regado a sexo, drogas e rock’n roll. —Comprar!

Para saber mais: Daisy Jones & The Six não é uma banda real mas eu queria que fosse

Digo Te Amo Para Todos que me Fodem Bem, de Seane Melo

Por Anna Vitória

“E daria para ele do mesmo jeito. Ele ficaria com preguiça de vestir uma roupa e ligaria a TV. Então a gente assistiria a alguma coisa muito ruim por quase duas horas, até ele decidir que a gente podia estar assistindo algo decente.”

A primeira cena de sexo no romance de estreia de Seane Melo é um devaneio da imaginação de Vanessa, sua protagonista. O ato nem chega a se concretizar, mas é uma descrição tão satisfatória, carregada de um olhar feminino tão preciso, que o único jeito de deixá-la melhor é pela conclusão que a personagem faz ao fim de seu delírio: “Eu amo o João da minha imaginação.”. É exatamente esse tipo de detalhe que fazem da literatura de Seane algo tão especial. É literatura erótica da melhor qualidade, e ela é ótima em escrever cenas de sexo, mas o que realmente me atrai em Digo Te Amo Para Todos que me Fodem Bem e todos os seus trabalhos anteriores (muitos disponíveis no Medium) são, digamos, as preliminares, as pequenas observações sobre tudo que rodeia a vida sexual de uma mulher que se relaciona com homens no século XXI, da dinâmica confusa dos flertes por mensagem aos homens que são sempre melhores na nossa imaginação, o que não é uma cortesia da pós-modernidade.

O livro marca um período na vida de Vanessa a partir dos homens com os quais ela se relaciona, e se existe algo de comum em todos eles é a estranha dinâmica dos relacionamentos modernos e a famosa responsabilidade afetiva tanto discutida em textões e tweets nos últimos anos. Seane Melo não oferece respostas, e acredito que não seja essa sua intenção, mas o que existe de melhor nessa investigação é a revelação das dinâmicas de poder relacionadas a gênero que resistem e persistem, e são tão difíceis de capturar e entender, principalmente quando se é uma mulher disposta a abraçar os próprios desejos. Meses depois do lançamento do livro, Lana del Rey surgiu com seu Norman Fucking Rockwell e logo nos primeiros versos da faixa título vem um grito engasgado que certamente vai marcar época, praticamente uma paráfrase do título do livro em questão, numa letra que ressoa profundamente em tudo que Seane escreve, o que não é de longe uma coincidência. “Goddamn, man-child, you fucked me so good that I almost say I love you. You’re fun and you’re wild, but you don’t know half of the shit that you put me through.” [“Puta merda, seu homenzinho imaturo do caralho você me fodeu tão bem que quase disse que te amava. Você é divertido e selvagem, mas não sabe nem a metade da merda que me fez passar”, em tradução extremamente livre]

Quer saber que tipo de merda ela está falando? Leia Digo Te Amo Para Todos que me Fodem Bem. — Comprar!

Para saber mais: A literatura erótica de Seane Melo

Ela Disse, Jodi Kantor e Megan Twohey

Por Fernanda

“Um pouco depois da meia-noite, Megan e Jodi deixaram o escritório e dividiram um táxi até o Brooklyn. Permitiram-se pela primeira vez especular sobre as possíveis reações dos leitores. Megan imaginava que o conselho diretor da empresa de Weinstein ia se ver obrigado a tomar medidas contra ele, mas será que o resto do mundo ia se importar?”

O ano é 2016. O comportamento do candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump em relação às mulheres é escrutinado pelo New York Times; mais tarde no mesmo ano, o Washington Post tem acesso a uma gravação de áudio em que Trump sugere que, quando se é um homem famoso, pode-se fazer o que quiser com as mulheres, incluindo “agarrá-las pela b*ceta. Você pode fazer qualquer coisa”. Um mês mais tarde, Trump foi eleito presidente. O ano é 2017. O New York Times publica uma reportagem sobre uma prática recorrente do produtor cinematográfico Harvey Weinstein: pagar pelo silêncio de mulheres que o acusavam de assédio e agressão. O trabalho das jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey, também corroborado por uma investigação independente de Ronan Farrow para a New Yorker (com quem dividiriam um prêmio Pulitzer no ano seguinte), abre espaço para que novas denúncias sejam apuradas e reportadas, impulsiona o uso maciço da hashtag #MeToo nas redes sociais, transforma os Quebradores do Silêncio nas personalidades do ano da revista Time, colabora para o surgimento das ações do Time’s Up. O ano é 2018. Trump, agora presidente, indica o juiz Brett Kavanaugh para ocupar a cadeira vaga na Suprema Corte. A muitos quilômetros de distância de Washington, a professora universitária Christine Blasey Ford acusa o indicado de tentar estuprá-la quando ambos eram alunos de ensino médio. A Dra. Ford testemunha sob juramento diante do Senado, pede, através de suas representantes, que o FBI realize uma investigação de suas acusações, passa por um detector de mentiras. A nomeação de Kavanaugh é confirmada algumas semanas depois.

Em Ela Disse, Jodi Kantor e Megan Twohey se concentram principalmente sobre essa linha temporal para contar os bastidores da primeira reportagem que expôs as muitas décadas em que Harvey Weinstein se valeu de sua posição de poder para violar e silenciar mulheres sem sofrer qualquer consequência. As jornalistas trazem em seu livro os ataques de Trump às “fake news do New York Times” como pontapé inicial, e o verdadeiro périplo emocional da Dra. Ford como fechamento, a fim de explorar de maneira um pouco mais ampla o cenário em que sua reportagem se insere, mas é principalmente sobre o próprio fazer do jornalismo investigativo que reflete a maior parte dos capítulos. O trabalho, elas parecem insistir, pode até levar seu nome no cabeçalho, mas conta com muitas outras presenças invisíveis para garantir que seja cuidadoso, preciso, seguro para as fontes. E se ao jornalista cabe reportar com cuidado e seriedade, o livro também reforça o papel essencial das fontes — não só das muitas mulheres que romperam o silêncio sobre as violências que sofreram, mas daqueles que, como testemunhas, tinham o poder de fortalecer seus relatos, que inevitavelmente seriam questionados no momento em que se tornassem públicos. Ela Disse explora de forma bastante minuciosa o funcionamento do jornalismo investigativo e a carga de energia e tempo que ele demanda para que seja bem feito e possa, enfim, trazer impactos positivos. Ainda é cedo para dizer se as mudanças que o final daquele ano de 2017 parecia prometer já se concretizaram ou ainda se concretizarão, mas as jornalistas, através dos fatos subsequentes que reúnem no livro, parecem ter esperança para o futuro, apesar de tudo. — Comprar!

Enfim, Capivaras, Luisa Geisler  

Por Mia

“Vamos entrar no mato atrás de uma capivara potencialmente roubada, vamos no sentido contrário da civilização, que na verdade não é civilização, às dez da noite. Nenhuma ideia parece boa e essa é a pior de todas. Abro um sorriso.”

Não sei exatamente o que eu esperava ao ler Enfim, Capivaras, mas certamente não era o que encontrei. Pensei que seria um Young Adult (YA) brasileiro divertido e descontraído, o que ele é, mas não imaginei que deixaria uma marca tão forte na literatura nacional deste ano. Isso aconteceu porque, para além de ser uma história verdadeiramente escrita para o público jovem, sem apelos à moral ou lições, o livro foi censurado em uma Feira do Livro no interior do RS. O motivo? Palavrões e bebidas alcoólicas. O ano é 2019 e as pessoas estão cada vez mais conservadoras — ao ponto de acharem que jovens não bebem nem falam palavrões. Ver Luisa Geisler, uma escritora incrível, ser censurada definitivamente foi um dos momentos mais sombrios para a literatura na história recente do país. Mas, ao mesmo tempo, foi incrível ver a mobilização das pessoas contra a censura, o que acabou transformando a capivara fujona em símbolo de resistência.

Tirando uma eventual bebida e uns palavrões bem merecidos, Enfim, Capivaras é uma história simples e, justamente por isso, funciona muito bem. Através de 12 capítulos, cada um sob o ponto de vista de um personagem e durante uma hora específica, conhecemos o desenrolar da fatídica noite em que Vanessa, Nick, Zé Luís e Léo se reuniram para procurar a capivara perdida de Dênis, um amigo pero no mucho que vivia inventando histórias para parecer mais interessante aos olhos alheios. Falando sobre adolescentes reais, escolhas, descobertas e laços que podem não durar muito, mas nos marcam para sempre, o livro é perfeito para jovens que querem se sentir verdadeiramente representados. — Comprar!

Floresta dos Medos, Emily Carroll

Por Thay

“Ah, mas você precisa viajar pela floresta de novo e de novo… — disse uma sombra na janela. — E você precisa ter a sorte de evitar o lobo todas as vezes… Mas o lobo… o lobo só precisa da sorte de encontrá-la uma vez.”

O medo que uma criança sente ao apagar a luz do quarto antes de dormir, os ruídos estranhos que a casa faz de madrugada, as sombras criando desenhos estranhos na parede — todas essas sensações são evocadas pela narrativa e pela arte de Emily Carroll em seu Floresta dos Medos, graphic novel lançada pela DarkSide Books. Além de vir acompanhada pelo esmero característico da editora, Floresta dos Medos é aquele tipo de trabalho que enche os olhos não apenas pela narrativa assombrosa mas como pela qualidade da arte. Cada página do livro de Carroll é trabalhada com cuidado, com desenhos que se conectam e impactam, tomando força com o decorrer da narrativa.

Os cinco contos de Floresta dos Medos evocam os seres que vivem no escuro e aquele sentimento de tensão, mostrando que absolutamente tudo pode acontecer. Mesclando cores fortes e intensas, como tons vibrantes de vermelho sangue e azul profundo, Carroll constrói narrativas que nos corroem por dentro, misturando, como em sua paleta de cores, tensão e curiosidade em igual proporção. Floresta dos Medos é o primeiro trabalho da artista a ser publicado no Brasil, e essa leitora aqui espera que seja apenas o primeiro de muitos. — Comprar!

Para saber mais: Floresta dos Medos e as histórias assombrosas de Emily Carroll

Francis, Loputyn 

Por Thay

“- Francis… a liberdade vale séculos de vazio e solidão?
– Você mesma será capaz de me responder quando puder me evocar de novo, um dia…”

Sem em Floresta dos Medos o que impera é o uso de cores fortes e marcantes, em Francis, da artista Loputyn —  nome artístico da italiana Jessica Cioffi —, aqui o que domina são as cores pastéis e delicadas, imersas em uma atmosfera de sonho, mágica e fantasia. Embora tenha toda essa atmosfera doce e encantada, Francis não é uma simples história de bruxas desenhada belamente; nessa graphic novel, Loputyn utiliza dessa narrativa para falar de crescimento e autoconhecimento. Nada é o que parece ser, e embalada em um pacote bonito e brilhante, Loputyn nos entrega uma história sensível e delicada como poucas.

É fácil se encantar tanto pela narrativa apresentada por Loputyn quanto pela arte da graphic novel. O traço em aquarela da artista encanta em todas as páginas, unindo de maneira ímpar roteiro e imagens para mostrar que todos temos luz e treva em nossos corações. — Comprar!

Harley Quinn: Breaking Glass, Mariko Tamaki

Por Isabela Reis

Lançada em setembro, Harley Quinn: Breaking Glass foi escrita pela premiada artista Mariko Tamaki, que já trabalhou com a DC Comics anteriormente em Supergirl: Being Super. Longe da mãe, Harleen é uma adolescente carismática e inconsequente que tem Mama, uma drag queen veterana, como sua única família, e mora com ela em um apartamento em cima do bar que serve de palco para todas as drags locais. Mas uma onde de gentrificação ameaça o estabelecimento, e Harleen sabe que precisa fazer alguma coisa para salvar as pessoas que ama. Ela tem duas opções: se juntar a Ivy, sua amiga da escola que vem de uma família ativista para participar das campanhas e protestos de melhoria do bairro, ou se juntar ao Coringa, uma figura misteriosa e caótica que tem planos para destruir as corporações de Gotham City.

Esta é uma história que se afasta das grandiosidades de super-heróis. Aqui, ninguém tem poderes. Todos são pessoas comuns que devem enfrentar seus problemas como podem. Apesar de ter nuances de Arlequina, Harleen é só uma menina tentando ajudar quem a ajudou mesmo que meta os pés pelas mãos e acabe criando uma zona ainda maior. Com a elite como principal vilã, Harley Quinn: Breaking Glass é uma leitura feita para o jovem-adulto dos dias de hoje. É um enredo inquieto e sentimental que traz discussões políticas e de sociedade, feito para pessoas que não se incomodam com novos formatos de personagens já estabelecidos. — Comprar!

Horror Noire, Robin R. Means Coleman

Por Thay

“São coisas diferentes ficar animado ou horrorizado por algum ato horrível que aconteceu com outra pessoa na tela do cinema, ciente de que o ator depois lava o sangue falso e vai para casa, e realmente sentir a dor e experimentar o evento horrível e perturbador na vida real, com sangue de verdade e sem nenhum diretor para gritar ‘corta!’”

Nascido da pesquisa da pesquisa acadêmica da Dra. Robin R. Means Coleman, Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror é ideal para ser livro de cabeceira de todo amante da sétima arte. Com uma narrativa impecável e interessante do início ao fim, a Dra. Coleman destrincha décadas de filmes de terror, mostrando as diferenças entre eles com o passar dos anos e produções, além de apontar o que são “filmes de terror com negros” e “filmes negros de terror”. Negros fazem parte dos filmes de terror desde os primórdios do gênero, mas nem sempre foram bem representados visto que os papéis destinados aos atores não-brancos eram os dos seres exóticos, selvagens, monstros ou a personificação do sobrenatural a ser combatido e tais narrativas.

O trabalho da Dra. Coleman — que não ficou restrito às pesquisas e livros e também se transformou em documentário homônimo — é essencial para que possamos compreender as dinâmicas de Hollywood com o virar dos anos: a pesquisa abrange filmes lançados do final do século XIX até os anos 2000 e cita produções como A Noite dos Mortos Vivos, King Kong, O Mistério de Candyman e muitos outros títulos para argumentar sua tese da diferença existente entre “filmes de terror com negros” e “filmes negros de terror”. Lançado no Brasil pela DarkSide Books, Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror é indispensável e, sem dúvida, uma das minhas leituras favoritas do ano. Se você ama terror, ou não, isso não faz diferença: o livro da Dra. Coleman abrirá seus olhos em muitos aspectos sociais e raciais. — Comprar!

Para saber mais: Horror Noire: a representação negra no cinema de terror

In The Dream House, Carmen Maria Machado

Por Luisa Pinheiro

In The Dream House é um relato autobiográfico sobre relacionamentos abusivos entre mulheres a partir da experiência da escritora Carmen Maria Machado, já conhecida pela coletânea de contos O corpo dela e outras farras e pela participação na Flip em julho de 2019. O livro é escrito em segunda pessoa, direcionando a narrativa para essa mulher do passado enquanto ela ainda estava vivendo aquele relacionamento, um recurso que aproxima quem está lendo da experiência de trauma.

Ao longo dos capítulos, são utilizados diversos gêneros literários para compor esse livro de memórias, passando por conto de fadas, ensaios, terror e até uma narrativa interativa, um capítulo específico em que o leitor pode decidir o que faria se estivesse preso ao relacionamento. É importante ainda a abordagem da violência doméstica em relações queer, principalmente um tipo de violência que não é facilmente percebida. — Comprar!

Lady Killer, Joëlle Jones

Por Thay

Os anos 1950 e 1960 norte-americanos vivem no imaginário popular, e isso não é segredo algum. O universo da década já foi explorado por muitas produções, então não é difícil se localizar no espaço e tempo quando uma nova história ambientada no período é lançado. Lady Killer, da artista Joëlle Jones, faz uso exatamente desses anos dourados para contar a história de Josie, uma típica dona de casa norte-americana, mãe amorosa e assassina de aluguel.

Lady Killer é uma divertida — e sangrenta — graphic novel que reúne o sonho americano à vestidos rodados, pistolas e luvas de borracha. Josie, casada e mãe de dois filhos, precisa levar em segredo sua vida dupla. Se durante o dia ela é a esposa e mãe dedicada preparando o jantar para a família, durante a noite ela é uma assassina de aluguel navegando por boates enquanto está disfarçada de garçonete, e por lares insuspeitos enquanto se passa por uma revendedora AVON. A Arte de Joëlle Jones é belíssima, e as cores fortes e alegres são contrastes inesperados para um roteiro repleto de morte e sangue. O roteiro produzido por Joëlle Jones e Jamie S. Rich se utiliza de uma trama clichê — a da dona de casa perfeita que esconde um segredo sombrio — em algo fresco, leve e divertido. O único defeito de Lady Killer, é que acaba — sorte nossa que o segundo volume já está confirmado pela DarkSide Books. —Comprar!

Para saber mais: Lady Killer: o sonho americano regado a sangue

Maternidade, de Sheila Heti  

Por Mia

“Há algo de ameaçador em uma mulher que não está ocupada com os filhos. Uma mulher assim provoca certa inquietação. O que ela vai fazer então que tipo de problemas ela vai arrumar.”

A maternidade compulsória é um assunto tão delicado que Sheila Heti escreveu um livro inteiro dedicado à reflexão sobre ser ou não ser mãe. A escrita de Maternidade acompanha a autora/protagonista durante o final de seus trinta anos, quando ela sabe que, se quiser ter filhos, precisa decidir logo.

É interessante a estrutura desse livro. Num misto de ensaio com auto-ficção, conhecemos a protagonista que, perto dos quarenta anos, se vê cada vez mais pressionada contra a parede para tornar-se mãe. Apesar de ser uma escritora já estabelecida, as pessoas à sua volta parecem esperar que ela “vire adulta” e abra espaço em sua vida — e em seu corpo — para um filho. Gosto muito de ensaios e, apesar do livro não ser classificado dentro do gênero, é interessante ouvir a voz da autora em meio a centenas de reflexões sobre o papel da mulher na sociedade e o que é esperado de nós enquanto mães, filhas e esposas. Nele, conseguimos ler a autora pensar, o que já seria fascinante, independente do tema. No entanto, ao tocar nessa ferida, a voz da autora ganha maior relevância e torna-se essencial para todas aquelas que estão em dúvida quanto a ter ou não ter filhos. A leitura é difícil, mas interessante e surpreendente, daquele tipo que só faz crescer passado algum tempo. Viva às não-mães. — Comprar!

Meu Ano de Descanso e Relaxamento, Ottessa Moshfegh  

Por Mia

“Não que eu estivesse me suicidando. Na verdade era o oposto de um suicídio. Minha hibernação era uma medida de autopreservação. Eu achava que aquilo salvaria minha vida.”

A história de uma mulher que decide passar um ano inteiro dormindo não deveria render um livro inteiro, mas rendeu. E não apenas um livro com pouco mais de 200 páginas como um dos melhores do ano já que, em seu humor sombrio, Ottessa Moshfegh nos conta uma história sobre luto e depressão em Meu Ano de Descanso e Relaxamento.

No livro, somos apresentados a uma protagonista sem nome, mas com muitos defeitos: ela é linda, loira, magérrima, rica, fútil, gordofóbica e insuportavelmente egoísta. Talvez uma das personagens mais detestáveis da literatura, nossa protagonista passeia por uma Nova York do ano 2000, ainda sem marcas da tragédia que logo se abateria, repleta de festas, drogas, roupas caras e a luta de cada um para ter um bom lugar no competitivo mercado de trabalho. Entretanto, a protagonista largou tudo isso de mão em busca do alívio que o sono pode trazer. Para tal,  ela acha uma psiquiatra aleatória nas páginas amarelas e inventa uma insônia horrorosa, só para ter acesso a remédios que a deixem apagada por dias a fio. Apesar de ser herdeira de uma fortuna imensa, nem todo o dinheiro que tem consegue lhe ajudar a sair da depressão — nem ao menos de ter vontade de sair daquele lugar desesperador que sua mente se tornou. Acreditando piamente que um ano de hibernação lhe curaria os traumas emocionais, ela mergulha em frascos e frascos de antidepressivos e ansiolíticos, submergindo no esquecimento daqueles que já não enxergam sentido na vida. O livro é uma história incrível sobre a depressão e como utilizamos diversos métodos de alienação para sobreviver. O sono pode ser uma forma de alienação, assim como séries, filmes, música ou pessoas. Não é possível viver desperta o tempo todo, especialmente quando se tem um problema psicológico. Meu Ano de Descanso e Relaxamento é incrível porque, por mais distante que estejamos da protagonista, todos buscamos escapar de algo, nem que seja de nós mesmos. —Comprar!

Minha Coisa Favorita é Monstro, Emil Ferris  

Por: Mia

“Eu vou dizer na lata — na minha opinião, as melhores capas de revista de terror são aquelas em que as tetas das moças não pulam quando o monstro ataca. Essas capas me dão uma coisa que é pior que medo. Eu acho que essas capas de teta carregam uma mensagem secreta: ter peitos é muito perigoso.”

Não costumo ler muitas HQs ou graphic novels. Sou, em suma, uma leitora de romances. No entanto, Minha Coisa Favorita é Monstro me chamou atenção desde o primeiro momento. O título, que é maravilhoso e exprime tanta coisa, foi o que primeiro me fez desejar a graphic novel de Emil Ferris. Logo em seguida, vieram a capa e a sinopse, ambas tão maravilhosas e complementares àquele título provocativo que não pude fazer outra coisa senão desejá-lo.

A protagonista da história, toda desenhada em caneta esferográfica, é Karen Reyes, uma menina de 10 anos que vive na cidade de Chicago em meados da década de 1960. Ao se deparar com o assassinato de sua vizinha, Anka, uma mulher judia que sobreviveu ao holocausto, Karen decide investigar o passado de Anka para entender o que aconteceu àquela mulher tão bondosa e sonhadora. É a partir daí que entenderemos melhor o mundo de Karen, Anka e de todas as mulheres que, em meio a guerras e protestos, sempre são as mais prejudicadas. A obra é visceral, permitindo ao leitor não apenas ser transportado para aquela década como também se colocar nos pés de uma menina, de pais imigrantes, que se refugia nos filmes e revistas de terror para fugir dos horrores da vida real — já que os monstros sobrenaturais não são nada se comparados aos homens reais. Como a própria autora declarou, “Ser mulher é uma das encarnações mais perigosas pela qual a alma humana pode se aventurar”. Seja naqueles tempos ou agora, a realidade não é fácil para nós e, infelizmente, é quase impossível, para uma mulher, ler a história criada por Emil Ferris e não sentir-se compreendida. — Comprar!