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Assédio: a luta das mulheres que denunciaram Roger Abdelmassih

É preciso respirar fundo antes de começar a ver Assédio, minissérie sobre o caso Roger Abdelmassih lançada pela Globoplay em setembro. O ex-médico foi condenado em 2010 a 278 anos de prisão pelo estupro de 37 mulheres, a maioria pacientes de sua clínica de fertilização. Como os fatos são recentes, sabemos como essa história termina: Roger só foi para a cadeia em 2014 depois de passar anos foragido no Paraguai e, desde outubro de 2017, cumpre prisão domiciliar. Até esse desfecho, foram anos desgastantes de sofrimento e de luta para as mulheres que denunciaram um dos mais famosos especialistas em fertilização do país, que atendia numa clínica de luxo na cidade de São Paulo.

Atenção: esse texto pode conter gatilhos de estupro e violência contra a mulher.

O propósito da série de Maria Camargo, com direção de Amora Mautner, parece ser o de contar uma história de perseverança, destacando a força dessas mulheres — vítimas ou sobreviventes, é até difícil saber como nomeá-las. Mas, como uma confirmação do receio inicial sobre Assédio, os episódios têm tantas cenas explícitas de violência que, no fim, provocam velhos questionamentos sobre a televisão: até que ponto essas cenas são feitas apenas para chocar o público? Ou a encenação tem relevância para narrar a experiência do trauma, incentivando uma conversa necessária sobre os diversos casos de estupro que acontecem todos os dias?

Dividida em dez episódios, a trama concentra as inúmeras denúncias contra Roger Abdelmassih em cinco protagonistas, representativas de situações relevantes para o andamento da ação judicial contra o ex-médico e para mostrar diferentes maneiras de se reagir a um estupro em meio a um tratamento caro e cansativo de inseminação artificial. As experiências são individuais de cada personagem: conseguir relatar o abuso para alguém ou permanecer em silêncio; receber apoio dos familiares ou ser injustamente culpada pelo ocorrido; engravidar ou não após o tratamento feito na clínica; e decidir tomar alguma providência contra o criminoso ou tentar levar a vida como se nada tivesse acontecido. A adaptação teve como base o livro A Clínica – A Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih do jornalista Vicente Vilardaga e também os autos do processo, as reportagens que saíram na época da investigação e os depoimentos das mulheres que reuniram forças para fazer denúncias públicas, disponíveis em diversas entrevistas, inclusive em vídeo.

Assédio

Na versão ficcional, a primeira vítima é Stela (Adriana Esteves), uma mulher que quer desesperadamente ser mãe, estuprada ainda sob efeito dos sedativos após o procedimento de coleta dos óvulos que seriam posteriormente fecundados na clínica. Ela não conta sobre o ataque nem para o marido e nem para ninguém e volta ao consultório para tentar a inseminação, sem sucesso. Por não conseguir sequer falar sobre o assunto, Stela entra num quadro profundo de depressão, abandona o tratamento sem dar explicações à família e o seu casamento acaba. É uma das histórias mais impactantes, conduzida com cuidado na atuação de Adriana Esteves. No episódio seguinte, Eugênia (Paula Possani) é estuprada em circunstâncias parecidas, mas ao menos consegue desabafar com o marido. Aconselhados por um advogado, eles decidem registrar o ocorrido em cartório. Algo que não tem consequências práticas naquele momento, mas que, anos depois, ajuda a dar força para as denúncias das vítimas, como uma prova do processo judicial.

O caso de Vera (Fernanda D’Umbra) é um pouco diferente. Ela foi agarrada e beijada à força no consultório médico, antes do início efetivo do tratamento. Essa denúncia foi importante para derrubar um argumento inicialmente utilizado pela defesa do ex-médico: que as pacientes estariam confundindo realidade e alucinações provocadas por anestésicos. Ainda nessa linha, Daiane (Jessica Ellen) era uma das funcionárias da clínica de fertilização e sofreu uma tentativa de estupro durante o expediente. Foi a partir da própria experiência traumática que ela entendeu por que muitas clientes saíam tão abaladas da clínica, momento em que ela se dá conta de que foi uma espécie de testemunha indireta de incontáveis abusos.

E, por último, Maria José (Hermila Guedes) juntou o que tinha e o que não tinha para pagar o tratamento oneroso, além da viagem de uma cidade nordestina não identificada até São Paulo. Ela foi violentada quando já tinha acordado da anestesia e tinha plena consciência da violência que estava sofrendo. Mas só conta o que aconteceu depois da primeira tentativa de inseminação, porque entendia que precisava voltar à clínica para buscar seus filhos, como ela disse ao tentar se explicar, já que diversas vítimas foram julgadas por continuar o tratamento mesmo depois dos abusos. Quando fica sabendo, o marido de Maria José reage mal e alega que foi traído, recusando-se a acreditar que a mulher era uma vítima do médico. Pouco depois, ela descobre que está grávida — de gêmeos — e acaba mantendo um casamento de fachada. É uma história que está na série para mostrar o sofrimento extra de uma vítima que precisa viver o trauma em silêncio porque as pessoas mais próximas não acreditam na versão dela.

Assédio

As cenas que representam o passado de Stela, Eugênia, Vera, Daiane e Maria José, numa linha do tempo que começa em 1994 e vai até 2017, são intercaladas com depoimentos em que as personagens narram seus traumas para alguém atrás da câmera, como se fossem entrevistadas para um documentário. Os relatos das vítimas é um dos pontos altos da série, porque dá chance ao espectador de entender o drama que essas mulheres viveram. Elas foram constantemente desacreditadas, culpadas, obrigadas a reviver continuamente aqueles momentos de “vergonha que virou raiva, de nojo”, como diz Stela em determinado momento.

Paralelamente, acompanhamos a trajetória da jornalista Mira (Elisa Volpatto) para investigar os podres de Roger Sadala (Antonio Calloni), codinome que o ex-médico ganhou na série por questões legais. Como era de se esperar, é Mira quem está atrás das câmeras entrevistando as protagonistas. O papel do jornalismo recebe certa importância em Assédio porque, depois que as primeiras denúncias são divulgadas na imprensa, outras mulheres resolvem ir a público para mostrar que o caso era ainda mais grave do que se pensava inicialmente, quando as vítimas tinham um receio mais que legítimo de aparecer nos jornais.

Roger tem bastante tempo de tela em cenas que mostram seu cotidiano de patriarca. Ele é retratado em alguns momentos como um filho carinhoso com a mãe e um avô dedicado. Ao mesmo tempo, porém, ele encarna um papel de monstro, uma palavra bastante utilizada por outros personagens para descrever o ex-médico. O homem é autoritário, trai a esposa sempre que tem oportunidade, não tem um pingo de caráter. Com essa vilanização tão acentuada, fica difícil de acreditar que ele impressionava positivamente as clientes que ele convencia a iniciar o tratamento e a gastar tanto dinheiro na clínica. E ainda mais inexplicável é que Glória Sadala (Mariana Lima) ainda se importe com o marido até o fim. Ou que Carolina (Paolla Oliveira), uma paciente da clínica, se apaixone pelo médico durante o tratamento, decida largar o marido depois de sofrer um aborto espontâneo na primeira tentativa de inseminação e acompanhe Roger na fuga quando ele tem a prisão decretada. As cenas em que o ex-médico interage romanticamente com a primeira mulher e com a amante são quase tão desconfortáveis quanto as cenas de estupro.

Assédio

O retrato do abusador como um monstro é importante para não deixar dúvidas de que é o relato das vítimas deve ser ouvido. O problema é que isso contrasta com a tentativa de dar mais profundidade ao personagem de Roger. Afinal, ele também fala diretamente para a tela, fixando o olhar no interlocutor, alegando que foi um homem injustiçado, acusado e condenado sem provas. Sem contar as frases de efeito que, pelos relatos das vítimas, eram marca registrada do próprio Roger Abdelmassih. “Eu não sou Deus, sou só instrumento dele”, diz o personagem para um assessor contratado para gerenciar a crise de imagem e de reputação que o médico enfrenta após a divulgação das denúncias. Nos créditos do último episódio, um texto provavelmente mal formulado mostra que “a dor, a coragem e a luta das vítimas do ex-médico também inspiraram a história da série”, como se o protagonista realmente fosse Roger.

Em Assédio, o roteiro se demora excessivamente na apresentação das protagonistas nos cinco primeiros episódios e depois não sobra tempo para explorar o andamento da ação judicial, a importância da cobertura da imprensa no caso e, principalmente, a força dessas mulheres que conseguiram lutar para serem ouvidas. Como surgiu o impulso de Stela para participar do grupo que reunia as vítimas desse mesmo homem? Como alguém sai do fundo do poço e parte para a ação, qualquer que seja? Assim como os processos das mulheres que nunca vieram a público e encontraram outras formas de retomar suas vidas, a recuperação de Stela, por exemplo, não recebe qualquer destaque devido ao tom apressado dos capítulos finais para dar conta do julgamento, da fuga e da operação para prender Roger em Assunção, no Paraguai.

Sobre o excesso de violência, o episódio “O Julgamento”, com os depoimentos das vítimas frente a frente ao ex-médico, é talvez o mais difícil de assistir. Novas personagens aparecem nesse momento, e os relatos de todas elas são ilustrados com imagens explícitas dos estupros, inclusive com a repetição de cenas já vistas em outros capítulos. Houve, sim, uma preocupação para que os abusos não fossem romantizados. Fica claro que todos aqueles casos se tratavam de estupros e não de sexo, caso alguém ainda estivesse em dúvida. Ainda assim, alguns trechos são tão pesados que prejudicam o resultado da minissérie, com gatilhos principalmente para as vítimas e, na verdade, também para qualquer mulher que já teve medo de ser estuprada.

Assédio

Qual o ponto de dar novamente um destaque às violências que essas mulheres sofreram, enfraquecendo o instante em que elas são oficialmente ouvidas e têm a oportunidade de colocar para fora todo o sofrimento que guardaram por anos? As circunstâncias lembram o recente julgamento de Larry Nassar, ex-médico da Federação Americana de Ginástica, em que cerca de 150 vítimas de abusos foram ouvidas e puderam fazer uma espécie de desabafo coletivo — e transmitido pela televisão — antes do anúncio da sentença, mesmo que o processo em questão fosse relativo a apenas sete desses casos.

Assédio foi importante por colocar o assunto em pauta e levar em conta a perspectiva das denunciantes. E é até uma forma de incentivar mais denúncias em casos de violência contra a mulher por mais que exista um sentimento de impunidade, já que, depois de ser protegido durante o processo pelo status que tinha na sociedade e também passar anos foragido, Roger Abdelmassih cumpre prisão domiciliar desde o ano passado, alegando problemas de saúde. Mas a série teve pouca repercussão por ser exclusiva de uma plataforma de streaming, uma abordagem nova da Globoplay e repetida com Ilha de Ferro, que também só teve o primeiro episódio exibido na TV aberta.

A discussão sobre assédio sexual parece não avançar no Brasil, e a série de Maria Camargo não conseguiu mudar esse quadro. Durante as gravações da série, imagens íntimas de Paolla Oliveira foram vazadas sem o seu consentimento por um integrante da equipe de gravação. Ainda se fala pouco sobre casos de assédio na esfera pública, principalmente na indústria do entretenimento. A carta aberta da figurinista Su Tonani, de 2017, para denunciar publicamente o ator José Mayer por assédio sexual foi praticamente um caso isolado. Quando estaremos prontas para uma versão nacional do #MeToo — #EuTambém, em inglês — para expor nossas experiências e deixar bem claro por aqui que o assédio sexual contra mulheres é um problema maior do que muitos imaginam? Quando o mundo artístico estará pronto para esse primeiro passo?

1 comentário

  1. Quem dá 1 estrela para série tão relevante como “Assédio” com certeza não entendeu o conceito da produção ou dever ser deveras extremista a ponto de colocar a opinião na frente da análise. O fato de a série mostrar as violências sofridas pelas mulheres é preciso, afinal a série é sobre isso. Seria como um filme sobre o Holocausto que não mostrasse o sofrimento dos judeus. Mas o que se vê na série não é uma cena de violência sexual explícita e, principalmente, sexualizada. Não há erotismo ali (a não ser que a pessoa que assiste à cena divide a mesma psicopatia do criminoso). O fato de a série ser dirigida por uma mulher (Amora Mautner) reforça ainda mais o ponto de vista feminino da série. Menosprezar o ótimo trabalho de Fotografia, Montagem e Trilha Sonora também é revoltante, além, é claro das atuações de Adriana Esteves, Antonio Calloni, Mariana Lima e boa parte do elenco. Dar nota mínima para “Assédio” é como ignorar todos os crimes que ocorreram e a memória dessas mulheres. Respeito sua opinião, mas discordo da avaliação (nota).

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