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Todo Mundo Merece Morrer: o que define heróis e vilões?

Não sei bem em que momento, mas o YouTube virou uma parte importante da minha vida. Sobreviver quase sem surtos aos últimos anos, que incluem panelaços, homenagens a torturadores e demais abusos da nossa política, só pareceu possível abafando toda a gritaria com vlogs, tutoriais de maquiagem e, principalmente, vídeos sobre livros. No meio disso tudo, me descobri uma fangirl que nunca achei que a vergonha me deixaria ser, passei a falar “desculpa atrapalhar, mas gosto muito do seu trabalho” quando encontrava pessoalmente as pessoas que admiro, fiz amizade com uma booktuber que amo, participo de financiamentos coletivos e faço questão de apoiar sempre que algum deles lança um livro, documentário ou algum outro tipo de produto.

Foi exatamente por isso que, logo em seu lançamento, em agosto deste ano, Todo Mundo Merece Morrer ganhou um espacinho especial na minha estante. O livro marca a estreia de Clarissa Wolff enquanto oficialmente escritora. Ela, que também fala sobre literatura na Carta Capital e já publicou em revistas como a Vice, a Cult e a Rolling Stone, manteve por algum tempo, e com a ajuda de seus pets, o canal A Redoma de Livros.

Com o recorte de uma notícia que conta alguns detalhes de uma tentativa de assassinato em massa no metrô de São Paulo, somos apresentados a Lucas, o “herói da linha verde”, e às demais figuras importantes da história. A partir desse momento, o livro se desenvolve em uma narrativa polifônica, com cada uma dessas treze pessoas ganhando um capítulo só seu, no qual, caminhando pelos mais diversos pontos da cidade, descobrimos um pouco mais sobre a sua vida, sua personalidade, seus pensamentos e seu dia até o momento em que todos juntos escutam um tiro.

Clarissa, nesse emaranhado de vozes, que incluem a do assassino e a da única vida tirada naquele dia, cria pessoas cruéis. Elas usam do poder, do dinheiro, da posição, da cor da pele e do sexo como arma, como forma de vingar e razão para brincar com outras vidas. Ela também nos mostra pessoas desesperadas, que fizeram ou continuam fazendo escolhas ruins, que tomaram atitudes duvidosas ou cuja escolha controversa foi tomada por elas. Pessoas que escolhem viver ou não com o peso disso.

“Depois que eu morri, o caos foi instaurado. Um cara de vinte e poucos anos impediu que mais pessoas morressem, e os celulares de quem restava vivo foram inundados por notícias de seu ato heroico. Um padre deu entrevistas, uma pré-adolescente magra demais chorava, uma mulher tentava ir embora de qualquer jeito sem que ninguém falasse com ela, outra gritava no telefone, outro cara de vinte e poucos com um coque na cabeça digitava sem parar no celular, um moleque nervoso soluçava, um homem acalmava uma mulher que chamava pelo filho, outro homem fumava um cigarro, uma mulher toda vestida de preto observava em silêncio, paramédicos, jornalistas, policiais invadiam o lugar, o meu corpo era levado, e eu não vi quem me matou.” (p. 158)

Questões como depressão, drogas, bullying, distúrbios alimentares, racismo, estupro, violência – seja ela física ou psicológica –, loucura e maternidade compulsória compõe toda a narrativa. Esses e diversos outros temas que incomodam, que machucam, trazem lágrimas, causam raiva, indignação, e que, enquanto corpo social, passamos boa parte do tempo fingindo que não existem, se mostram presentes ao longo das quase 170 páginas que compõe o livro. A autora nos conduz por dores e horrores sem deixar que suas próprias verdades e julgamentos abafem as daqueles que criou; ela exibe as diversas facetas de seus personagens, aponta as hipocrisias de uma sociedade que vive de aparências, mostra (de maneira repulsiva e brilhante) como pessoas usam um deus como álibi e aliado do mal que causam aos outros.

Estamos dentro da mente de personagens que, em sua maioria, não parecem julgar suas próprias atitudes; são pessoas que fazem o que fazer por querer ou por necessidade, por ser a forma como o mundo funciona, por não haver autocrítica ou compaixão. Vemos tudo isso na professora que é a exata personificação da “Barbie fascista”, no padre pedófilo, no esquerdo-macho, na adúltera, no traficante, no médico elitista, no herói que não entende bem o que está acontecendo, e até mesmo no próprio assassino, reflexos de falas, atitudes e olhares que nos acompanham diariamente, que, por vezes, já saíram ou ainda saem diretamente de nós. Elas se abrem nessas páginas e nós as observamos de perto; sem filtros, sem rodeios, nós vemos de forma crua tudo aquilo que elas são, todas as facetas e contradições que constituem um único ser. Vejo a mim mesma, você se vê, e nós vemos o senhor simpático que senta ao nosso lado com as pernas abertas demais, o tio gente boa que passa o dia compartilhando postagens no mínimo problemáticas em redes sociais, a amiga que sempre te dá uma força e diz que não tem nada contra gays, inclusive até tem amigos que são, mas que ninguém merece vê-los se agarrando por aí.

O livro é todo feito de provocações. Ele nos desafia enquanto leitores que precisam se adaptar às mais diferentes vidas e formas de narrar, que encontram em um capítulo todo escrito como versículos da Bíblia um dos relatos mais nojentos. Mas ele também nos provoca enquanto pessoas, que muitas vezes não questionam o que torna alguém herói ou vilão, que julgam o outro por corrupções que também cometemos e cuja raiva também se transforma nas mais diversas formas de violência.

É exatamente por isso que Todo Mundo Merece Morrer se torna uma leitura extremamente desconfortável. Sua história parece difícil ser relida (a própria Clarissa, durante uma conversa no podcast de Gaia Passarelli comenta que, além de ter demorado meses para escrever as partes que considera mais pesadas e problemáticas, já não consegue ler novamente alguns capítulos), mas que, ao mesmo tempo, cria o desejo de dar de presente, emprestar, recomendar, comentar com os amigos. Muitíssimo bem escrito, esse é um daqueles livros que, apesar da leitura rápida, não são fáceis, doem, mas vão andar com a gente pelo resto da vida.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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