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O Diagnóstico no Espelho de Sarah Munck: entrevista com a autora

Na orelha de O Diagnóstico no Espelho, a Dra. Silvina Carrizo, da Faculdade de Letras da UFJF define a obra de estreia de Sarah Munck como “poética do diagnóstico, do tempo descongelado da poesia que esteve sempre aí, do reconhecimento do poema na memória  e com a memória da poeta mulher que ela é.” A autora, pesquisadora e professora lança pela editora Mondru uma antologia de poesias que exploram as trajetórias das mulheres, no enfrentamento ao patriarcado e ao mascaramento social neurodivergente. Trazendo temáticas semelhantes à do seu primeiro livro, Digressões em Meia-volta, a escritora mineira lança um olhar poético ao diagnóstico de autismo e à intensidade do viver feminino em livro com posfácio da psicóloga Mariana Esposito.


O Diagnóstico no Espelho é uma confluência de referências literárias e acadêmicas que Sarah Munck apresenta em entrevista ao Valkirias.

O Diagnóstico no Espelho

O Diagnóstico no Espelho é um título bastante direto, no entanto a poesia tem como característica estética e de conteúdo a qualidade de dizer não dizendo, de fazer sentir sem expor diretamente as feridas na carne. Os poemas do livro abraçam temas dos quais hoje em dia se trata muito mais diretamente do que antes. A própria neurodiversidade, à qual a palavra “diagnóstico” faz referência logo no título, foi, por muito tempo, escondida na metáfora, no eufemismo e em outras figuras de linguagem, até mesmo na linguagem cotidiana. Como você concilia o mostrar e o esconder neste livro?

Sarah Muck: Acredito que até mesmo o espelho, aqui falo sobre a superfície reflexiva, lida com a questão da perspectiva. Ao trançar meu cabelo para a esquerda, eu o faço de acordo com a direção de minhas mãos. No entanto, para alguém que me encontra de frente, minha trança estará inclinada para a direita. Não será, pois, a reflexão uma ciência que, ao estudar a incidência dos raios solares, nos leva a pensar sobre a dicotomia real versus virtual? Assim, penso eu, a imagem do espelho encontra a metáfora da concha — o abrir e fechar de olhos —, o universo precioso que ora se contrai, ora se expande. Retornando à ideia da luz, imagino o raio que cai durante a tempestade e me lembro que, infelizmente, “sim” ele cai num mesmo lugar, mas sua força pode variar. Então, percebo que as metáforas trabalhadas em meu livro, “o mostrar e o esconder”, se unirão às minhas leitoras e aos meus leitores, haja vista seus próprios contextos históricos, culturais e sociais. A questão da neurodivergência está em minha poesia, uma vez que não pode se dissociar de minha pessoalidade. Eu sou a Sarah, mulher, neurodivergente, mãe, entre tantas. Entretanto, a língua como organismo vivo cria asas, funda outros ninhos, tece novas tranças. Essa é a beleza da poesia.

A linguagem e a escrita acadêmicas são bastante distintas da linguagem e da escrita poéticas — ao menos no resultado final do que é lido — e no entanto, você domina ambas. Seu currículo acadêmico passa pela literatura como objeto de estudo. Como a Sarah pesquisadora influencia a escrita da Sarah poeta neste livro?

SM: A linguagem poética e a escrita acadêmica fazem parte do meu projeto de escrita, visto que uma auxilia a outra no que eu denomino por “elasticidade”. O que eu quero dizer é que estudar a história e a crítica literárias, a linguística, a filosofia etc. me leva a conhecer caminhos possíveis para as ciências humanas. Particularmente, em meu livro O Diagnóstico do Espelho, alguns temas que estudo na academia perpassam minha poética, como por exemplo, o pensamento decolonial. Essa nova forma de enxergar o mundo está presente nos poemas em que trabalho a violência de gênero, como também atravessa a própria constituição do livro, já que o patriarcado, em suas nefastas formas, afetou mulheres autistas que permaneceram durante anos à margem das pesquisas científicas e, consequentemente, do diagnóstico e de possíveis tratamentos. Além disso, não poderia deixar de citar grandes escritoras e escritores fundamentais em meu arcabouço literário, como Hilda Hilst, Eduardo Galeano, Orides Fontela, entre outros.

Seu livro anterior, Digressões em Meia-volta tem alguns temas em comum com O Diagnóstico no Espelho. Como a sua perspectiva sobre o viver feminino e a violência de gênero se transformaram de um livro para outro?

SM: Tenho pensado sobre o diálogo travado entre minhas duas obras e concluo que estão em profunda sintonia. Digressões em Meia-volta, apesar de ser uma experiência com a publicação independente via plataforma digital, já inaugura temáticas cruciais em minha escrita: a violência de gênero, o fazer literário, a escrita intimista. A diferença, talvez, entre uma obra e outra seja o amadurecimento estético sobre o viver feminino e suas implicações, dado que O Diagnóstico do Espelho trabalha, também, a temporalidade: a infância, a juventude e a vida adulta.

Conte um pouco sobre seu processo de pesquisa para criar este livro e como foi condensar suas referências na escrita dos poemas.

SM: O processo de escrita do O Diagnóstico do Espelho se deu durante os meses das sérias restrições da Covid-19. O permanecer em casa, longe da sala de aula, com uma filha recém-nascida nos braços me levou a muitas descobertas, entre elas a minha própria neurodivergência. Assim, resolvi ir colocando tudo, dia após dia, literalmente, no papel. As minhas percepções e leituras. As angústias e os sonhos. Nesse ponto, quero destacar o sonho: eu sempre quis publicar um livro. A crise pandêmica me levou a buscá-lo de fato. Então, antes de começá-lo, já havia traçado todos os objetivos. Curiosamente, o título foi o primeiro a chegar. Durante o seu processo de feitura, aproximadamente, quatro meses, revisitei escritoras e escritores importantes para a minha formação acadêmica e literária (Hilda Hilst, Galeano, João Cabral). Reli até mesmo poetas que marcaram as aulas de literatura do meu Ensino Médio (Manuel Bandeira, Neruda, Cecília Meireles).

Você escreve a partir do ponto de vista de uma mulher autista. No mundo como é, é bastante provável que a maior parte das suas referências de escrita não contenha muitas outras pessoas autistas — e o olhar poético vindo desse lugar não-neurodivergente influencia toda a comunidade leitora, justamente por ser predominante no mercado. Num exercício de pensar pelo caminho contrário, que especificidades do seu olhar poético vindas do espectro você gostaria que exercessem influência sobre quem lê O Diagnóstico no Espelho?

SM: Essa é uma indagação importante. Acredito, verdadeiramente, que parte de minha escrita poética, tendo em vista que sou uma mulher autista, esteja marcada pela sensibilidade, ou melhor, pela “hipersensibilidade sensorial”, expressão conhecida no meio neurodivergente. Portanto, convido as leitoras e os leitores a sentirem a poesia em suas belíssimas facetas e a vivenciarem, ainda que de forma diferente, a sua sinestesia. Portanto, quais são os universos que as palavras nos apresentam? Para quais lugares caminham nossa imaginação? Eu lhes convido para essa entrega sensorial, subjetiva e intelectual.

A construção do público-leitor é um pilar do seu projeto literário. Com quem a sua voz conversa neste livro? Quais sentimentos você expressa que podem ressoar nas pessoas que lerem seu livro?

SM: A construção do meu público-leitor é um pilar imprescindível sobre o qual debruço meu pensamento rotineiramente, pois escrevo para me comunicar e me comunico para construir trocas e diálogos. Nesse livro, converso com todas as mulheres, neurodivergentes e não neurodivergentes, pois acredito que todas nós, salvaguardando nossas especificidades, vivenciamos questões advindas da violência física, psicológica, patrimonial; da pressão estética; do envelhecer; do próprio estar no mundo e vir a ser mulher. Portanto, por meio de meus poemas, quero deixar um caminho para a esperança: não estamos sós. É possível juntar os arranhões de nosso espelho e construir nossa espada. A poesia e a palavra nos colocam de pé.

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