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a lighter shade of blue: todos os tons de azul de Christina Perri

Com uma relação aberta quanto à saúde mental, Christina Perri sempre cultivou com o público que a acompanha uma dinâmica de falar sobre o que a aflige e o que sente, fosse algo bom ou ruim. A cantora já abriu sua história sobre a luta pela sobriedade, relacionamentos ruins e términos sofridos e, mais recentemente, sobre como começou sua família e os altos e baixos de ser uma mulher e aprender a ser mãe. Sobre os dois filhos que ela perdeu ainda durante a gravidez, sobre como ainda segue tentando se reconstruir e remendar os cacos do coração da família ainda hoje. Perri conta a respeito de tudo o que viveu em quase oito anos, transformando sua dor e seus amores em arte para compartilhar com as pessoas com a ideia de, quem sabe, transforma a vida de quem a escuta também.

Conhecida por “A Thousand Years”, hino de Crepúsculo e trilha sonora de casamentos ao redor do mundo, Christina Perri conta com outros hits em seu repertório como “Human” e “Jar of Hearts”. A cantora e compositora sempre escreveu sobre suas experiências de um jeito singular, abrindo o coração e fazendo da arte um lugar de cura. São diversas as músicas com as quais podemos nos identificar em sua discografia, seja por um coração partido ou outro sentimento universal, Christina sempre parece saber o que pensamos.

Em seus trabalhos também estão dois álbuns com canções de ninar: o primeiro, songs for carmella é dedicado à sua filha mais velha, Carmella, e o segundo, songs for rosie, tem uma carga mais pesada por ser dedicado à filha que perdeu nas últimas semanas da gravidez, em 2020, que seria batizada de Rosie. Christina, que possui uma doença sanguínea tratável que a levou a perder Rosie, começou a se informar melhor a respeito dessa condição. A morte da bebê poderia ter sido evitada com um simples teste sanguíneo que não é oferecido a todas as pessoas grávidas, o que Christina só descobriu meses após sua perda. Dessa maneira, a cantora decidiu advogar em prol desses testes e pelo tratamento inicial com anticoagulantes de forma a evitar que mais pessoas passem pela mesma dor que ela.

A cantora não lançava um álbum desde 2014, época de head or heart. Em 2018, no entanto, ela lançou a canção “tiny victories” que faria parte do documentário da HBO, Foster, sobre o sistema de adoção estadunidense, mas que também fala sobre sua depressão pós-parto e como vivia um dia de cada vez nesse período. E foi por meio da música que Christina Perri se reergueu, compartilhando suas dores a fim de encontrar luz em meio a toda a escuridão em que vivia. Em 2020, após o lançamento do já citado songs for rosie, a cantora começou a se preparar para lançar o terceiro álbum de inéditas de sua carreira, o a lighter shade of blue. Em uma entrevista, Perri chegou a falar sobre uma coisa que os fãs observaram, que as capas de seus três álbuns mostram sua evolução usando como metáfora da transformação de uma borboleta. E, embora a capa de seu terceiro disco tenha as asas de uma borboleta atrás da cantora, ela destacou que não tinha feito isso intencionalmente.

Em entrevista para o Songwriting Universe, Christina Perri contou que ficou seis anos trabalhando a lighter shade of blue. Ela não tinha pressa, e a gravadora a permitiu ter o tempo que quisesse. Nesse meio tempo, Christina se apaixonou, casou, teve a primeira filha, sofreu duas perdas que a devastaram, e passou pela pandemia. “Esses seis anos me permitiram ser o mais autêntica possível, e tão verdadeira com a minha narrativa o quanto eu pude ser, porque eu estava escrevendo sobre o que eu estava vivendo verdadeiramente”. Agora, ela está feliz que o álbum finalmente saiu. E a vida continua acontecendo, agora que Christina está grávida novamente, e tentando, dia após dia, viver a gravidez e o luto.

Um tom mais leve de azul

a lighter shade of blue

Em lighter shade of blue, Perri canta sobre o luto, ser mãe, ser uma lutadora e sobre continuar pelo amor que sente por sua família. Ela escreve sobre suas experiências, se permitindo, como ela mesma cita em sua música “blue”, usar seu lado quebrado na manga, ao invés de esconder a dor. O que nos dá a permissão de ressignificar aquelas canções, e nos curar também. O novo álbum nos leva a uma jornada terapêutica por meio de traumas, dores, nostalgia e amor.

Christina abre o disco com “surrender”, uma canção sobre se perder dentro da própria cabeça, tentando segurar tudo o que é possível, tentando ser forte em meio ao caos do dia a dia. O que marca mais nessa música é quando Perri canta que continua esquecendo como rezar e pergunta se alguém pode falar para ela que está bem. Na canção, ela descreve que subiu uma montanha, e ao chegar lá, acabou caindo, mas que existe liberdade na queda livre. Porque às vezes, a gente precisa se entregar, o peso das dores é muito, e quando os rendemos, podemos nos encontrar em meio ao caos.

A segunda faixa, “hurt”, é uma balada romântica sobre se apaixonar e como isso pode ser bom, mas também agonizante. Se deixar vulnerável para o outro e querer tanto uma pessoa que chega a assustar. Christina canta sobre o quanto tentou resistir a isso, depois de todos os relacionamentos que não deram certo e de todas as canções sobre relacionamentos ruins e rompimentos, mas agora ela sente algo que a faz cantar. E esse amor é tão bonito que machuca.

Perri, com todo o peso de sua vida pessoal e suas dores, usa da arte para compartilhar suas vivências e, ao cantar tudo o que sente, nos faz sentir tudo o que precisamos para abraçar nosso lado quebrado, nossa força e nos sentirmos mais leves no processo. A cantora, que já nos ensinou que somos apenas humanos, dedicou uma faixa de seu novo álbum, para todas as mães: “mothers” é para todos os tipos de mães e para que não se sintam sozinhas em suas jornadas. A canção mostra que mesmo em suas diferenças, elas podem encontrar força no caminho da maternidade, mesmo que seja difícil.

O carro chefe de seu disco é “evergone”, música inspirada em Rosie. Nessa canção, Christina afirma que ninguém nunca vai embora, que as pessoas que amamos estão sempre com a gente. Para ela, essa música sobre perda e luto, poderia ajudar a todo mundo que já perdeu alguém. E realmente ajudou. Pessoalmente, no dia que Christina Perri lançou o álbum de canções de ninar para Rosie, eu perdi minha pessoa favorita no mundo, e sua música me ajudou, e ajuda desde então, a me salvar. Escrever “evergone” salvou a Christina, que se sentia uma pessoa diferente da qual tinha sido antes de perder a Rosie, e me ajuda ainda hoje assim como a muitas pessoas ao redor do mundo.

Minha favorita no álbum, é “fighter”, faixa na qual Christina descreve a luta que acontece dentro dela e sobre como ela é a melhor e a pior dentro de sua cabeça, e que luta quando precisa ser amada. Christina canta sobre estar lutando uma batalha constante, mas lutando sozinha. E me identifico muito, por ser a pessoa mais cruel que eu consigo ser comigo mesma. Há uma parte do refrão que sempre me toca muito. Como uma pessoa que acredita muito na força do amor, me questiono se sou suficiente para ser amada, ou se tenho amor o suficiente para continuar.

“I swear I can fight her, even if she looks like me, I won’t back down
Born from a fighter, I know I fight when I need to feel loved
Strong like a fighter
What if my love is just not strong enough?”

“Eu juro que posso lutar com ela, mesmo que ela se pareça comigo, não vou recuar
Nascida de um lutadora, eu sei que luto quando preciso me sentir amada
Forte como uma lutadora
E se meu amor não for forte o suficiente?”

No disco ela tem um dueto com o cantor Ben Rector, “back in time”. A música é sobre um relacionamento do passado que significou muito, mas que, de todo modo, foi melhor para os dois que tenha chegado ao fim e a vida seguiu. O dueto fala sobre como somos versões diferentes de nós mesmos, dependendo de com quem estamos. As pessoas são parte da gente, assim como somos parte delas mesmo que o tempo passe, mesmo que o relacionamento tenha acabado. Sempre há uma parte de nós que existe especialmente para cada pessoa com quem convivemos.

Em “home”, Christina está nostálgica e quer voltar para sua casa de infância, mesmo que as coisas também fossem difíceis na época. Acredito que essa música seja sobre como conforme vamos crescendo nos agarramos a momentos do passado, romantizando aquilo que se foi. Porque se já passou, nós vivemos e superamos o momento, e o que ficou foi a lembrança de que era um tempo mais fácil. Mas para viver o dia de hoje, especialmente para aqueles que convivem com algum tipo de problema de saúde mental, é difícil. Estar presente no hoje é paralisante, e desassociamos e ficamos saudosos do que se foi.

Com “people like you”, Perri descreve o sentimento de resistir ao amor que achamos que não merecemos. Aqueles que vivem muito tempo dentro de suas próprias cabeças querem ser amados, mas não conseguem reagir às coisas boas. Lidar com o amor, mesmo que seja algo que desejamos com todo o nosso ser, pode ser difícil quando não conseguimos lidar com nós mesmos. A faixa sete é muito pessoal: “fever” é uma música angustiante sobre sonhar constantemente com uma pessoa que não está mais aqui, com o inalcançável. Mas com o toque de que, na experiência de Perri, ela conhecia essa pessoa que estava aqui, porque era a bebê que esperava. Acredito que essa seja a mais pessoal do álbum, a mais forte por falar da experiência de gestar uma criança que se foi antes de ter a chance de viver.

A canção que carrega o título do álbum, “blue“, para a cantora, foi a primeira música capaz de mostrar para Christina o caminho para o qual o disco estava indo. Nessa canção, ela descreve que agora veste sua sombra como um vestido. Gosto muito da frase “The love that I offer is deep and out of tune” [“O amor que ofereço é profundo e fora do tom”] pois, às vezes, sentimos muito amor e não sabemos como passá-lo adiante, como o sentimos. Não sabemos lidar com o amor, mas, às vezes, nos empoderar do fato de que somos essa versão cheia de amor e tristeza, de tons de azul, nos deixa mais leves.

a lighter shade of blue

O amor pela família de Perri também foi o que a salvou durante a depressão e o luto. Assim ela canta em “i do it for you”, uma música que carrega a mensagem de que só continuamos, resistimos e não sucumbe às quedas no caminho, pelo amor. Christina canta sobre querer ser forte, dançar nas dificuldades e encontrar beleza na dor, que é algo que também desejo. Isso é o que Christina consegue fazer ao transformar tudo o que viveu em música.

Como viveu muitas coisas nesses oito anos em que ficou afastada da cena musical, seis deles compondo e vivendo os altos e baixos de sua vida, “times of our lives” coloca tudo isso sob a perspectiva do tempo que vai passando muito rápido e que, mesmo com tudo o que vai acontecendo, ele, o tempo, não está acabando. É uma música esperançosa em que a cantora e compositora transforma todos os demônios de sua vida em sonhos que perseguiu, enfrentou, superou e substituiu por algo em que pode acreditar. Com tudo, e carregando todo o luto que sempre vai estar com ela, a mensagem que fica para todos nós é que com a nossa bagagem e com todos que perdemos ao longo do caminho, precisamos nos lembrar de que estamos vivos e devemos honrar tudo o que passou, vivendo, seguindo em frente.

Christina fecha o álbum com “roses in the rain”, canção que teve uma versão anterior no álbum de canções de ninar para Rosie. Ela se pergunta para onde os espíritos vão quando vão embora e se essas rosas que estão na chuva são tudo o que ainda permaneceu após toda a dor e sofrimento que a perda causou. Me comove que a arte seja um meio de expressão para que possamos encontrar conforto em momentos como esses — muitos encontram conforto na religiosidade, outros, ainda, se entregam para uma vida automática para tentar esquecer a dor, mas a arte ajuda a curar e a compartilhar essa cura, esse conforto. Ajuda a entender os sentimentos tão conflitantes que vem com a perda. E, ainda que ninguém saiba nada sobre a vida após a morte, a arte está aí para que os cenários imaginários possam ser explorados.

Contando com a faixa de 2018, “tiny victories”, a lighter shade of blue é um álbum intimista que pode até não carregar o peso de hits de anos atrás, mas isso não era algo com que Christina Perri estava se preocupando. E não deveria. As canções de Christina mostram a arte pela arte, que cura e é pessoal e intransferível. Mesmo escrevendo sobre as dores e amores que só ela sabe como foram, a cantora transfere para essas canções, e para quem as acolha, experiência únicas No fim, quem ouvir seu álbum poderá encontrar sua versão mais leve de azul e entender que a dor sempre vai estar ali, mas podemos abrir espaço para a luz entrar também.

a lighter shade of blue