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Amelia Shepherd e a síndrome da impostora

Nunca antes se viu entre as incontáveis mulheres de Grey’s Anatomy alguém tão incrível e tão insegura quanto Amelia Shepherd (Caterina Scorsone). Se em Cristina Yang (Sandra Oh) vemos a pessoa confiante e segura de suas habilidades que todas gostaríamos de ser, em Amy vemos exatamente o outro lado da moeda. Acostumada com o posto de “a outra Dr(a). Shepherd”, Amy ilustra da forma mais brilhante possível a Síndrome de Impostora que afeta e paralisa uma parcela desproporcional de mulheres. Felizmente, ela está longe de se resumir a esse traço infeliz e tão realista de personalidade, e possui uma história intensa e dramática como apenas Shonda Rhimes é capaz de criar.

Atenção: este texto contém spoilers de Grey’s Anatomy e de Private Practice!

Apesar de só ter entrado para o elenco fixo de Grey’s Anatomy na décima temporada, Amelia tem uma longa história pregressa que tem sido construída desde sua época como personagem fixa em Private Practice (spin-off protagonizado pela Dra. Addison Montgomery, interpretada por Kate Walsh), entre 2010 e 2012. O (muito) que sabemos sobre Amy dá uma ideia bem precisa sobre sua vida e obra. Aos cinco anos de idade, assistiu junto com o irmão mais velho, Derek (Patrick Dempsey), o pai ser assassinado durante um assalto. Mais tarde na vida, desenvolveu o vício em drogas que é um dos elementos centrais da construção da sua personalidade. Apesar de estar “limpa” desde que se juntou ao elenco de Grey’s, pudemos observar de perto no curso do spin-off alguns dos pontos baixos da trajetória da personagem, que viu o noivo morrer de overdose ao seu lado. Como se isso não fosse suficiente, nossa super-heroína sobreviveu a outras experiências inimagináveis, como a de gestar e dar à luz um bebê anencéfalo, que ficou conhecido como o “bebê unicórnio”, e perder seu irmão mais velho de forma inesperada em um acidente de carro. Isso sem falar do seu próprio tumor no cérebro.

Parece, e de fato é, tragédia demais para uma personagem só, e certamente é tragédia suficiente para deixar qualquer pessoa amargurada para o resto da vida. Mas não foi isso que aconteceu com ela. Apesar disso tudo, Amelia continua sendo uma das personagens mais alto-astral da série, um exemplo de resistência e força, que transforma suas experiências pessoais em ferramentas para ajudar outras pessoas. Esse foi o caso quando April Kepner (Sarah Drew) deu luz ao seu primeiro filho, Samuel, vítima de uma deficiência genética que levou à sua morte pouco depois do nascimento, e Amy soube não apenas respeitar o espaço da colega, como aconselhar os outros colegas, que não faziam ideia de como se portar em uma situação dessas. Foi o caso também durante a décima quarta temporada, quando ela soube reconhecer o vício de Betty (Peyton Kennedy), que ela nem conhecia, e se dispôs a ajudar e apoiar a menina com um carinho e uma paciência que alguém que nunca tivesse passado por isso dificilmente teria conseguido demonstrar.

Todas essas experiências, entretanto, estão longe de resumir toda a personalidade vibrante e própria de Amelia Shepherd. Apesar de ser considerada a irmã problemática da sua grande família, composta por quatro irmãs e um irmão, além dela (a caçula), e de todos os revezes de sua vida, Amy conseguiu se tornar uma neurocirurgiã brilhante. Ainda assim, ela permaneceu por muito tempo à sombra do ego gigantesco e da superproteção do irmão, o que não a impediu de lutar pelo próprio lugar ao sol e pelo espaço para mostrar suas próprias habilidades — mas garantiu muitas crises de insegurança no processo. Amelia passa com frequência por uma mesma jornada que envolve lutar para ter a oportunidade de provar a própria competência, se preparar arduamente para a missão, passar por um momento extremamente tenso de insegurança paralisante no último minuto para, finalmente, brilhar e provar para o mundo (mas nunca para ela mesma) que ela é capaz, sim. Esse mar de insegurança que cerca a ilha que é Amelia Shepherd atingiu seu ápice quando a personagem descobriu, por acaso, do mais completo e absoluto nada, que tinha um tumor no cérebro — justamente na parte que controla os impulsos — com nada menos do que uns 10 anos de idade, o que a faz questionar todas as decisões que tomou durante esse tempo. Ela só se acalma quando Richard Webber (James Pickens Jr.) revisa todos os seus casos e garante que sua taxa de mortalidade, mesmo com o tumor, é menor do que a do irmão. O que não significa que as inseguranças da personagem acabam para sempre.

“I am not fragile. I’m a drug addict. I’ve fallen off the wagon twice, and I’ve gotten back on. That doesn’t make you fragile, Derek. That makes you very freaking strong.”

“Eu não sou frágil. Eu sou viciada em drogas. Eu escorreguei duas vezes, e levantei de novo. Isso não te faz frágil, Derek. Isso te faz extremamente forte.”

No quesito vida pessoal, é preciso ressaltar que Amelia não tem sorte. No curso da história da personagem, ela teve vários romances, mas nenhum durou muito. Começando pelo primeiro noivo, ainda em Private Practice que morreu de overdose —  enquanto os dois dormiam após se drogarem juntos —, passando pelo segundo noivo que conheceu no final do spin-off — e de quem ela fugiu quando foi se juntar à equipe do Grey-Sloan Memorial Hospital, em Seattle —, até chegar ao seu relacionamento mais recente com Owen Hunt (Kevin McKidd), com quem se casou antes da descoberta do tumor e se divorciou logo depois, por divergências básicas que podem ser resumidas na mesma velha história que já acompanhamos com Cristina Yang: ele quer filhos, e ela, não. É evidente a partir de toda essa história que Amy tem problemas com compromisso, e ela própria já associou isso ao fato de que os homens da vida dela têm o péssimo hábito de cair mortos. É até surpreendente que a personagem tenha chegado a se casar com Owen, e mesmo isso quase não aconteceu, incluindo no processo um momento não-tão-breve de pânico e fuga.

Finalmente, sobre a relação de Amy com suas madrinhas de casamento e irmãs por associação que a ajudaram na fuga — ninguém menos que Meredith Grey (Ellen Pompeo) e Maggie Pierce (Kelly McCreary) — essa é uma das muitas relações maravilhosas entre mulheres com que Grey’s Anatomy nos presenteia. Esse assunto vai ser tratado em outro momento, mas é fundamental que essa relação seja tratada aqui porque ninguém é uma ilha e todos nos definimos no processo de nos relacionarmos com os outros. Nessa medida, a relação entre Amy, Mer e Maggie é fundamental para que compreendamos Amelia em toda a sua maravilhosa complexidade e humanidade, na sua presença firme e constante como apoio e suporte para essa família não-tradicional que funciona tão bem.

Amelia Shepherd é uma personagem fantástica e apaixonante, muito além das feições de boneca que compõem a primeira impressão que temos dela. Apesar dos muitos riscos de recair no estereótipo da moça adorável e maluquinha, ela desvia de todos os buracos do caminho para se consolidar como uma personagem incrivelmente forte, não só no que diz respeito à sua personalidade e à superação dos muitos obstáculos colocados em seu caminho, como também na solidez da construção da sua jornada pessoal e na interpretação incrível com que Caterina Scorsone a traz à vida. Ainda que não existissem todos os outros elementos que fazem de Grey’s Anatomy essa série que todos amamos e que está à beira dos 15 anos de vida, a presença de Amy na produção seria motivo suficiente para continuar a acompanhar a trama enquanto for humanamente possível.


** A arte do texto é de autoria da editora Ana Vieira

1 comentário

  1. Uau! Maravilhosa a análise feita sobre Amelia. A considero uma das minhas preferidas justamente pela sua força, coragem e como confronta seus medos. Caterina nos mostra incrivelmente bem as dores e os deleites de seu personagem! Obrigada pela publicação!

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