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“Nunca se renda, nunca desista da luta”: o legado das Sufragistas

Na sequência inicial de As Sufragistas, filme de 2015 dirigido por Sarah Gavron e roteirizado por Abi Morgan, dezenas de mulheres são apresentadas trabalhando em silêncio numa lavanderia enquanto vozes masculinas discutem em voice-over todos os motivos por que o voto feminino era dispensável: mulheres não têm estabilidade emocional suficiente para tomarem decisões políticas; mulheres estavam mais do que representadas pelo voto de seus respectivos maridos, pais ou irmãos; se fosse concedido o direito de voto às mulheres, onde aquilo iria parar? Logo elas desejariam se tornar também parlamentares e sabe-se lá mais o quê. Se os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução Francesa, bem como a verdade de que “todos os homens são criados iguais” da Declaração da Independência dos Estados Unidos ditaram e inspiraram o desenvolvimento das civilizações modernas, sabemos que essas verdades englobavam um número limitado de pessoas — em relação a gênero, raça e classe. Como nos ensinou A Revolução dos Bichos, “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.

Os manifestos da luta pelo direito ao voto abordados têm como cenário a cidade de Londres no ano de 1912, período em que as mulheres já estavam recorrendo à desobediência civil para conseguir seus direitos depois de décadas sendo ignoradas em suas campanhas pacíficas, seus argumentos esnobados e ridicularizados pelos governo britânico. Lideradas por Emmeline Pankhurst, interpretada no filme por Meryl Streep, as sufragistas se reuniam e arquitetavam ataques em torno da cidade para se fazerem ouvidas, num ato de resistência contra a sociedade que tanto as subjugava e tentava contê-las para que não saíssem da posição de mulheres submissas que lhe era conveniente. “Guerra é a única língua que o homem entende”, diz a personagem Maud Watts (Carey Mulligan), criada especialmente para representar a classe de mulheres trabalhadoras daquela época, quando em cárcere por sua participação em atos rebeldes. O que confirma a verdade que já conhecemos: desde a formação da sociedade na Roma antiga até o período atual é preferível que as mulheres mantivessem sua posição inferior à dos homens, e por isso nossos argumentos eram dispensados antes de qualquer consideração séria, restando-nos apenas impulsos de rebeldia para conseguirmos a voz que precisávamos — e ainda precisamos — na tomada de decisões no que diz respeitos à criação de leis e constituição dos direitos. Não por acaso, quando um investigador de polícia tenta convencer Maud a trair o movimento sufragista e agir como espiã, ele a questiona: quem vai prestar atenção no que uma garota tem a dizer? Quem se importa?

As versões cinematográfica e real de Emmeline Pankhurst.

Porque a verdade é que ninguém se importava. As Sufragistas enfatiza não só a falta de representação feminina nas escolhas políticas, mas as consequências de um Estado que não era jamais decidido pelas mulheres e, consequentemente, era administrado por homens e para homens. Numa sociedade que subjuga as mulheres, não é surpresa que uma menina de treze anos, que não deveria nem estar trabalhando, seja estuprada pelo patrão — numa história que presumivelmente se repetia, com um total de zero consequências. Não é de se estranhar que as mulheres não tivessem nenhum direito sobre a guarda dos filhos, dependendo da boa vontade dos pais deles. Não causa espanto que as mulheres ganhassem menos para fazer o mesmo trabalho que os homens. Depois dos avanços trazidos pela Revolução Industrial, a mão de obra feminina foi muito bem-vinda porque eram vistas como uma vantagem para o mercado capitalista — ter mulheres e crianças no mercado era sinônimo de mão de obra barata, e elas não tinham opção a não ser aceitar o salário desigual e as injustas condições de trabalho por necessidade. No entanto, isso não significava que o trabalho dentro de casa havia sido substituído; era uma tarefa a mais que precisavam assumir além das longas horas da jornada de trabalho. O filme apresenta as mulheres e apenas as mulheres como aquelas que levaram à conquista do voto feminino ainda com restrições em relação à posse de propriedade em 1918 ou sem restrições em 1928.

As sufragistas, cada vez mais aflitas com a falta de efetividade de seus protestos, ignorados e revidados com grande violência por parte da polícia, passaram a agir buscando maior efeito. Emily Davison (no longa interpretada por Natalie Press) foi responsável por uma das ações mais marcantes de todo o movimento. As sufragistas precisavam desesperadamente de visibilidade para a causa poder ganhar força, mas a mídia estava sendo subornada pelo estado e os manifestos mais importantes eram noticiados numa reportagem curta do canto de uma página qualquer. Então, em uma corrida de cavalos, buscando um último recurso para chamar a atenção do rei George V, Emily se jogou em frente ao seu cavalo, numa imagem chocante e gravada para a história, ato que trouxe sua morte quatro dias depois. Não se sabe se a intenção de Emily era apenas atrapalhar a corrida ou de fato o suicídio, mas sua morte chamou a atenção para a causa e levou milhares a marcharem nas ruas durante sua procissão fúnebre, que também foi filmada e guardada para sempre. Além de ter sido o acontecimento que intensificou o fervor da causa ao redor do mundo.

As Sufragistas apresenta as imagens das mulheres marchando na procissão de Emily. Em voice-over, agora uma mulher, Maud, lê um trecho do livro Three Dreams in a Desert, da ativista sul-africana Olive Schreiner, passado de mão em mão pelas sufragistas representadas no filme. O trecho diz:

“A mulher andarilha avança no caminho para a liberdade. Ela se pergunta: ‘Estou sozinha, completamente sozinha. Por que vou a esta terra distante?’. E a razão diz a ela: ‘Silêncio, o que você ouve? Milhares, e eles prosseguem por aqui. Os pés daqueles que a seguem. Lidere o caminho.'”

Embora tenham umas às outras e nunca sejam deixadas de lado pelas organizações, as sufragistas — como é o caso de Maud — podiam levar uma vida incrivelmente solitária. Tornada uma pária social por causa de seu ativismo, enxotada de casa pelo marido, impedida de ver o filho que lhe foi tirado, Maud tinha apenas o movimento. O filme nos lembra que desafiar efetivamente o status quo e as opressões, especialmente se o desafio parte do próprio oprimido, tem um custo muito pessoal, demanda sacrifício. Liderar o caminho nunca é fácil, mas o silêncio permite que essas opressões continuem para sempre. Quando vemos, antes dos créditos finais rolarem, as datas do estabelecimento do voto feminino em diversos países de todo o mundo — e daqui de onde falamos lembramos que exercer nossa cidadania é um direito que nos foi garantido desde que nascemos, embora não tenha sido para nossos pais —, sabemos que a luta vale a pena. E que não podemos deixá-la morrer.

Quando aconteceu a première de As Sufragistas em Londres em outubro de 2015, o tapete vermelho foi invadido por um grupo de protestantes; talvez a maior surpresa seja essa: era um grupo de mulheres feministas, representando o Sisters Uncut, formado em novembro de 2014 no Reino Unido para protestar contra o corte nos serviços governamentais oferecidos a vítimas de violência doméstica. Em suas roupas se lia: “mulheres mortas não podem votar”. Na BroadlyReni Eddo-Lodge reporta que não se tratavam de protestos contra o longa — embora as protestantes questionassem o apagamento das sufragistas não-brancas da narrativa do filme. Ao invés disso, a intenção era continuar o legado de luta. Era impedir que olhássemos para trás e acreditássemos piamente que já chegamos longe demais, alcançamos tudo o que poderia ser alcançado. Como se não houvesse motivos para continuar. Uma das ativistas contou a Lodge que Romola Garai, uma das estrelas do filme, estivera em um protesto com elas alguns meses antes, embora não houvesse se unido àquele que aconteceu no tapete vermelho. Helena Bonham Carter afirmou que aquela era a resposta perfeita para o filme, enquanto Carey Mulligan contou que achou o protesto incrível.

O funeral de Emily Davison, que levou milhares de pessoas às ruas.

O ponto defendido pelo Sisters Uncut era simples: a luta não acabou. De acordo com o The Office of National Statistics, pelo menos duas mulheres são mortas por semana na Inglaterra e no País de Gales, o que significa uma mulher a cada três dias. E, ainda assim, 48% das instituições de auxílio à violência doméstica estão sofrendo por falta de fundos nesses países, berço do movimento sufragista das mulheres. Aqui no Brasil, as estatísticas não estão melhores. De acordo com a coleta de dados feita pela Agência Patrícia Galvão, dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013, 33,2% dos casos foram cometidos pelo parceiro ou ex; homicídios de mulheres negras aumentou em 54% em 10 anos; 85% das brasileiras têm medo de sofrer violência sexual; e o machismo e o alcoolismo são apontados como os fatores que mais contribuem para a violência, em 54 e 31%, respectivamente. São estatísticas alarmantes, que demonstram que a necessidade de luta ainda não terminou, e precisamos mais do que nunca de fortes representantes nessa luta.

Na política, especialmente, ainda temos um grande espaço a conquistar. Um dia, homens temeram que com o direito ao voto as mulheres passariam a almejar cargos políticos, e isso aconteceu. Resta ainda ganharmos o respeito necessário para podermos nos manter nesses cargos e garantir os outros direitos que nos faltam. Mas no curso da história, mulheres não passaram por seus mandatos sem uma considerável carga de questionamento e oposição dentro do parlamento ou do senado, vide o governo de Margaret Thatcher, ex-Primeira Ministra britânica (e a primeira mulher a ocupar o cargo), e Dilma Roussef, ex-presidente do Brasil (exonerada de seu cargo antes do término do mandato por um golpe político), só para citar alguns exemplos. Eles não confiam em nós. Não querem confiar em nós. Até mesmo algumas mulheres, aquelas que ignoram as bases da luta feminista por distorção dos conceitos, não confiam em nós. Essas são algumas feridas que carregamos nessa batalha — não ter todo o apoio que poderíamos receber. No entanto, se isso não impediu as sufragistas de lutarem pela causa, não irá nos impedir também. Como disse Pankhurst no filme: “Não queremos quebrar as leis. Queremos fazer as leis.”

Dificilmente faremos as leis enquanto a participação feminina no legislativo for tão baixa. Se hoje temos o direito não só de escolher nossos representantes como também de sermos esses representantes, ainda são muito poucas mulheres no Congresso. Após as últimas eleições, em 2014, os resultados não eram muito animadores: 8,8% do total na Câmara, 13,6% do Senado. Entre os deputados estaduais eleitos, 11,4% eram mulheres. Nas eleições municipais do ano passado, apenas 13,5% de todos os vereadores eleitos eram mulheres. O número de prefeitas eleitas — 11,57% do total — diminuiu muito levemente em relação a 2012. Nas eleições de 2014, apenas uma mulher foi eleita governadora, no estado de Roraima. Mesmo que mais de cinquenta por cento do eleitorado brasileiro seja composto por mulheres, ainda somos, de modo geral na política, menos de quinze por cento. Não podemos ignorar que o número de candidatas já é baixo em primeiro lugar, mesmo com leis que estabelecem cotas para mulheres no processo eleitoral. E precisamos nos perguntar por quê. Por que menos mulheres se sentem aptas a disputar um cargo político e por que menos eleitores as escolhem como seus representantes. Por que mulheres são preteridas na hora de destinar recursos para as campanhas. Por que uma mulher que ocupa um cargo tão importante quanto a presidência ainda sofre ataques diretamente relacionados a seu gênero.

Hoje, graças às muitas mulheres que lutaram por nós, temos o direito ao voto e a escolha de nossos representantes também nos pertencem. Mas ainda precisamos ser melhor representadas — independentemente de nossos posicionamentos individuais. Nove, onze, treze por cento não são suficientes. Precisamos de mulheres que falem por nós, de nossas pautas, de nossos problemas, porque — assim como as sufragistas — não podemos depender da boa vontade alheia. Em um dos pôsteres de divulgação de As Sufragistas, colorido com o roxo e verde do movimento, está uma tagline que diz: “o momento é agora”. Em 2015 (ou 2017), mais de setenta anos depois da conquista que o filme retrata, a frase continua verdadeira. Enquanto mulheres, ainda precisamos a lutar todos os dias por uma sociedade mais justa e igualitária, por uma sociedade que não assassina, violenta e viola suas mulheres, que não nega direitos reprodutivos, e que é justa com todas as mulheres, e não só algumas.

Nem tudo foram flores no movimento sufragista. À época do lançamento do filme de Sarah Gavron, uma sessão de fotos foi feita com as atrizes vestindo camisetas nas quais se lia uma das frases ditas por Emmeline Pankhurst em seus discursos: “prefiro ser uma rebelde a uma escrava.” Ver mulheres brancas e privilegiadas vestindo camisetas que falavam em escravidão, comparando situações que simplesmente não são comparáveis, em pleno século XXI gerou revolta na internet. Quando Pankhurst proclamou essa frase, é claro que ela se referia a um conceito geral de escravidão — de “falta de autonomia; dependência; sujeição”. Mas repeti-la em 2015, fora de contexto e com a consciência que teoricamente desenvolvemos sobre como o passado escravocrata marcou a história coletiva de tantas nações e continua demonstrando seus efeitos até hoje, é irresponsável. Especialmente quando consideramos a presença do racismo na luta sufragista do século XIX. Em um artigo no Telegraph, Radhika Sanghani explica que era comum entre as sufragistas a comparação com a escravidão, como um jeito de exagerar sua condição de desigualdade — embora fossem situações muito diferentes, e a escravidão fosse, para muitas outras mulheres que não estavam discursando em praça pública, um passado recente e real.

Sanghani conta que, no Reino Unido — o movimento retratado em As Sufragistas — existem poucas evidências da participação de mulheres negras no movimento, embora muitas britânicas de origem indiana tenham se juntado aos protestos (algo que o filme não contempla). Nos Estados Unidos, a situação era mais complicada. Com a situação de segregação racial institucionalizada em diversos estados americanos, muitas sufragistas se valeram abertamente do discurso racista a fim de promover a necessidade do voto feminino, chegando a firmar até mesmo que ele fortaleceria a “supremacia branca”. É uma realidade incômoda, mas é uma realidade. Se o movimento sufragista nos deixou um legado de luta, também é falho porque englobava apenas algumas mulheres. A conquista do voto feminino foi grande, significativa e muito importante, mas a muitas de suas líderes faltava empatia em relação às lutas que não eram delas e a compreensão de que as opressões que elas não viviam também eram reais e condenáveis. E esse ainda é um problema. Um século mais tarde, precisamos continuar lutando e, principalmente, expandir essa luta.

A conquista dos direitos das mulheres caminha em pequenos passos. O primeiro país a conceder o voto às mulheres foi a Nova Zelândia em 1893. O país mais recente foi Arábia Saudita em 2015. Isso mesmo — dois anos atrás. A primeira reivindicação ainda está correndo e temos muitas outras em sequência. Pensar que a sociedade em que vivemos pode ser considerada avançada, já que nascemos podendo votar, testemunhamos a participação das mulheres na política ainda que em menor escala, e podemos fazer escolhas sobre nosso modo de vida e comportamento, enquanto em outros lugares do mundo as mulheres ainda estão em fase de conquistas primárias como a do direito sobre os próprios filhos. A cultura do patriarcado ainda é muito dominante. Passamos séculos nas posições mais baixas da hierarquia social, porque nos fizeram acreditar que era assim que a ordem deveria ser, mas não mais. Conhecemos outra realidade, outras possibilidades, e não vamos nos render, não vamos desistir da luta. Independente dos meios que precisemos usar.

Texto escrito em parceria por Fernanda e Yuu