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Mad (Wo)Men

Quando comecei a assistir a Mad Men, foi menos por algum interesse particular na série do que por um misto de curiosidade com um pouquinho de má vontade, tudo devido aos muitos Emmys que ela ganhou ao longo de vários anos (tenho certa preguiça de coisas que ganham prêmios todo ano, embora hoje eu concorde e ache que merecia mais, inclusive). Então, sabia muito pouco, quase nada, a respeito — exceto que a trama se passava nos anos 1960, dentro de uma agência de publicidade. E que ela era uma história sobre homens, claro, os tais “mad men” do título.

Foi uma grande (e grata) surpresa descobrir que, apesar de a série falar em homens até no próprio nome, ela tinha uma gama bem significativa de ótimas personagens femininas. O que quer dizer complexas e bem desenvolvidas, além de terem suas próprias narrativas. Vindas de ambientes familiares diferentes, com aspirações diferentes, ocupando espaços diferentes. Com personalidades, imaginem só. O protagonista é Don Draper (Jon Hamm), mas o mais significativo entre os acontecimentos do piloto é a chegada de Peggy Olson (Elisabeth Moss), a nova secretária dele, aos escritórios da Sterling Cooper — o que não acontece por acaso. A década de 1960, marcada por movimentações e manifestações por direitos civis, pela aprovação do Equal Pay Act (que buscava acabar com a disparidade na remuneração de homens e mulheres nos Estados Unidos), pelo feminismo, assistiu a uma sociedade, cultura e valores em rápida mudança. O mundo no qual Peggy chega é um mundo quase exclusivamente masculino, mas ele começa, aos pouquinhos, a mudar. E ela é parte integrante disso.

A man’s world

Um dos motivos pelos quais já vi algumas pessoas desgostarem de Mad Men é o machismo. Ouvi e li pela internet afora que a série é muito machista ou trata muito mal as mulheres. Assistir ao piloto é um incômodo — porque ele é cheio de demonstrações de machismo. Só que tudo é visto através da perspectiva de Peggy, e por isso sentimos o mesmo incômodo que ela. É um mundo não só quase que exclusivamente masculino, mas um mundo extremamente sexista, e a narrativa não faz pouco caso disso, nem tenta fingir que ele não existiu. Peggy é, junto com Don, a personagem mais importante da série e muito da trajetória dela tem a ver com prosperar num meio que a rejeita tanto. Ela deixa de ser secretária, num determinado momento, mas nem sempre os clientes aceitam trabalhar com ela. Muitas das reuniões de trabalho são marcadas em clubes masculinos, de modo que ela é necessariamente excluída. Peggy prova de novo e de novo que é brilhante, mas nem sempre isso é suficiente. Às vezes a “garotinha” não é levada a sério. Às vezes ela precisa ouvir que alguém não gosta de trabalhar com mulheres.

Mad Men
Not amused.

Joan Holloway (Christina Hendricks) é outra personagem de destaque nos escritórios da Sterling Cooper. Ela é uma espécie de secretária-chefe da agência, que conhece melhor do que ninguém o funcionamento daqueles escritórios. Joan, principalmente nos anos iniciais, é um pouco dúbia, e é difícil ter certeza sobre o que ela quer quando resolve dar conselhos a Peggy: ajudar ou complicar. Mas elas acabam estabelecendo uma relação interessante, que não é exatamente amizade, mas definitivamente não é inimizade nem nenhum tipo de competição realmente significativa. É uma espécie de companheirismo que, acima de tudo, surge da identificação de estarem caminhando juntas num espaço que nem sempre as aceita. Joan é muito popular no escritório, muito popular com os clientes — porque ela é objetificada o tempo todo. Uma das tramas mais incômodas (e horríveis) que a série explorou envolvem Joan, uma enorme dose de machismo e muita de falta de bom senso e, eu diria, humanidade da parte de seus colegas homens. Mas ela é uma personagem com um grande instinto de preservação e um empreendedorismo admirável. Não tem nada com que Joan não saiba lidar.

Desperate housewives

Então Don Draper tem uma esposa, uma casa no subúrbio, um casal de filhos, um cachorro. Betty Draper (January Jones) é a imagem da perfeita dona de casa vintage que com certeza você já viu em alguma publicidade da época. Ela não tem um fio de cabelo fora do lugar, está sempre bem arrumada, passa o dia cuidando da casa, espera pelo marido com a comida na mesa. Ele não apareceu? Vida que segue. Ele traz convidados bêbados inesperados para jantar? Paciência. Ele precisa que ela esteja em perfeito estado e só faça os comentários certos num jantar de negócios? Ela vai. Mas a verdade é que Betty é uma personagem muito difícil. Às vezes, ela lida com as coisas de uma maneira bastante infantil (o relacionamento mais significativo que ela estabelece na primeira temporada é com uma criança de mais ou menos seis anos). E Betty é amarga, o que não é um traço particularmente cativante. Ou melhor, amargurada. Mas a narrativa nos apresenta tantos motivos para que ela seja assim (ou, talvez, para que tenha ficado assim) que é impossível não sentir alguma empatia. Betty tinha algumas aspirações profissionais e estudos em curso, abandonados muito cedo porque ela casou, como era esperado que fizesse — e talvez ela tenha sido feliz e talvez um dia o marido tenha sido um bom marido, mas em algum momento isso mudou. No ano de 1960, a vida parece muito sufocante. Betty às vezes parece imatura demais para ser mãe, embora não seja exatamente ruim. Ela é presente, tenta dar apoio. Ela tenta. Betty só queria algo a mais — tenho uma dúvida sincera sobre o nome “Betty”, e se ele foi escolhido por acaso.

Mad Men
Not amused, parte II.

Hey, mama, welcome to the 60’s

Megan Calvet (Jessica Paré) chega em Mad Men de maneira meio repentina, para preencher um papel importante. Mas ela ganha uma personalidade completamente nova em relação às outras mulheres da série. Megan representa uma geração um pouco mais jovem e um pouco mais livre, além de ser filha de acadêmicos mais liberais, que nem são americanos, e parecem esperar algo diferente da filha. Não o casamento perfeito, mas que ela corra atrás daquilo que quer fazer e daquilo que acredita ter talento para fazer. Megan é mais espontânea, tem um espírito mais livre, e parece muito mais feliz que as três outras personagens juntas. O que não impede que um casamento complicado com um homem extremamente difícil não acabe tirando um pouco da vivacidade dela. Megan acaba protagonizando discussões envolvendo jantares esfriando na mesa (que tem muito pouco a ver com jantares) que são muito reveladoras. Ela desiste temporariamente de suas aspirações pessoais, e quando resolve retomá-las, para persistir mesmo ouvindo um não após o outro, ouve do marido, cuja carreira ela respeita tanto, que ser atriz é essencialmente a mesma coisa que ser prostituta.

Já Sally Draper (Kiernan Shipka) começa Mad Men como uma menininha fofa de cinco anos cuja maior missão é dizer “daaa-ddyyyy” quando Don chega em casa. Personagens infantis e adolescentes em séries essencialmente adultas nem sempre funcionam e às vezes é insuportável assistir às suas tramas, talvez porque os roteiristas não se esforçam para escrever personagens interessantes. São só os filhos, e o mais importante é terem impacto nos pais. Não é o caso aqui. Na terceira temporada, Sally passa por um processo de perda, dor e luto que talvez nem seja muito compreensível para ela, e Kiernan Shipka, a atriz-mirim que a interpreta, entrega as emoções muito bem — talvez aí tenha ficado claro o quanto ela é ótima, porque Sally recebeu cada vez mais destaque, ganhando um papel central. Um repórter do New York Times perguntou ao criador da série se ele não achava que tinha feito Boyhood antes de Boyhood, com Sally. Assistimos a ela crescendo, suas aulas de balé, brigas com a mãe, paixonites de infância, menstruação, beijos desajeitados, cigarros roubados, ataques de fangirl (pelos Beatles!), aquela coisa toda. Ou, numa das cenas mais impactantes envolvendo a personagem, aquele momento em que descobrimos que nossos pais são só pessoas, pessoas falhas, não heróis (só que, no caso dela, um pouco além de todos os limites) — e que os amamos mesmo assim.

É preciso ter cuidado antes de declarar que tal obra é definitivamente feminista, sem erros, o melhor exemplo de representação feminina no mundo — e não acho que Mad Men mereça nenhum desses títulos. Mas ela me surpreendeu, colocando personagens femininas em todos os lugares, desempenhando papéis completamente diferentes. Desenvolvendo essas personagens como qualquer outra, por si mesmas, e não para servir às narrativas masculinas. Tive esse estalo em algum momento da segunda temporada, num episódio que é muito focado nas mulheres da série, e cheguei a comentar: a série chama mad men, mas que personagens femininas maravilhosas.

É. Que bom.

8 comentários

  1. Eu amo e sou obcecada por Mad Men. Não só por que mostra a história da publicidade (minha profissão) mas também por que tem personagens humanos e falíveis. Quando comecei a assistir também ficava muito incomodada com o machismo, mas acho que é um retrato da época e ele é mostrado com certa ironia e costuma ter consequências (em geral ruins). É o mesmo caso de Masters of sex, onde a gente acompanha a Virginia Jonhson se ferrando como mãe criando filho, trabalhando e estudando.
    Depois que vi todas as temporadas, elegi Peggy Olson como minha musa inspiradora e entendi que mais do que a história da publicidade e de Don Drapper, é a história de uma redatora foda que tem objetivos, talento e coragem. E isso é muito inspirador.

    1. Yanic, também acho a Peggy muito inspiradora, apesar de nem ser do meio. Deve ser ainda mais para você! Acho que muita gente ignora o quanto ela é protagonista dessa história, e é tão complexa e interessante quanto o Don. O machismo é realmente muito incômodo de assistir, mas concordo que é um retrato da época, e acho que, se fosse diferente, se tivesse sido suavizado, não seria muito honesto, né? (E quem dera isso tivesse sido 100% deixado para trás.)

  2. Desde que comecei a ver Mad Men, uns anos atrás, nunca pensei na série como machista. Até me surpreendeu ler nesse texto que tem gente que pense assim. Acho muito problemático e raso que as pessoas confundam o retrato de uma determinada situação, comportamento ou época como uma maneira de endossar os mesmos. Nem sempre o posicionamento de um filme, série etc vai estar explícito por meio de discursos ou de didatismo. Em mad men sempre vi o tratamento dado às personagens femininas como algo extremamente positivo. São as mulheres mais interessantes que já assisti, todas desenvolvidas em sua complexidade. Apesar de amar todas, a minha favorita é Betty. Também passei a admirar muito o trabalho de January Jones, talentosíssima ao interpretar alguém tão intensa. Admirei mais ainda depois de saber que ela ouviu do ex-namorado Ashton Kutcher que ela não teria futuro como atriz e seria melhor continuar como modelo (ewww).

    1. Também nunca vi a série como machista de modo algum, pelo contrário. Foi estranho ler esse tipo de coisa – e concordo plenamente com você, não dá pra confundir retratar com endossar. Não sabia que a January Jones tinha namorado o Ashton Kutcher, muito menos que ela tinha ouvido isso dele. Ainda bem que ela não deu ouvidos, porque ela sempre foi maravilhosa como Betty. Aliás, muita gente reclama da atuação dela, o que eu nunca entendi. Acho que as pessoas têm um problema com a característica mais fria e impassível que a Betty busca apresentar pro, mas essa é a personagem e a January sempre interpretou isso com extrema competência.

  3. Olha, minhas personagens do coração são a Peggy e a Joan. Gente… não consigo escolher uma só, chorei tanto, mas tanto com elas. As acho incríveis e fodas!
    Enfim, desde maio de 2015 estou em luto pelo fim dessa série fantástica. Venho tentando acompanhar outras, mas nada com tanta paixão, rsrsrs! Parabéns pelo texto!

    1. Diana, essa sou exatamente eu (exceto pelo fato de as minhas favoritas serem Peggy e Betty, mas amo todas as personagens maravilhosas dessa série). Venho dizendo há tempos pra todo mundo que desde que Mad Men acabou ainda não consegui gostar profundamente de nenhuma outra série. Ainda bem que você me entende. Muito obrigada!

  4. Amei seu texto assim como amo Mad Men e irei defendê-la! Sabia que o próprio Matthew Weiner falou que ele considera a série a história de Don e Peggy e como eles são os dois lados da mesma moeda reagindo de formas diferentes às mesmas situações? E tenho pra mim que essas personagens são tão bem definidas e valorizadas (me recuso a falar “eram” porque até hoje não aceito o fim da série) porque o Matthew se permitiu montar uma writer’s room predominantemente feminina. Cinco dos onze roteiristas principais da série são mulheres, um número enorme para os padrões hollywoodyanos.

    Acho que a crítica que mais me incomoda sobre as mulheres da série foi a quantidade de hate que a Megan recebeu depois de se casar com o Don. Quando ela era uma secretária despreocupada que adorava crianças ela era idolatrada, mas foi só ela se casar que surgiu todo tipo de slut shaming. Uma pena porque acho que ela é uma das personagens mais interessantes, principalmente por ser de uma geração mais próxima a da Sally que a de Joan, Peggy e Betty…

    E também acho um absurdo chamar Mad Men de série machista por sua abordagem naturalista. Eles mostraram como era na época e como os tempos mudaram. Se é para assistir uma série de época com uma abordagem mais fantasiosa a respeito do tema eu assisto Miss Fisher’s Murder Mysteries (que também é maravilhosa, aliás. Vocês poderiam fazer um post sobre essa maravilha, hein?)

    1. Que bom que você gostou do texto! Também estou sempre pronta pra defender Mad Men (acho que esse texto é prova disso) – e olha que eu nem sabia que o Matthew Weiner tinha uma writer’s room com tantas mulheres. A única roteirista da série (além dele, claro) que eu realmente “conheço” é a Semi Chellas (The Strategy episódio mais lindo ever na vida, etc). As críticas tanto à Megan quanto à Betty são extramente incômodas pra mim. Claro que nenhuma das duas é perfeita (e nem deveriam ser), mas não entra na minha cabeça que tem pessoas que literalmente idolatram o Don e não conseguem estender um pouquinho de compreensão pras esposas dele (bom, tenho comigo que essas pessoas também têm zero compreensão com o próprio Don – se tivessem, não ficariam chamando ele de “mito” por aí, né?). Não assisti Miss Fisher’s Murder Mysteries ainda, mas está na lista (e agradeço em nome de todas nós pela sugestão!)

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