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Crescer em meio a guerra: Grama, de Keum Suk Gendry-Kim

A literatura tem muitas funções: formar e informar, divertir, emocionar ou até mesmo assustar, convencionar regras ou subvertê-las. Uma dessas atribuições que podemos dar aos livros é a criação de memória, de momentos, de vidas específicas, fabuladas ou reais, de eventos relevantes. É esse o caso de Grama, história em quadrinhos escrita pela autora sul coreana Keum Suk Gendry-Kim em 2017. Lançada no Brasil três anos depois pela editora Pipoca & Nanquim e traduzida por Jae HW, a graphic novel foi publicada em diversos idiomas e colecionou prêmios pelo mundo. Mais do que seu sucesso comercial, é relevante apontar a sua importância como objeto formador de memória. Grama traz à tona um período sombrio da história mundial, baseado na vida de uma jovem chamada Ok-sun Lee, que foi levada pelo Exército Imperial Japonês para ser mulher de conforto.

As mulheres de conforto

A obra começa com uma importante nota a respeito do termo “mulheres de conforto”, que era muito utilizado para referir-se às mulheres escravizadas pelo Exército Imperial Japonês. Sendo um grande eufemismo para a situação de prostituição forçada que elas viviam, o livro faz questão de sinalizar como o termo traz apenas a perspectiva de um dos lados da história. Só então a narrativa inicia, os traços que se assemelham ao nanquim formando os desenhos da paisagem chinesa do ano de 1996. A protagonista Ok-sun Lee já está na terceira idade, vivendo com filhos e netos em Longjing. Após um corte temporal, o que vamos conhecer a seguir é a sua jornada da juventude e todas as dores de gerações de mulheres coreanas que tornaram-se escravas sexuais durante a Segunda Guerra Sino-japonesa.

A HQ remonta a infância de Ok-sun na década de 1930, na área rural de Busan, em uma Coreia então colonizada pelo Japão. Em 1934, ela é uma criança alegre, curiosa e com muita vontade de estudar como seus irmãos, o que não é permitido. No entanto, sua família é pobre e mal consegue alimentar todas as bocas da casa. Conforme a garota vai crescendo, sinal que se dá pela troca dos dentes e do crescimento do cabelo nas ilustrações, a vida vai ficando mais difícil e, tentando melhorar a criação dos filhos, a família de Ok-sun doa a menina para que uma outra família cuide dela. Infelizmente, isso significa a separação do núcleo familiar para sempre.

Grama

Enquanto isso, irrompe o conflito entre China e Japão, em julho de 1937. O Exército Imperial Japonês ocupava o território chinês com rapidez. Um dos momentos mais terríveis foi o massacre de Nanquim em dezembro do mesmo ano, que terminou com mais de 300 mil vidas perdidas, entre elas muitas mulheres e crianças. Na Coreia, a pobreza aumentava e a situação de Ok-sun Lee não era das melhores: sua família foi enganada e ela havia sido vendida pelos pais adotivos para trabalhar em um restaurante. Em 1942, aos 15 anos, Ok-sun é sequestrada pelos japoneses enquanto voltava de uma tarefa de trabalho. Levada para uma espécie de campo de concentração, era o início de seu pesadelo: a jovem era agora uma “mulher de conforto”. Os dias de Ok-sun resumiam-se a esperar em uma casa, em condições precárias, a chegada dos soldados. A garota passa a ser abusada diariamente, assim como outras meninas na mesma condição.

Questão de memória: como contar uma tragédia?

Grama é, sem a menor dúvida, uma história complexa e pesada. Além de todos os contextos sócio-históricos que envolvem as relações entre os três países no século XX, o que reflete até hoje, é também a narrativa de um crime contra a humanidade. E Keum Suk Gendry-Kim tem muito cuidado ao abordar todos os temas que envolvem a história de Ok-sun Lee, o que torna-se um dos trunfos da obra. A autora mescla o passado da guerra com o período de escrita da HQ, introduz-se na narrativa e conta seus encontros com a idosa Ok-sun. Com extrema delicadeza, ela mostra os efeitos da guerra na personalidade da mulher, que não deixa de lutar por justiça para as mulheres de conforto, apesar da idade avançada.

Além disso, Gendry-Kim é muito responsável ao transmitir os horrores de crescer em meio ao conflito. Ok-sun Lee era apenas uma adolescente quando foi levada pelo Exército Imperial Japonês. Todas as suas experiências de formação como pessoa ocorreram dentro das casas de conforto, como a primeira menstruação, a descoberta da amizade com Yuna, a perda da virgindade pelo abuso sexual. Apesar de extremamente triste, a autora consegue mesclar com momentos de força que mostram que a vida não parou de acontecer, sabe o que mostrar por meio das ilustrações e onde apenas as palavras bastam.

Grama

No entanto, saber que momentos tão difíceis estão na premissa do livro não diminui o impacto dos fatos sobre os leitores. Vivendo com outras mulheres tão jovens quanto ela, Ok-sun desenvolve-se cercada pelas grades que a confinavam e pela morte que poderia aparecer a qualquer momento. Mesmo após a libertação do Exército Imperial Japonês, a vida das mulheres de conforto foi dura, abandonadas em outro país e devastadas pelos traumas da guerra. Ainda assim, Ok-sun consegue se erguer mais uma vez, feito a grama que nomeia o livro.

O calor da primavera

Foi somente na década de 1990 que a questão das mulheres de conforto foi considerada crime de guerra, fazendo crescer o debate acerca dos direitos femininos, o que perdura até os dias atuais. Por mais árduo que seja relatar e ler sobre uma vida tão sofrida como a de Ok-sun Lee, Grama é uma obra com toques de esperança, esperança essa tão certa quanto a chegada da primavera após o inverno. Crua quando deve ser, poética para amenizar e esteticamente muito bonita, é a história diante de nossos olhos e, mais que isso, é um lembrete para que a civilização atual não cometa os mesmos erros do passado.

“O solo, por muito tempo adormecido, vai despertar, e a pequena grama vai se reerguer em meio às folhas secas, queimadas pelo frio. Mesmo derrubada pelo vento e pisoteada por muitos, a grama sempre se reergue. Pode ser que ela te cumprimente de forma tímida, passando de raspão pelas suas pernas.” (p. 477)


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