Categorias: HISTÓRIA, LITERATURA

Herdeiras do Mar: a desconhecida história das mulheres coreanas

Ao final de Herdeiras do Mar, a autora Mary Lynn Bracht escreve: “Alguns historiadores acreditam que entre cinquenta mil e duzentas mil mulheres coreanas foram sequestradas, enganadas ou vendidas como escravas sexuais para o uso dos militares japoneses durante a colonização da Coreia pelo Japão”. Para além de toda a trama que Lynn Bracht escreve em seu livro de estreia, publicado no Brasil pela Editora Paralela com tradução de Julia de Souza, essa informação não saiu da minha cabeça depois que concluí a leitura de suas pouco mais de trezentas páginas. A história que conta Herdeiras do Mar, de Hana e Emiko, pode ser fictícia, mas foi baseada em fatos reais. Fatos que não podem ser apagados, mas que tentaram ser excluídos da História por parte do governo japonês.

Aviso de gatilho: este texto fala sobre estupro e agressões sexuais.

O exército japonês começou a lutar pela dominação mundial em 1931, quando o Japão invadiu a Manchúria, região histórica do leste da Ásia que equivale, atualmente, à região nordeste da China. Essa invasão desencadearia, no ano de 1937, a Segunda Guerra Sino-Japonesa, conflito que se encerrou apenas em 1945 quando o Japão, ao lado dos países do Eixo, perdeu para os Aliados a Segunda Guerra Mundial. O Japão invadiu a Coreia entre 1910 e 1945, e invadiu a China outras incontáveis vezes. Em todas essas invasões e ocupações, os japoneses foram extremamente cruéis: por meio de assassinatos, estupros e o apagamento da identidade de chineses e coreanos, eles dominaram os povos invadidos, submetendo-os aos seus desejos expansionistas, o que rendeu um sentimento anti-japonês nos dois países que perdura até os dias de hoje.

“Palavras são poder, seu pai lhe disse certa vez depois de recitar um de seus poemas políticos. Quanto mais palavras você conhece, mais poderoso você fica. É por isso que os japoneses proibiram nossa língua nativa. Limitando nossas palavras, eles estão limitando nosso poder.”

E se a guerra já é um conflito que dizima populações inteiras de maneira geral, ela é ainda pior para meninas e mulheres, conforme conta Mary Lynn Bracht em Herdeiras do Mar. Aqui, por meio da história das irmãs Hana e Emiko, acompanhamos as dores, os temores e as incertezas de se viver em meio a um conflito armado e como a cada dia há um novo terror à espreita. O livro tem início no verão de 1943, quando a Coreia já estava ocupada pelo exército japonês há 33 anos. Hana, uma adolescente de dezesseis anos, não conhece outra realidade que não a de se esconder dos soldados japoneses que aparecem na Ilha de Jeju, onde vive com a família, e de jamais ficar sozinha em suas presenças. Sua mãe diz que meninas que ficam próximas aos soldados japoneses nunca mais são vistas, e esse pensamento está sempre latente em Hana, tanto que, quando sua irmã mais nova, Emiko, nasce, ela se torna sua maior responsabilidade.

Hana fala japonês fluentemente, estuda a história japonesa na escola e sabe absolutamente tudo sobre a cultura de seus invasores. Ela, assim como todos os coreanos, são proibidos de se comunicar em sua língua nativa e são considerados cidadãos de segunda classe em seu próprio país — o que não diminui em nada o orgulho que ela sente em ser coreana. Hana e sua mãe fazem parte de um grupo de mulheres que trabalha no mar, coletando peixes e animais marinhos, para vender no mercado, as haenyeo. Mesmo que elas desfrutem de certa liberdade e autonomia, podendo frequentar o mercado e levar o alimento para suas famílias, a ocupação japonesa ainda é um assunto tabu que não deve ser tratado em público. Ainda que os coreanos estejam cansados dos altos impostos cobrados pelos japoneses, das “doações” forçadas para ajudar na guerra, além da captura de seus homens para lutar na linha de frente e de suas crianças para trabalhar em fábricas no Japão, há muito pouco, ou quase nada, que eles possam fazer a respeito.

É num dia de muito trabalho no mar que Hana vê o perigo se aproximar de sua irmã, que espera por ela e sua mãe na beira da praia. Um soldado japonês se dirige exatamente para o local em que a menina está, sentada ao lado da pesca do dia, escondida por algumas rochas, e Hana não pensa duas vezes antes de nadar em sua direção para protegê-la. Hana nada o mais rápido que seu corpo permite, sempre tendo em mente a proteção da irmã mais nova, e é assim que ela chega à praia antes que o soldado japonês encontre a menina. E é assim, também, que ela é levada para longe da família no lugar de Emiko. O soldado Morimoto a leva para um comboio com outras meninas e o destino de Hana é a Manchúria, a quilômetros da Ilha de Jeju.

“Pelo menos ela salvou uma garota dos soldados. Mas sonhou alto demais ao pensar que poderia ter salvado duas.”

Na Ilha de Jeju, como uma haenyeo, Hana vive de acordo com uma tradição secular. Ela e as demais mulheres da ilha, incluindo sua mãe, trabalham em uma função perigosa e lucrativa, capaz de garantir o sustento de toda uma comunidade. Mas a independência não fará mais parte da rotina de Hana depois que ela é entregue a um bordel na Manchúria onde será obrigada a trabalhar junto com outras jovens como uma “mulher de consolo”. Com apenas dezesseis anos, Hana é retirada de sua família e submetida a uma condição humilhante e desumana num bordel militar, sendo estuprada incontáveis vezes em um único dia, seis dias por semana. No sétimo dia, ela e as demais meninas e mulheres precisam cuidar da manutenção do bordel. Embora sofra as mais inimagináveis atrocidades, Hana é resiliente e luta para manter no coração o sonho de um dia reencontrar sua família. A narrativa de Herdeiras do Mar é dolorida. Por diversas vezes, é muito difícil prosseguir com a leitura, mas Mary Lynn Bracht tem uma capacidade ímpar de mostrar o que é necessário mesmo que isso signifique ficar com o coração despedaçado no processo.

Em paralelo ao que acontece com Hana no verão de 1943, acompanhamos também a trajetória de Emiko, na Seul de 2011. A irmã mais nova de Hana, por quem a menina trocou a vida por proteção, é uma idosa repleta de culpa e saudades. Emiko sobreviveu a duas guerras e à ocupação japonesa, mas não consegue encontrar paz de espírito e menos ainda preencher o vazio que pesa em seu peito devido à ausência da irmã mais velha. Em Seul, Emiko participa da milésima manifestação em frente à embaixada japonesa, que pede pelo reconhecimento dos crimes de guerra do Japão contra meninas e mulheres coreanas, e também de uma inauguração que a surpreende: uma estátua, em homenagem às “mulheres de consolo”, é revelada, e a semelhança do rosto da estátua com sua irmã perdida faz com que Emiko relembre passagens doloridas de sua vida.

Herdeiras do Mar usa da ficção e das histórias de Hana e Emiko para contar um dos capítulos mais sombrios da história da Coreia. Das dezenas de milhares de meninas e mulheres escravizadas pelo exército japonês, apenas quarenta e quatro ainda estavam vivas quando Mary Lynn Bracht concluiu seu livro. São elas as porta-vozes de seu cativeiro, como sobreviveram e como conseguiram voltar para casa. A autora frisa que é impossível saber o que aconteceu com todas as outras meninas e mulheres que morreram antes de terem a chance de dizer ao mundo o que passaram, sendo que milhares delas pereceram em terras estrangeiras, longe de suas famílias que nunca puderam ter certeza do que de fato aconteceu a elas. Muitas das sobreviventes não tiveram a oportunidade — ou a liberdade — de contar suas histórias quando conseguiram voltar para suas comunidades devido ao preconceito por terem sido “mulheres de consolo”. Além da Coreia ser uma sociedade patriarcal, também se baseia na teoria confuciana de que a pureza sexual é de enorme importância para as mulheres. Logo, muitas dessas escravas sexuais precisaram se manter em silêncio, sofrendo sozinhas com suas experiências traumáticas de abuso e dor.

Herdeiras do Mar

Além do trauma intrínseco ao estupro, muitas dessas mulheres também precisaram lidar com problemas médicos decorrentes da violência rotineira, como estresse pós-traumático e a incapacidade de se reintegrar na sociedade. Mary Lynn Bracht escreve que muitas das sobreviventes viveram na pobreza, sem cuidados na velhice, e que nunca foram prioridade do governo coreano após o final da Segunda Guerra Mundial. Na sequência do conflito mundial, a Guerra da Coreia, que culminaria na divisão do território entre Coreia do Norte e Coreia do Sul, teve início e seus respectivos governos tiveram que reconstruir infraestruturas inteiras, deixando o drama das “mulheres de consolo” em segundo plano. Foram necessários outros quarenta anos para que a questão das mulheres escravizadas sexualmente viesse à tona, o que aconteceu quando Kim Hak-sun, em 1991, compartilhou sua história com a imprensa. A partir de então, outras mulheres foram a público contar suas histórias pessoais, contabilizando mais de duas mil delas.

A Estátua da Paz presente em Herdeiras do Mar de fato existe e está instalada em Busan, próximo ao consulado japonês na Coreia do Sul: é uma estátua de bronze de uma jovem mulher coreana que está sentada em uma cadeira de madeira com outra igual, porém vazia, ao seu lado. O monumento foi erguido em memória a todas as meninas e mulheres forçadas à escravidão sexual militar e foi causa de outra rusga entre Coreia e Japão visto que, para seguir em frente sobre o tema e pudessem desenvolver uma relação cordial, os japoneses queriam a remoção da estátua. Remover a estátua, escreve Mary Lynn Bracht, é o primeiro passo para a negação da história das mulheres na Coreia do Sul. Os termos foram negados e as mulheres coreanas continuaram a procurar por uma solução verdadeira que pudesse colocar os dois países em termos razoáveis para o acordo, visto que apagar os crimes de guerra japoneses não é uma resolução capaz de honrar as milhares de mulheres que perderam suas vidas para os horrores da guerra.

“A lista de mulheres que são estupradas em tempos de guerra é longa e vai continuar crescendo a menos que nós incluamos o sofrimento das mulheres em tempos de guerra em livros de história, que recordemos em museus as atrocidades cometidas contra elas e que lembremos das mulheres e garotas que perdemos com a construção de monumentos em sua honra, como a Estátua da Paz.”

A história de Hana e Emiko pode ser fictícia, com suas vozes alcançando muitas pessoas ao redor do mundo por meio da narrativa delicada de Mary Lynn Bracht, porém, os horrores das guerras ainda seguem ceifando a inocência e a infância de milhares de meninas, roubando os sonhos e o futuro de milhares de mulheres. Em lugares como Uganda, Serra Leoa, Ruanda, Mianmar, Síria, Iraque, Afeganistão, Palestina, e tantos outros, essa ainda é a realidade das meninas.

De acordo com a Organização das Nações Unidas, a ONU, em levantamento de dezembro de 2019, o mundo tem mais de 40 milhões de vítimas da chamada “escravidão moderna” — o termo abrange diversas práticas de trabalho forçado, servidão por dívida e tráfico de seres humanos. Refere-se, basicamente, a situações que envolvem a exploração de uma pessoa que não pode se recusar devido a ameaças, coerção, engano e abuso de poder. Desse total, mulheres e meninas representam 99% das vítimas na indústria comercial do sexo e 58% em outros setores. O Relatório Global sobre Tráfico Humano, apresentado em Viena, na Áustria, em 2018, analisou cerca de 24 mil casos documentados em 2016 em 142 países: desse total, a exploração sexual somou 59% de todas as ocorrências, sendo o crime mais frequente, o que se agrava em áreas de conflitos armados. O tráfico de pessoas em locais de conflitos armados, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), alcançou proporções terríveis com crianças-soldados, trabalhos forçados e escravidão sexual. Grupos armados em zonas de conflito na África Subsaariana e no Oriente Médio, por exemplo, transformam meninas e mulheres em escravas sexuais, algo que aconteceu com Hana, em Herdeiras do Mar, e com Nadia Murad, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 2018, antes de ser resgatada. Nadia, que pertence à minoria yazidi no Iraque, foi sequestrada e violentada pelo grupo extremista autodenominado Estado Islâmico e hoje luta contra o tráfico sexual de mulheres.

Herdeiras do Mar é um livro dolorido e necessário. Dolorido, pois é impossível ler a história de Hana e saber que tudo ali, naquelas pouco mais de trezentas páginas, aconteceu de verdade com milhares de mulheres, e ainda acontece diariamente ao redor do mundo. Necessário, por trazer mais foco para um assunto que chega a passar despercebido nas aulas de História quando estudamos as grandes guerras. Para além de todas as perdas óbvias e sofrimento intrínseco a um estado de guerra, é preciso olhar pelas mulheres e meninas violentadas e escravizadas nesses cenários. A história das ancestrais haenyeo me encantou de maneira única. Esse grupo de mulheres corajosas foi capaz de garantir a sobrevivência de sua comunidade mergulhando diariamente nos perigos do oceano profundo, pescando aquilo que os japoneses não se davam o trabalho de recolher. O companheirismo entre elas, a força que tiram uma das outras para sobreviver, é algo especial que segue sobrevivendo contra todas as probabilidades em um mundo moderno e em constante mutação.

A guerra, terrível e brutal, exige reparação para que a experiência e a dor dos sobreviventes seja conhecida e lembrada. A violência sexual continua sendo utilizada como instrumento de jugo em conflitos armados, isso não está restrito a fatos passados. Milhares de “mulheres consolo” não sobreviveram para contar suas histórias, e cabe a nós, enquanto sociedade, nos certificar que suas vivências não sejam esquecidas. O memorial da Estátua da Paz é um lembrete físico e um símbolo das vidas destruídas pelos horrores da guerra. Esconder ou fingir que crimes desse tipo não ocorreram é matar, mais uma vez, a memória de cada mulher e menina que sofreu nos bordéis militares ao redor do mundo. Os erros do passado não devem ser repetidos, e livros como Herdeiras do Mar, e outros tantos, agem como os receptáculos permanentes desse lembrete: não devemos nunca esquecer.

“A dor vai durar uma vida inteira, mas rememorar ajuda a suportá-la”.

Herdeiras do Mar

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras no NetGalley.


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