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Crítica: A Glória e a Graça

Vamos fazer um exercício de imaginação. Você é mãe solo de dois filhos, que você cria e sustenta muito bem sozinha. Exceto pelos filhos, a única família que você tem é um irmão que você não vê há quinze anos. Um dia você começa a ter uma dor de cabeça que não passa, vai ao médico, e descobre que vai morrer a qualquer momento. É assim que começa A Glória e a Graça, filme brasileiro dirigido por Flávio Ramos Tambellini, que estreia nos cinemas em 30 de março.

Preocupada com o destino que os filhos, Papoula (Sofia Marques) e Moreno (Vicente Kato), vão ter após sua morte, Graça (Sandra Corveloni) decide procurar o irmão, Luiz Carlos, com quem não fala há quinze anos. No reencontro, Graça descobre que Luiz Carlos agora vive como Glória (Carolina Ferraz), e as duas embarcam em uma jornada emocional para superar os problemas do passado e recompor a família em preparação para a morte inevitável de Graça.

A Glória e a Graça é um filme sobre família classe média que se propõe a ser o oposto da família margarina tradicional brasileira. Graça tem dois filhos de dois pais diferentes e nunca foi casada com nenhum deles. Ainda assim ela vive sua vida perfeitamente bem no bairro de Copacabana, cuidando dos filhos e trabalhando sem grandes agitações. Para completar a cena, chega Glória, pronta para ocupar o papel maternal junto aos sobrinhos quando a irmã morrer.

No decorrer do filme, vemos que a mudança de sexo de Glória e os quinze anos de distância não apagam as mágoas do passado. A trama de A Glória e a Graça é, de certa forma, cíclica. A mãe de Glória e Graça morreu também quando as irmãs eram muito jovens e, ficando apenas com o pai, Graça assumiu a responsabilidade de uma parte considerável da criação do irmão. Obviamente não foi uma situação fácil, a ideia de que mulheres nascem prontas para serem mães é construção patriarcal que visa dissimular o que Simone de Beauvoir chama de “escravização da mulher à espécie”. A naturalização da função materna é uma forma cômoda de justificar o confinamento da mulher a essa posição, e o fardo exclusivo que ela assume ao ter filhos, mesmo quando ela não é — na teoria — mãe solo.

Atenção: esse texto contém spoilers!

A necessidade de amadurecer antes do tempo e ocupar o papel de mãe na vida do irmão mais novo criou, de certa forma, uma espécie de ressentimento em Graça com relação ao irmão e à vida em geral. É mencionado apenas de relance no filme que Graça teve problemas com drogas na juventude. A identidade do pai da filha mais velha, que ela mantém escondida, também dá um indício desses conflitos. Só mais para o final do filme o segredo é revelado: Luiz Carlos fugiu ao flagrar o namorado e a irmã na cama, e foi desse homem que Graça engravidou. O fato de Luiz Carlos ter ido embora e, mesmo sabendo do seu paradeiro, Graça não ter procurado o irmão em 15 anos, demonstra claramente, por um lado, os sentimentos conflitantes que ela nutre em relação a ele, e, por outro, a culpa pela traição que se consolida no segredo a respeito da paternidade da filha.

O relacionamento entre Graça e Papoula, por sua vez, aparece como uma representação conflituosa muito comum na psicanálise de Freud. O modelo freudiano da relação entre mãe e filha propõe que a menina e a mãe vivem, inicialmente, uma relação romântica erotizada (edipiana), que evoluiria eventualmente para uma hostilidade à medida que a menina cresce e se afasta da mãe para se apegar ao pai. No caso do filme, a transferência do apego da mãe para o pai é frustrada porque a própria mãe nega à filha a presença e a identidade do pai, acentuando o conflito. Durante a adolescência, a menina sente a necessidade de impor sua própria individualidade, na forma de uma oposição direta e simbólica à mãe, a figura feminina modelo. Em todos os momentos do filme, Papoula rejeita agressivamente o contato e o carinho da mãe, buscando conscientemente contrariá-la sempre que possível.

Outro ponto interessante que pode ser observado, apesar de não ser o foco do filme e de não ter tanto tempo de tela, é a forma que o bullying sofrido por Papoula toma. As agressoras são um grupo de meninas, o que abre uma porta importante para a discussão da rivalidade feminina. Elas não têm nenhuma motivação além de se sentirem melhores ao fazer outra mulher se sentir pior. É relevante também que todas as ofensas mostradas em cena têm alguma conotação sexual, dirigida diretamente à própria Papoula ou indiretamente através da Graça. Isso deixa bastante evidente o quanto a sexualidade feminina ainda é um tabu, a ponto de ser usada como ofensa e como forma (eficaz) de causar vergonha e manchar publicamente a imagem de uma mulher.

Apesar disso, a abordagem tomada por Glória para defender a sobrinha também não é defensável ou justificada. Além de ter ameaçado uma adolescente, coisa que, como adulto, não é eticamente o caminho mais adequado, ela usou a ferramentas misógina do reforço dos padrões estéticos impostos às mulheres para humilhar e manipular a insegurança de uma menina de quinze anos.

Apesar de todos os conflitos abordados, A Glória e a Graça em raros momentos assume um tom pesado. A história é contada de forma leve, com vários momentos pontuais de alívio cômico, passando uma mensagem positiva que não era de se esperar de um filme com temáticas tão potencialmente pesadas. Isso se deve, em parte, a algumas cenas mais fortes da Graça terem sido cortadas no processo de edição, como revelou a atriz Sandra Corveloni durante a coletiva de imprensa de lançamento da obra. Se esses cortes foram para melhor ou desviaram de uma nova dimensão da personagem de Graça para focar em temas que estão atualmente em voga, nós só podemos especular.

A Glória e a Graça é uma produção de baixo custo, filmada em menos de quatro meses — um tempo relativamente curto para obras do tipo. Seu processo de produção, entretanto, durou mais de dez anos, devido em parte a dificuldades em conseguir que alguma produtora se dispusesse a assumir a obra. O argumento e o roteiro são obra de Mikael Albuquerque, que acompanhou a produção até o fim. Em cena, vemos uma presença massiva de mulheres, uma vez que a trama é fortemente centrada nas duas irmãs e nas crianças, sendo os outros dois únicos personagens realmente relevante interpretados pela Carol Marra e Cesar Mello. Infelizmente, não encontramos a correspondência dessa presença feminina marcante por trás das telas, na equipe técnica. Ainda assim, o filme é um lançamento inesperado da Globo Filmes, que é mais conhecida por suas comédias pastelão.

1 comentário

  1. Pq não colocaram uma atriz transsexual para o papel da travesti? Isso remete a uma antiga novela da Globo cujo personagem principal era um negro, porém o ator que interpretava era um branco pintado de preto.

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