Categorias: CINEMA

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre e o labirinto da legalidade

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre começa com Autumn (Sidney Flanigan), uma adolescente do interior da Pensilvânia, descobrindo que está grávida na clínica feminina local. No entanto, apesar de supostamente se tratar de um lugar que deveria ter a saúde da mulher como prioridade, fica imediatamente claro para o espectador que os interesses de Autumn, ou mesmo Autumn como uma pessoa independente, não são do interesse da clínica. Ela está grávida, não sabe o que fazer e nenhuma das pessoas ali lhe ajudará a decidir.

Essa cena inicial estabelece todo o contexto para o filme que vem a seguir: uma exploração da linha complicada entre legalidade e possiblidade e do arcabouço burocrático que, mesmo quando tenta ajudar, esmaga as mulheres que o procuram. A médica da clínica feminina local não é uma vilã e tampouco parece ser (mesmo mais a frente no filme) uma médica ruim ou deliberadamente cruel, apenas alguém fazendo seu trabalho com poucos recursos e uma crença religiosa e Autumn é uma paciente sem outra opção além dela.

É apenas por uma negativa — a médica se preocupa que a adolescente não esteja satisfeita com a gravidez e deseje interrompê-la — que o aborto entra em cena. Autumn não sabia que podia fazer isso, não sabia que possuía escolha e embora essa opção lhe fosse (em parte, chegaremos lá) assegurada por lei é preciso conhecer um direito para poder reivindicá-lo.

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

Escrito e dirigido por Eliza Hittman, Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre pode ser resumido nesse momento: a legalização do aborto é apenas o primeiro passo de uma estrada longa e tortuosa por onde andam as mulheres. Isso porque o aborto é legal nos Estados Unidos em geral, mas há poréns: no estado da Pensilvânia, onde vive a personagem, menores de 18 anos precisam da autorização dos pais para realizar o procedimento. As crueldades dessa cláusula são diversas e sutis, uma vez que exige que meninas ainda submetidas aos seus responsáveis e em geral vivendo com eles façam uma confissão que pode, ela própria, lhes colocar em perigo. Autumn, por exemplo, não pode, por questões que o filme não quer e não precisa explicitar, contar a seus pais que está grávida.

A saída lhe é apresentada por sua prima, Skylar (Talia Ryder): no estado de Nova York ela não precisa da autorização. De posse de uma passagem de ônibus e pouquíssimos dólares, as duas garotas partem em uma jornada. Elas são meninas da zona rural, sozinhas em uma viagem de ônibus de muitas horas, na maior cidade do país e em diversas clínicas do Planned Parenthood (organização não governamental de saúde da mulher que oferece abortos legais). Elas estão vulneráveis e incertas em um mundo que subitamente se tornou muito maior e os enquadramentos do filme refletem isso, saindo de planos claustrofóbicos e sufocantes para vistas de cima que as diminuem e oprimem.

Os enquadramentos precisam dizer muita coisa porque Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre é um filme silencioso. As meninas dizem pouco, embora entendam muito, e Autumn é uma personagem particularmente taciturna. Em seu retrato de jovens mulheres caladas frente a uma metrópole ameaçadora e da violência de ser uma adolescente, a obra ecoa os primeiros longas de Sofia Coppola, As Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros. Pode parecer estranho aproximar o mundo de privilégio e deleite estético de Coppola desse que é um filme de escassez — financeira, estética, afetiva — mas em ambos a jornada é pela constituição de identidade e autonomia. Autumn nos é apresentada como uma aspirante a compositora e seus silêncios (mérito da primorosa atuação de Sidney Flanagan) informam uma vida interior rica. Conseguir um aborto é uma crise existencial para ela, um projeto de descobrir e então tornar-se quem ela é.

Mas conseguir o procedimento é mais difícil do que elas pensam. Ao longo de uma hora e meia o espectador é carregado por uma torturante odisséia de médicos, exames, ultrassons, a descoberta de que o tempo de gravidez é maior do que foi informado incialmente e ofertas generosas, mas condescendentes, de abrigo. Durante esse percurso o maior mérito do filme é não ceder ao melodramático — há muito pouco de tocante nas imagens ou na reação da própria Autumn — nem ao martírio. Ninguém chora, ninguém faz discursos emocionados sobre não desistir e Skylar ao mesmo tempo chega muito perto de abandonar a prima e então a salva usando o entendimento compartilhado delas do que é ser uma mulher nesse mundo. É cruel e realista a forma como Autumn permite que Skylar se vitimize e se submeta a essa violência, nivelando-as e mostrando a coerência e a profundidade da construção da personagem.

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

Outro acerto que retira o filme do campo do melodrama é que ele nunca explora como ou de quem Autumn engravidou. A cena que dá título ao longa é a mais dura e desconfortável da obra e aponta para uma realidade que torna ainda mais violenta a necessidade de autorização dos pais. No entanto, o ponto do filme não é qualquer um dos homens envolvidos nessa história, até porque, sejam eles de meia idade da zona rural ou jovens descolados de Nova York, eles parecem iguais e são adequadamente implicados no drama que se segue. Não importa se a culpa é diretamente de um deles ou não.

Ao afastar os homens e as saídas fáceis da comoção, Hittman consegue dar verdadeiro protagonismo às suas personagens. O realismo estético de Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre nos lembra que elas são vítimas de um patriarcado violento e onipresente, mas o lirismo da direção e a sutileza das atuações as tornam indivíduos completos na busca por preservar suas subjetividades de tudo isso. A relação que Skylar estabelece com um menino em troca de dinheiro condensa uma série de fios a respeito de padrão de beleza, submissão e agência. Ela é uma vítima consciente, algo mais duro, indigesto e ambíguo do que o simples retrato de uma garota explorada. As duas protagonistas não são guerreiras, mulheres fortes, ícones feministas. Elas são duas mulheres jovens fazendo o que precisam fazer para serem pessoas e cientes de que não têm nada além de uma a outra.

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre