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A devastação de Matilda, de Harry Styles

Quando Harry Styles lançou seu último álbum, Harry’s House, a faixa “Matilda” chamou bastante atenção entre os ouvintes. Com uma pegada mais intimista e sensível, Harry evidencia a fragilidade por trás da dureza de tentar se fazer existir em um lugar em que não te autoriza enquanto sujeito.

Harry conta a história de uma mulher que se vê atada a uma família que em seu funcionamento a aniquila, um laço de dependência que os mantêm costurados ao modo que se distanciar parece mortífero para todos, alimentando uma culpa devastadora por simplesmente desejar existir. Em graus diferentes, essa é uma realidade presente na vida de muitas mulheres, o medo de se desatar de um laço que as fazia único corpo com quem as criou.

A música se inicia com a apresentação de uma naturalização de um funcionamento até o momento não visto como prejudicial, sabe aquele pensamento de que as coisas são assim mesmo, é o normal, dói, mas viver é isso, sempre foi. Um comodismo nada cômodo que precisa de uma faísca, um empurrão, para que as coisas comecem a se movimentar, mesmo que na angústia.

“Matilda, você fala da dor como se estivesse tudo bem, mas eu sei que você sente como se um pedaço de você estivesse morto por dentro.”

Quando laços muito fortes são atados se separar deles, ou pelo menos tentar se ver desatada, denuncia um vazio. É como se fossemos personagens secundários dentro de um enredo em que o outro é o principal, se observar enquanto alguém desatado a narrativa central parece impossível. Assim só se existe enquanto filha, posição dependente e subjugada à existência de uma mãe, a parte mulher, singular, detentora de desejos, é como se não existisse ou estivesse morta.

Nesse laço não só a filha se mantém em seu papel, há também uma mãe que não se divide, não abdica parcialmente de sua função para poder retomar seu lugar de mulher. É preciso que essa mãe falte, que ela se ausente, de espaço, para que a filha tenha abertura para desejar e não se filie a uma posição primordial de alienação ao desejo do outro.

Vamos traduzir em exemplos, sabe quando a mãe está cuidando do bebê, o bebê resmunga e ela vai deduzindo as necessidades dele? A mãe está sempre presente e preparada para atendê-lo, ela interpreta à sua maneira necessidades que esse bebê nem sabe que tem, se funde, sufoca. Nesse início é importante que tenhamos alguém nessa função materna, mas com o tempo precisamos de espaço para conseguir existir por nós mesmos, precisamos que essa presença falte para reivindicarmos, para desejar, ter nossos gostos, nossos ideais.

Quando isso não acontece, a gente se une ao desejo do outro, nesse caso da mãe, vivendo em função e pelas expectativas dela (ou de quem ocupa essa função), as figuras não se dissociam. Por mais que essa filha demande da mãe algo do ser mulher, na tentativa de se constituir, ela não conseguirá entregar, ela não sinaliza que ela quer algo para além do ser mãe, dessa maneira a filha fica tentando suprir o desejo materno dessa mãe. Romper com a mãe parece ser matá-la. Diante de relatos clínicos escutamos crises de angústias advindas de suspiros de singularidade, pacientes que trazem brigas e enfrentamentos como o fim dos tempos, ver a mãe aborrecida, triste ou chateada como uma falha de sua função, uma culpa mortífera.

Viver algo além dessa relação então…impossível! Se só existe a filha, essa posição infantil, dependente e dessexualizada, o que se atrela à mulher, sair, ficar até tarde fora, ir pra longe trabalhar/ estudar, namorar, beijar na boca, transar, são desejos ilícitos barrados, de novo, pela culpa que vem com os dois pés no peito fazendo cair pra trás.

Na música Harry convoca, “você pode deixar pra lá”, “você não precisa se desculpar por ir embora e crescer”. É preciso delimitar o que é seu e o que é do outro. Em análise o percurso que nós, analistas, buscamos conduzir as mulheres é na busca de simbolizar essa relação, tecendo outra história, que não termine nesta morte da mãe. Há a possibilidade de barrar o outro, dar lugar ao desejo e assim mobilizar esse corpo, criando bordas que fundam, na presença da falta, a singularidade.

Na vida real ninguém é a Sininho de Peter Pan, que para existir precisa da atenção e da crença constante do outro. O mundo não gira porque corremos nele, não precisamos nos sacrificar pelo outro.

“Você não precisa se desculpar, não”