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Rastro de Sangue: Jack, o Estripador

E se o assassino mais perigoso da Londres vitoriana pudesse ser pego por meio da investigação de uma adolescente? É a partir dessa ideia que Kerri Maniscalco escreve o primeiro livro de sua série, Rastro de Sangue: Jack, o Estripador, lançado no Brasil pela DarkSide Books. Na Londres de 1888, a neblina e o medo tomam conta quanto a noite cai; ninguém está a salvo e uma série de assassinatos assombram a parcela mais pobre da população, principalmente mulheres que trabalham como prostitutas nas vielas mais escuras do bairro de Whitechapel. Diante desse cenário, a jovem Audrey Rose Wadsworth decide que não ficará quieta permitindo que o assassino tome a vida de mulheres indefesas, e entra de cabeça em uma investigação que a colocará em rota de colisão com o temido Estripador.

Audrey Rose, a grande heroína da história, é uma moça aristocrata, filha do Lord Edmund Wadsworth, que vive em uma gaiola dourada desde a morte de sua mãe devido ao medo que o pai sente de perdê-la também. Audrey, no entanto, não é como outras mocinhas vitorianas — algo que a protagonista faz questão de frisar inúmeras vezes no decorrer do livro — e não está disposta a permanecer dentro da sua gaiola para sempre: a jovem é fascinada por medicina forense, autópsias e corpos em decomposição e, ainda que goste de comprar belos vestidos, não aceita ser definida por eles. Como forma de ampliar seus conhecimentos nesse universo, Audrey trabalha como aprendiz no laboratório de seu tio Jonathan que, por vezes, executa trabalhos para a Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres. É assim que Audrey entra em contato com a primeira vítima daquele que ficaria conhecido como Jack, o Estripador: uma jovem mulher assassinada de maneira brutal e deixada para ser encontrada sem uma viela escura e abandonada em Whitechapel.

Por meio dos ensinamentos passados por seu tio e imbuída de seu espírito curioso, Audrey embarca em uma jornada para descobrir a verdadeira identidade de Jack e impedir novos assassinatos, encontrando no caminho um controverso parceiro, o jovem e arrogante Thomas Cresswell. Thomas também é aluno de tio Jonathan e se tem em alta conta, o que enerva Audrey na mesma medida em que a encanta. Usando de artifícios presentes nos melhores young adults, Maniscalco consegue criar uma atmosfera única para a história de Audrey ao reunir fatos reais com fictícios, costurando a trama e entregando um livro divertido e charmoso capaz de evocar os medos reais da Londres vitoriana, sem mergulhar tão fundo assim em seus horrores.

“A morte não tinha preconceitos com coisas mortais como posição social e gênero. Ela vinha da mesma forma para reis, rainhas e prostitutas, com frequência deixando os vivos com arrependimentos.”

Em Rastro de Sangue: Jack, o Estripador, nos encantamos facilmente por seus personagens e nos deixamos envolver pela investigação de Audrey e Thomas enquanto os dois desenvolvem um relacionamento permeado por flertes engraçadinhos, por parte de Thomas, e exasperação e rolar de olhos, por parte de Audrey. Em sua protagonista, a autora tem uma mocinha que parece muito à frente de seu tempo, mas que peca ao se comparar muito aos seus pares masculinos, o que deixa seu discurso um pouco vazio — Audrey tenta se afastar das outras damas da sociedade vitoriana clamando ser diferente delas, apontando como gostam de pensar em chá, vestidos e fofocas, enquanto ela, por outro lado, se interessa muito mais por corpos em decomposição e ciência. Por ser adolescente, é compreensível o fato de Audrey tentar se diferenciar das outras mulheres de seu círculo social, sempre vistas como meros objetos de decoração e cuja única serventia é serem esposas e mães, em busca de uma identidade própria, mas a repetição de frases de efeito e rompantes de raiva por não ser vista como igual aos homens deixa Audrey um pouco irritante, o que enfraquece a narrativa em alguns momentos.

Mesmo assim, Audrey Rose é uma heroína digna de seu título. Em uma sociedade patriarcal e sexista como a Londres do século XIX, eram poucas as liberdades que uma moça poderia ter, e escolher aprender uma profissão como a medicina não estava na lista de afazeres de uma jovem daquela época. Não obstante, Audrey persiste em sua vontade e continua como aprendiz de seu tio mesmo contra o desejo de Lord Wadsworth e a desaprovação de sua tia Amélia. Ainda que meta os pés pelas mãos em algumas ocasiões devido a sua enorme vontade de se provar e encontrar o Estripador, o sentimento de Audrey é sincero e tudo o que ela deseja é viver sobre seus próprios princípios, sem amarras de seda que a mantenham longe de seu objetivo. Ela é jovem, inteligente e destemida, e essas características são responsáveis por colocar a trama de Rastros de Sangue sempre em movimento e em direção ao Estripador.

As personagens femininas do livro, além da protagonista, recebem pouca atenção ou histórias de vida. Ainda que Audrey clame estar perseguindo o Estripador em memória das prostitutas assassinadas — mulheres sem voz e marginalizadas por uma sociedade patriarcal e sexista — pouco se sabe a respeito delas além de seus nomes. Teria sido muito mais interessante, por exemplo, que Audrey pudesse conversar sobre os crimes com outras mulheres (outras prostitutas!) do que ficar sempre pairando ao redor dos homens da história. Ao contrário das personagens femininas — além de Audrey, conhecemos um pouco melhor apenas sua tia Amélia e a prima, Liza, que parece fantástica —, os homens presentes em Rastro de Sangue: Jack, o Estripador são personagens muito mais complexos e dinâmicos. Em Thomas Cresswell, por exemplo, temos o típico rapaz de young adult dono de uma língua afiada, um charme especial e ares de bad boy — é fácil compará-lo, por exemplo, a Jace Herondale de Os Instrumentos Mortais, série literária de Cassandra Clare, de forma bastante positiva. A dinâmica entre Audrey e Thomas evoca os melhores shipps da literatura juvenil, e isso também aparece como um grande trunfo da escrita de Kerri Maniscalco.

“Fingir que sou tão capaz quanto um homem? Por favor, senhor, não me tenha em tão baixa conta!”

Ainda que a autora tenha pecado na construção das personagens femininas de Rastro de Sangue: Jack, o Estripador, é evidente a facilidade com que Kerri consegue elaborar cenários interessantes e uma trama que te deixa preso até a última página. O mistério a respeito da real identidade do Estripador pode ser descoberto com alguma facilidade por leitores mais atentos, mas isso não desabona a narrativa de Kerri, visto que a autora é capaz de alternar momentos de tensão — repletos de descrições técnicas das autópsias e do estado dos corpos assassinados — com cenas leves e até mesmo divertidas por meio das interações entre Audrey e Thomas e seu flerte inapropriado para membros da alta sociedade londrina. Rastro de Sangue: Jack, o Estripador é o livro de estreia de Kerri Maniscalco e em seus sucessores — Hunting Prince Dracula e Escaping from Houdini — espera-se que tanto a autora quanto sua protagonista tenham amadurecido suas ideias e narrativas.

A ambientação vitoriana descrita com tamanha propriedade por parte de sua autora é outro ponto positivo da obra. Ler seu primeiro livro é mergulhar de cabeça em um universo de carruagens, chás da tarde e vestidos de seda, mas também em um mundo em constante evolução social e científica. Mesmo que Audrey pertença a uma classe privilegiada, e esse cenário só mude um pouco durante as incursões da moça nas vielas de Withechapel, é notável o esforço que a autora despendeu em suas pesquisas, deixando sua narrativa rica em detalhes e fatos históricos (não deixe de ler as notas da autora ao final da edição). Ler Rastro de Sangue é voltar no tempo e, no meu caso, sentir saudades de Vanessa Ives (Eva Green) e Penny Dreadful, ainda que o livro seja muito mais leve se comparado à série, visto que os públicos são diferentes. Um fã de Penny Dreadful, no entanto vai gostar de caminhar pela Londres vitoriana ao lado de Audrey e respirar um pouco dos velhos ares de terror e tensão que permeavam a série do canal Showtime.

Rastro de Sangue: Jack, o Estripador surge como uma promessa para amenizar as saudades deixadas por Lia, a protagonista de Crônicas de Amor e Ódio, no catálogo da DarkSide Books. A missão de Audrey Rose não é fácil, mas a moça tem força de vontade e inteligência o suficiente para sobreviver a sua empreitada — seja a de cativar novos leitores ou encontrar o assassino. Nenhum homem foi capaz de descobrir a identidade do Estripador. Esse é um trabalho para uma mulher.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.


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2 comentários

  1. Eu esperava um CSI vitoriano, uma investigação mesmo e não um drama familiar que eu matei na metade do livro. E aquele flerte DESGRAÇADO dos dois me irritou MUITO. A autora é criativa e tudo mais, mas PQP, por que uma protagonista tem que ter um FLERTE, um rapaz bonito e irritante? Isso me tirou do sério.

    1. Não me incomodei tanto com o flerte quanto me incomodei com as repetições de Audrey Rose a respeito do quanto ela é inteligente e melhor do que todo mundo. Entendo, dentro do contexto dela como adolescente, querer se afastar de tudo aquilo que a prende, mas a repetição da autora desse ponto me cansou. O romance, por outro lado, evocou meus livros favoritos da adolescência, por isso não me incomodei. Tudo bem que seria bem mais interessante a protagonista não ter um rapaz em quem se apoiar, se fosse outra garota investigando junto de Audrey eu acharia muito mais promissor. E sim, o mistério nem era tão misterioso assim, no final das contas.

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