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Isabel: o clichê da escritora chilena nas mãos erradas

A minissérie Isabel promete contar a história íntima da escritora chilena Isabel Allende. O que significa a intimidade de alguém que tem mais de um livro autobiográfico lançado e nunca recusa a oportunidade de dar uma entrevista? Os três episódios disponíveis na Amazon Prime, com roteiro de Jonathan Cuchacovich e direção de Rodrigo Basáez, são uma adaptação piegas do conteúdo de Paula, livro de não-ficção escrito a partir do momento em que a filha mais velha da escritora fica gravemente doente e entra em coma.

Em “O Custo da Liberdade”, a história começa com um evento da turnê de lançamento de O Plano Infinito, quinto livro de Isabel (interpretada por Daniela Ramírez). A leitura é interrompida com a notícia de que Paula (Catalina Silva) está no hospital, com uma crise de porfiria, um distúrbio raro que afeta o transporte de oxigênio no sangue. Depois, o enredo retorna à infância dos filhos de Isabel, nos anos 80, quando eles moravam em Santiago, no Chile.

Isabel, antes de se tornar escritora, encenava o papel de dona de casa e recebe o convite de trabalhar na revista Paula, que pelo menos naquele tempo era vista como feminista. A publicação ter o mesmo nome de sua filha foi apenas uma daquelas coincidências do destino. O custo da liberdade, ao se tornar uma mulher que trabalha fora, é ter menos tempo para a família, enfrentando críticas não só por estar menos em casa como também por escrever sobre temas polêmicos para a época, como a infidelidade de mulheres casadas com homens.

As reais Isabel e Paula

Aqueles eram os primeiros anos da ditadura militar, e a então jornalista inevitavelmente se envolve na rede de apoio que ajudava pessoas perseguidas pelo regime a sair do país. Na série, ela decide se exilar na Venezuela depois que seus filhos sofrem um sequestro-relâmpago por militares. O rapto foi uma adição do roteiro que causa estranhamento para quem estava acompanhando linha por linha a história de acordo com o que a autora escreve em seus livros. As ameaças sofridas pela família eram mais sutis. Vale mencionar que o ex-presidente Salvador Allende era primo do pai de Isabel e que o parentesco evidenciado pelo sobrenome não é tão próximo assim.

O exílio é tratado principalmente no segundo episódio, “O Diabo no Espelho”. A experiência levaria a dois momentos-chave na vida de Isabel, o caso extraconjugal e a escrita do primeiro livro. Ela se envolve com um homem também casado, também expatriado, e os dois fogem juntos para a Espanha. O abandono de filhos e marido é um momento “ferrantesco” na vida de Isabel Allende, tanto que depois ela se arrepende e volta, tendo que lidar com as consequências de sua fuga.

Já de volta a Caracas, ela fica sabendo que o avô materno, figura importante em sua infância, estava à beira da morte. Ainda impossibilitada de entrar no Chile, começa a escrever a famosa carta de despedida que se tornaria o seu primeiro livro, A Casa dos Espíritos. Um dos personagens principais, Esteban Trueba, é inspirado no avô que morreria antes mesmo que Isabel percebesse que estava escrevendo um romance e não mais uma carta. A edição do livro não foi imediata. A série mostra que ela consegue publicar o título de estreia primeiro na Espanha, uma aposta de Carmen Barcells (Naiara Murguialday), a mesma editora que sugere a Isabel para usar a escrita como forma de passar pelo período difícil da doença de Paula.

Na última parte da minissérie, “Os Espíritos”, Isabel já é uma escritora renomada quando finalmente decide acabar o casamento com Miguel (Néstor Cantillana). E, na tela, não vemos nem quatro cenas da escritora aproveitando a vida de solteira antes de conhecer o norte-americano Willie Gordon (Zenan Delaney), que a conquistou por sua história de vida nada convencional. Todos os indícios mostravam que o relacionamento seria uma furada, e isso era o que mais a deixava atraída. É sobre o passado desse novo marido o livro que Isabel está divulgando quando Paula vai parar no hospital, e inclusive somos obrigados a ver a repetição da cena que inicia a série, prejudicando o andamento do roteiro. Em seguida, vemos Isabel começando a escrever os rascunhos do livro Paula e acompanhando de perto o tratamento da filha, tendo esperanças com qualquer tentativa mesmo contra todos os prognósticos médicos. A transferência da paciente para os Estados Unidos é uma decisão de Isabel, pensando que a filha teria acesso a outros especialistas e ficaria perto da mãe. Isabel já era residente da Califórnia desde o início do relacionamento com Willie.

A partir da chegada nos Estados Unidos, a minissérie abraça todo o seu potencial melodramático. A cena do transporte de Paula, quando a ambulância quase está chegando na casa de Isabel é intensa porque mostra os detalhes do sofrimento de uma mãe que está quase perdendo a filha. Que terrível seria se ela morresse durante o trajeto. É um momento para se deixar levar pelo sofrimento exposto na tela. Só um desavisado pode pensar que a história teria um final feliz. O tempo de Paula acamada na casa da mãe é retratado num compilado de cenas de cuidado, reuniões familiares ao redor de um corpo inerte e tratamentos. Nada a faz melhorar. A cena da morte, no livro, é retratada como um ritual delicado e íntimo que representa mais o momento em que Isabel finalmente deixa o espírito de Paula partir. Na série, o momento perde força, sendo apenas mais um quadro apressado sobre a doença da filha da escritora.

Em geral, o ritmo da produção é acelerado por tentar retratar muitas partes da biografia de Isabel Allende em apenas três capítulos. Os flashbacks sobre a infância da escritora na casa do avô parecem fora de contexto e não colaboram tanto para o roteiro. A representação do vínculo entre os dois não convence. Essa vontade de cobrir toda a vida de Isabel prejudica até mesmo um dos assuntos que aparenta ser o mais importante da minissérie: a relação com a filha. Paula é uma criança na maior parte do tempo de tela antes de entrar em coma, interpretada por Rebeca Collao na infância. Quando cresce, ainda parece magoada com a fuga da mãe com o amante e depois com o divórcio dos pais. Ela só volta a aparecer doente, aos 28 anos. Pela TV, não sabemos como era a relação das duas com Paula já adulta. Quem vê até pensa que a dor de Isabel é como um sofrimento vazio de quem não tinha lá uma relação muito próxima com a filha. Poderia ser, mas não era o caso.

Além da cena da morte, outra parte importante do livro Paula que perde força na minissérie é a da profecia. Isabel está numa festa de um consulado qualquer — o padrasto dela, el tio Ramón, tinha uma carreira diplomática — quando uma cartomante se aproxima, preocupada, para contar quatro previsões: haveria um banho de sangue no Chile, ela ficaria imóvel ou paralisada por bastante tempo, o único caminho dela seria o da escrita e que um de seus filhos seria conhecido em muitos lugares do mundo.

A protagonista mostra as fotos de Paula e Nicolás, ainda pequenos, para que ela dissesse sobre qual dos dois ela estava falando, e a cartomante aponta a foto da menina. Não parecia ser boa coisa. No livro, Isabel escreve que vai atrás dessa mulher para saber o que o futuro reserva à filha. É mais um daqueles parágrafos de cortar o coração porque a gente já sabe ou pelo menos imagina o final da história. Na adaptação, uma cena já tão bem contada no papel poderia entregar mais que o livro. Ou pelo menos apresentar uma cena já conhecida sob outro ponto de vista. De qualquer forma, é difícil competir com a narrativa da própria Isabel Allende.

A potência da história é tão forte que também não dá pra deixar de se emocionar com a série. O problema é que até o último momento o roteiro exagera no efeito especial de novela mexicana ou de filme da sessão da tarde. Depois da morte de Paula, a escritora tinha acabado de digitar o que seria a célebre primeira linha do livro que leva o nome da filha:

“Escucha, Paula, voy a contarte uma historia, para que cuando despiertes no estés tan perdida.”

“Escute, Paula, vou contar uma historia para que você não se sinta tão perdida quando acordar.”
(tradução de Irene Marinho na 3ª edição da Bertrand Brasil em 1995)

Logo depois, o pedaço de papel com a anotação da profecia sobre o destino de Paula ser conhecida em muitos lugares do mundo rodopia seguindo uma corrente de vento imaginária até sair voando pela janela do escritório. Tem nem graça chorar assim.

***

Cena de Jane the Virgin

Isabel Allende faz uma participação especial na quarta temporada de Jane the Virgin porque a protagonista interpretada por Gina Rodriguez é fã da escritora. Jane tinha acabado de perder o marido e estava tentando encontrar forças para continuar vivendo depois da morte de alguém importante, de seguir vivendo sem se sentir culpada. E é claro que ela tinha como referência o processo de luto que a Isabel conta em Paula.

“Escrever também me ajudou no luto. Há luz no fim do túnel, eu prometo”, diz Isabel. O narrador latino da série resume bem a experiência de ler Isabel: quando é ela que está falando, o clichê soa como se estivesse sendo dito pela primeira vez. A escritora sabe transitar na fronteira com o piegas e o lugar-comum.

Ainda que seja conhecida com a escritora de língua espanhola mais lida do mundo, ela não é uma unanimidade. A obra de Isabel Allende, com 24 livros lançados atualmente, é de altos e baixos. A fórmula do clichê bem dosado, dos personagens românticos e dos enredos mirabolantes beirando o inconcebível nem sempre dá certo. A autora perde a mão em livros como De Amor e de Sombra e Eva Luna, lançados logo após o sucesso de A Casa dos Espíritos. E a impressão que a série deixa é que o roteiro tenta se apropriar dessa fórmula que nem a própria escritora consegue moderar em todas as suas histórias. O desastre era evidente.

O que a adaptação precisava não era de segredos ainda não contados nos livros, mas que pelo menos as cenas emblemáticas fossem mais significantes na tela, como as madrugadas em claro escrevendo o manuscrito do primeiro livro, a profecia da cartomante, as aventuras com o amante argentino e a despedida de Paula. Afinal, Isabel costuma repetir histórias nos livros de ficção e nos autobiográficos. Deveria ter anedota que ela conta primeiro com uma camada de imaginação em A Casa dos Espíritos para depois contar sem reservas em Paula, Afrodite, Meu País Inventado e, se duvidar, até no mais recente lançado no Brasil, Mulheres de Minha Alma.

Como leitora, a repetição não é um problema no texto. Não deveria ter sido tão ruim a experiência de ver na TV uma história já conhecida. A minissérie ao menos serviu como uma oportunidade para ver alguns vídeos de família e como uma boa retrospectiva dos penteados da escritora, que ajudaram também a marcar a passagem de tempo para a mesma atriz que interpreta Isabel adulta. Difícil de engolir esse recurso de envelhecer artista que não deveria existir nem em This is Us.

1 comentário

  1. A série é historicamente interessante, mas com alguns erros de produção, como o momento em que surge uma legenda dizendo ser o ano de 1975 e entra um carro ano 1986 em cena.

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