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O reconhecimento tardio de Garota Infernal

Ao ganhar o Oscar de Melhor Roteiro por Juno, em 2007, Diablo Cody sentiu a confiança necessária para produzir filmes sobre o que bem entendesse, e foi até mesmo encorajada para tal. Então escreveu Garota Infernal (Jennifer’s Body, no original), a história de uma adolescente que é sacrificada por membros de uma banda de rock para atingirem a fama, e que acaba possuída pelo demônio, devendo se alimentar de carne humana para sobreviver. O grande mal que pairava sobre a história, porém, não era a crueldade de forças sobrenaturais, mas a desvalorização do aspecto feminino que não serve para o consumo e o bel-prazer dos olhos masculinos.

As coisas não pareciam boas logo na pós-produção, como conta Karyn Kusama, a diretora do filme, em uma entrevista para o BuzzFeed News. A equipe de marketing aparentava não compreender a vontade de suas criadoras de contar uma história de terror para mulheres, especificamente para adolescentes. As campanhas publicitárias para divulgação do filme acabaram resultando em simplórias peças claramente voltadas para o público masculino, com Megan Fox, a protagonista, em roupas curtas e posições provocantes.

Meninos na puberdade, com hormônios à flor da pele, se sentiram lesados quando finalmente assistiram ao longa. Aquela garota sexy de olhar devasso estava em suas telas, é claro, mas o termo “devoradora de homens” acabou se tornando literal demais. As insinuações sexuais de Jennifer Check (Fox), a bonita garota transformada em súcubo, com algum personagem masculino, não acabavam em cenas semi-explícitas que dão asas à imaginação. Acabavam com ela devorando seus intestinos e bebendo seu sangue.

Garota Infernal

A visão de Cody e Kusama sobre masculinidade também era diferente daquela que as telas estavam acostumadas. Lançado em 2009 e produzido em 2008, o filme pegava a onda da extravagância emo que pairava o Myspace. Nikolai Wolf (Adam Brody), o galã e vilão do longa, é um rapaz esguio que usa lápis de olho e canta músicas melancólicas. Colin Gray (Kyle Gallner) é um gótico de piercing no lábio e esmalte preto nas unhas. Chip Dove (Johnny Simmons), embora o personagem masculino mais importante, é um menino de franja e feições de criança. Jonas (Josh Emerson) poderia ser uma boa representação da típica virilidade americana, mas passou seu pouco tempo de tela chorando a morte de um amigo. A participação de Chris Pratt, interpretando um redneck aprendiz de policial, é tão insignificante que nem conta.

A história sempre foi sobre Jennifer e sua melhor amiga de infância, Needy Lesnick (Amanda Seyfried), em uma premissa que provavelmente não enchia os olhos pela originalidade, mas que cumpria seu papel em estabelecer o cenário para um filme de terror adolescente. Duas amigas de infância com personalidades opostas — a típica dupla popular/nerd — que viviam na pequena e fictícia Devil’s Kettle, a Chaleira do Diabo. A peculiar relação das duas era muito mais do que sobre a interferência maligna de um demônio invasivo ou a ganância de bad boys em busca de fama e dinheiro. “No início, senti que este é um filme de terror sobre amizades tóxicas entre meninas. Em uma escala maior, é sobre como essas alianças entre garotas são distorcidas e corrompidas pelo patriarcado”, Kusama contou ao Buzzfeed News.

Este aceno à destruição do patriarcado é brilhantemente visível no fato de Jennifer apenas matar garotos. Homens a fizeram assim, então ela se alimenta apenas deles. É uma indireta vingança pessoal. “Você está matando pessoas!”, Needy grita, perturbada e aflita, em uma cena deletada do filme. “Estou matando garotos”, é a resposta de Jennifer, que sorri despreocupadamente.

O toque feminino também é mais do que evidente na cena em que Jennifer é sacrificada. Apesar de toda a sanguinolenta agressividade, Garota Infernal não parte para cenas de brutalidade infundada e violência sexual. Rodeada por homens perversos em uma floresta escura enquanto tem as mãos e pés atados por uma corda, não é difícil imaginar o provável destino de Jennifer caso o filme fosse encabeçado por um homem. O alívio em perceber que as criadoras não apresentam uma experiência terrivelmente grotesca e sexualmente abusiva — como a dos filmes da franquia Doce Vingança, que mostram longos planos de estupro gráfico — é um diferencial muito bem-vindo para o público que já não aguenta mais ver a violação de mulheres nas telas.

Dentre os inúmeros elementos mal-interpretados do filme — a intenção por trás da história, o diálogo ácido de falas que beiravam à comicidade, o marketing erroneamente voltado ao male gaze, o estilo peculiar de contar um terror adolescente —, talvez o que mais causou alarde foi a cena em que Jennifer e Needy se beijam. O close-up de um beijo sensual com direito a língua foi, provavelmente, a cena mais mal-vista pelos críticos. Stephanie Zacharek, em uma crítica para o site Salon, chamou a cena de “uma sessão gratuita de pegação lésbica”.

Diablo Cody sentiu que, por ser mulher, teria mais liberdade em escrever uma cena como esta sem ser taxada como apelativa, mas o verdadeiro significado da sequência passou por cima das cabeças da maioria dos espectadores: Needy estava, de alguma forma, apaixonada por Jennifer. “Na época eu só pensei ‘Quero que as pessoas realmente entendam o quanto Needy quer Jennifer’. Há uma tensão sexual entre elas. Não é só amizade.”

Cody e Kusama brincaram com a quebra de padrões de filmes juvenis americanos em diversos aspectos durante Garota Infernal. O jogador de futebol fortão era um menino sensível que se debulhava em lágrimas — e que foi cruelmente mastigado e roído em uma floresta úmida em plena luz do dia, apesar de todo o seu tamanho —, e as duas protagonistas femininas tinham um relacionamento complexo e cheio de subtextos homoafetivos. A trilha sonora pop punk de canções interpretadas por bandas excêntricas que igualmente fugiam do considerado convencional — Panic! At The Disco, Hole, Cute Is What We Aim For, entre outras — é a cereja do bolo para coroar os nuances da fluidez de sexualidade e identidade. A cena em que Needy observa Jennifer praticar sua rotina de líder de torcida ao som da música “I’m Not Gonna Teach Your Boyfriend How To Dance With You”, do grupo The Black Kids, é deliberadamente cheia de significados e nada discreta para os olhares um pouco mais atentos. “Você é a garota com a qual eu venho sonhando desde que eu era uma menininha”, diz o verso da música, Needy e Jennifer sorrindo adoravelmente uma para a outra.

A visão de 2009, ano do lançamento de Garota Infernal, não era educada e sofisticada o suficiente para compreender algo assim. Em tempos de #MeToo, filmes milionários de super-heroínas e movimentos feministas em diferentes plataformas, a compreensão da audiência atual está muito mais refinada para metáforas e profundas representações analíticas de cunho social. A matéria Jennifer’s Body’ Would Kill if It Came Out Today, da Vice Canadá, é justamente sobre isso, e desencadeou a discussão sobre o reconhecimento tardio do filme que foi tão desprezado quase dez anos atrás.

A mentalidade social do público pode afetar completamente a visão de um filme. Quando O Diabo Veste Prada foi lançado em 2006, os espectadores condenaram a atitude de Andy (Anne Hathaway) ao se focar tanto em sua carreira e deixar seu namorado, Nate (Adrian Grenier), de lado. Hoje, a Cosmopolitan escreve um artigo falando como ele era um homem inseguro que não suportava o sucesso de sua parceira. Antes, Garota Infernal era visto como um filme fanfarrão e preguiçoso sobre meninas assassinas que se beijam de língua sem nenhum motivo. Atualmente, é considerado uma obra injustiçada e que é até mesmo membro de uma seleção cult de filmes de horror.

Desde o começo da produção, Megan Fox duvidava que um filme sobre uma “cheerleader lésbica comedora de homens” realmente faria sucesso. Produções tão assumidamente girl power não eram particularmente populares na época, ainda mais em um enredo sobre garotas más que tratavam personagens masculinos como ferramentas secundárias. Em uma nota para o BuzzFeed News, Megan Fox afirma que o público ainda não estava maduro o suficiente para apreciar Garota Infernal em sua totalidade. “O filme estava à frente de seu tempo, e mesmo que eu ache que a publicidade não tenha sido feita de maneira apropriada, eu genuinamente não acredito que as pessoas estavam prontas para um filme como esse, naquele tempo, em nossa sociedade e cultura”.

Outro ponto que pode ter ferido o filme foi a própria reputação de Megan Fox. Na época de divulgação do longa, a atriz tinha acabado de ser demitida da franquia Transformers, dirigida por Michael Bay, depois de chamá-lo de tirano e compará-lo a Hitler. A retaliação do diretor em relação ao comentário imprudente de uma inexperiente Megan Fox, de 23 anos, foi recrutar alguns membros da equipe de sua produção para publicar uma carta aberta, defendendo seus métodos de trabalho e chamando Fox de “estrela pørnô”, “cadela hostil” e “burra como uma porta”. Aborrecer um poderoso homem hollywoodiano foi, provavelmente, um dos motivos do fracasso de Garota Infernal, assim como o de Megan Fox. “Também acho que o filme foi ofuscado pela natureza vampírica que a mídia tinha comigo. Estou feliz que vimos uma mudança no consciente coletivo e que agora as pessoas são capazes de apreciar [o filme] retroativamente”.

Ao que é possível perceber, uma série de fatores contribuiu para a nota de 44% de Garota Infernal no Rotten Tomatoes — considerado podre, de acordo com a classificação do site — e para os anos de duras críticas que o filme recebeu. Marketing problemático, roteiro excêntrico, personagens “fora da normalidade”, o revanchismo de um diretor irritado, um público imaturo demais para lidar com determinadas narrativas… Todos esses tópicos acabam se encontrando em um só elemento: a crueldade dissimulada de uma sociedade essencialmente machista.

Dizer que o filme foi vítima de timing parece correto. As tendências misóginas sempre estiveram fortemente enraizadas no entretenimento e no comportamento coletivo. Em épocas de transições ideológicas e movimentos sociais, o ano de 2019 ainda encontra dificuldades em se desconectar de características tóxicas que excluem minorias e tudo aquilo que não é considerado padrão. Quase 10 anos no passado, em 2009, fugir de conceitos pré-estabelecidos e tocar em assuntos de diversidade era uma atitude corajosa. Diablo Cody e Karyn Kusama produziram uma história sobre garotas complexas em um tempo em que mulheres ainda eram, na maioria das vezes, vistas como objetos bonitos e sexualizados, perfeitos para assistir e tocar. Quando colocaram essas personagens para representar o estrago que uma cultura machista pode fazer às mulheres, especialmente num período delicadamente difícil como a adolescência, a partir de rituais sobrenaturais, bissexualidade e homens malvados sendo punidos, não é de se surpreender que não foram bem aceitas.

De qualquer forma, essas mulheres fictícias e reais — Jennifer e Needy, Cody e Kusama —, conseguiram passar por cima das tribulações típicas e atípicas do sofrido mundo feminino. E como Megan Fox mesmo disse, é de se alegrar que o pensamento social tenha sido capaz de evoluir o suficiente para que Garota Infernal seja devidamente apreciado. Mesmo que quase uma década mais tarde.

16 comentários

  1. Eu vi o filme e também li o livro e lembro de ter gostado demais, mesmo não analisando a história por esse lado… Me fez refletir.

    1. Única pessoa que já vi falando que leu o livro além de mim! É interessante pensar que eu acho o livro mais raso que o filme. Geralmente é ao contrário.
      Obrigada por ler e que bom que o texto serviu para uma reflexão!

  2. Obrigada pelo texto esclarecedor, quando assisti ao filme à época do lançamento, lembro de ter gostado da representação das protagonistas, no entanto, com certeza não tinha conhecimento para interpretar a obra sob a ótica do empoderamento feminino, sequer sabia que foi produzido por mulheres.

    1. Quando eu assisti o filme pela primeira vez, eu devia ter uns 10 ou 11 anos. Com certeza eu não tinha todo o discernimento para ver o filme dessa maneira, mas tinha algo na história e nas personagens que sempre me fez gostar demais. Demorou um tempinho pra eu ver Garota Infernal só como um filme adolescente, mas que bom que a gente evolui, né?
      Obrigada pelo comentário, Priscila!

  3. Eu só fui conhecer esse filme poucos anos atrás e lembro de ter ficado chocada quando vi que foi lançado em 2009, pois é MARAVILHOSO e muito a frente do seu tempo. Ótimo texto!!

    1. Diablo Cody e Karyn Kusama estavam inspiradíssimas quando fizeram Garota Infernal. Eu também acho muito mara.
      Obrigada pelo comentário, Juliana, e fico muito feliz que tenha gostado do texto!

  4. Assisti esse filme logo quando foi lançado em DVD, minha expectativa era grande por ser fã da Megan Fox. Assisti inúmeras vezes depois, e sempre gostei muito da história como um todo, não entendia o porquê das pessoas desprezarem tanto esse filme. Agora consigo entender, ótima análise.

  5. Tem uma cena nesse filme que eu fecho os olhos pq é mt pesado até pra mim ahahaha, bem gore. Mas é um bom filme.

  6. Tem uma cena nesse filme que eu fecho os olhos pq é mt pesado até pra mim ahahaha, bem gore. Mas é um bom filme..

  7. Excelente texto, relembrei da existência do filme há pouco tempo. Espero que eu consiga reassistir esse filme hoje com uma mente mais aberta e conseguir ver tudo o que você descreveu. Muito sucesso para ti e para o filme injustiçado.

  8. Spoiler -Um adendo : a cena final do assassinato da banda Low Shoulder pela Needy ao som de Violet da banda Hole é primorosa!

  9. Eu acabei de assistir o filme de novo com 23 anos e a primeira vez que vi provavelmente deveria ter uns 11/13 eu sempre gostei de filmes de terror desde infância e sempre percebi o quanto era problemático a participação de mulheres neles, mas Garota Infernal me deixou algo, plantou uma semente, eu nunca tinha esquecido desse filme. E hoje resolvi rever, e fala muita coisa que na época não fui capaz de deduzir, os gatilhos, entender oque a Needy e a Jennifer passam, toda problemática em cima desse conflito adolescente que nos traz muito mais aprender do que só entretenimento, pra mim esse filme, está num bom topo na minha escala de terror e conflito emocional, as duas atrizes dão um baile de atuação e os efeitos são impecáveis pra “época”, a narrativa não é nada tendenciosa e realmente desvalida a sensação de desconforto que uma mulher tem assistindo filmes de terror, onde sempre ela será a vítima e precisa esperar alguém para agir, o filme traz muitas perspectivas diferente sempre quando um personagem entra na história, o jogador de futebol, o emo e etc. Enfim espero que esse filme se torne material de estudo de algumas pautas e vire molde de filmes de terror pro futuro, gostaria de ver mais filmes de terror assim, um exemplo clássico desse molde poderia ser a maldição da mansão Bly, com outras perspectivas mas funciona da mesma forma. Finalizando ,parabéns e agradeço por esse texto incrível e muito esclarecedor sobre o filme, eu amei ler do começo até o fim.

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