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#52FilmsByWomen: apoie mulheres que fazem cinema

Quantos filmes dirigidos por mulheres você viu recentemente?

Você assistiria a um filme por semana durante um ano que seja dirigido por uma mulher? Essa é a proposta do projeto cinematográfico #52FilmsByWomen, da organização Women in Film and Television, que visa promover o apoio ao trabalho de diretoras mulheres ao redor do mundo, fazendo com que, pelo menos um filme dirigido por uma mulher seja assistido durante cada semana do ano. Mas qual a importância de consumir mais produção cultural de mulheres? Por que focar e discutir a produção cinematográfica feminina?

Geralmente quando se questiona quantos filmes dirigidos por mulheres você assistiu recentemente, uma grande parte das pessoas tende a demonstrar uma atitude defensiva, afirmando que não assistem muitos filmes dirigidos por mulheres porque não existiriam, teoricamente, muitas mulheres que produzem na indústria cinematográfica. E para iniciar a análise da importância de consumir mais produção cultural feminina e do porquê não termos tanto acesso à obras femininas, precisa-se primeiro tentar compreender como se dá a construção das representações convencionais do que é ser mulher e do que é o ser homem em nossa sociedade e como estes devem agir.

#52FilmsByWomen

Resumindo de forma bem simplista, essas representações e esses papéis de gênero são construídos a partir de uma dicotomia do público e do privado. Isto quer dizer que nossos papéis femininos são delineados a partir de como devemos agir na esfera pública, como a política e o mundo do trabalho, e na esfera privada, como o âmbito familiar e do lar. E são demarcados no sentido de incluírem as mulheres nesse espaço privado como sua predominante ou única esfera de atuação, criando um processo de intimidação para as mulheres que buscam se afastar desse espaço e entrar no mundo público.

A socialização diferenciada entre homens e mulheres e dos respectivos valores criados a partir disso, além dessa construção do que seria dito masculino e feminino, está relacionada diretamente com o fato de mulheres encontrarem-se num estado de negação e de afastamento do espaço público. Esse fenômeno constrói na sociedade a naturalização de que a mulher pertence ao espaço privado  —  que está diretamente ligado com o papel de mãe e de “cuidadora do lar”  — afastando-a de tudo aquilo que se remete ao espaço público, ambiente em que acontece justamente o trabalho. Por muito tempo acreditou-se que mulheres não poderiam trabalhar ou, se caso pudessem, teriam que ter a autorização de seus maridos; o mundo do trabalho para as mulheres era um espaço de negação e, com isso, cria-se indiretamente a ideia de que as mulheres não pertenceriam ao espaço da produção cinematográfica, pois somente homens seriam capazes de trabalhar de uma forma eficiente e satisfatória.

Um reflexo interessante dessa situação está retratada no documentário E a Mulher Criou Hollywood das diretoras Julia e Clara Kuperberg: em determinado momento da produção, um entrevistador pergunta a uma mulher que trabalha com cinema como ela concilia a atuação profissional, sendo durona, forte, e o ser mulher, e ela responde brilhantemente que aquela fala é sexista por remeter que ter essas características — ser “durona” e “forte” — não são de mulheres.

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E isso também é condicionado por outro fator importante: as mulheres não são levadas a sério nessa indústria. Para Hollywood, as mulheres ainda são consideradas um risco, não se supõe que uma personagem feminina possa levar o público masculino aos cinemas, e quando mulheres estão no comando de uma direção elas são constantemente intimidadas e questionadas. Nesse sentido, lembro de um relato corajoso feito pela atriz Anne Hathaway que demonstra as entrelinhas e a sutileza de como as mulheres são vistas na sociedade. Em entrevista à Glamour, a atriz contou sobre como foi trabalhar com Lone Scherfig no longa Um Dia, dizendo não entender o motivo que a fez sempre questionar o trabalho da diretora e de não ter se dedicado completamente ao filme por ter sido dirigido por uma mulher; tudo isso fez Anne perceber como ela foi influenciada pela sociedade patriarcal em que cresceu.

“É algo que eu pensei muito quando recebia roteiros [de filme] que seriam dirigidos por uma mulher. Quando eu recebia um roteiro, quando via que um filme seria dirigido por uma mulher, eu procurava o que havia de errado com ele. E quando eu via que um filme era dirigido por um homem, eu focava no que havia de certo nele. Eu consigo reconhecer que fazia isso e que não quero mais continuar fazendo isso. Antes de perceber isso, tinha tentado muito trabalhar com diretoras. E eu ainda tinha esse tipo de pensamento enraizado em alguma lugar”.

Para demonstrar ainda mais essa relação profunda e complicada das mulheres com o cinema, os filmes feitos por mulheres nem sempre são acessíveis e não estreiam na sala de cinema mais próxima. É preciso correr atrás deles, seja por meio da internet ou conversando diretamente com a sala de cinema local. Além da falta de oportunidades de dirigir, produzir ou escrever, as cineastas ainda precisam enfrentar a falta de confiança da equipe envolvida no projeto que estão trabalhando e a difícil distribuição de seus trabalhos ao redor do mundo.

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Mas, apesar de todo esse processo de internalização dos pensamentos e desse comportamento reativo contra as mulheres com o entendimento de que o cinema não seria um lugar para elas estarem à frente da criação, a produção feminina é extremamente relevante e cresce a cada dia mais (mesmo que mais intenso em produções independentes). As mulheres, historicamente resistem e protagonizam lutas contra esse sistema que as colocam como sujeitos inferiores, e a própria história do cinema remonta essa resistência, pois quando se fala no processo histórico do audiovisual, muito se menciona George Meliès e Griffith quando as mulheres foram grandes protagonistas nesse desenvolvimento e que são, na grande maioria das vezes, invisibilizadas, como Alice Guy Blanché e Mabel Normand.

Mas por quê consumir mais filmes dirigidos por mulheres? São muitos os argumentos, porém, primeiramente, devido a representação das mulheres no cinema. Mais especificamente, de como há esse dever-ser feminino nos filmes, e como personagens femininas são construídas fundamentalmente pela visão de homens, retratando mulheres irreais, sem complexidade, não dotadas de inteligência e que várias vezes só servem para impulsionar a histórias dos homens da trama. Assim como há sempre uma pressão para que as personagens femininas sejam simpáticas aos olhos do público, o que não acontece com os personagens masculinos — basta lembrar da reação do público à Capitã Marvel.

As mulheres tendem a enxergar seus próprios corpos e, deste modo, constituir suas identidades a partir de uma perspectiva masculina. Como a imensa parte das obras com que temos acesso são dirigidas, roteirizadas, produzidas por homens, as personagens refletem essa estrutura, portanto, meninas enquanto crescem, acabam se reconhecendo em diversas obras, e fora delas, a partir de vivências masculinas. Falando de minha experiência especificamente, durante todo o meu crescimento, acabei me espelhando em personagens femininas que eram mal construídas, levantando os velhos padrões e estereótipos de gênero que não demonstravam complexidade, força, inteligência, e isso significou, por bastante tempo, que a minha identidade foi influenciada a partir da incorporação dos valores que confirmam e reproduzem nossa condição de sujeitas subordinadas, voltadas a uma falsa natureza de fraqueza, de sensibilidade e que devemos permanecer caladas.

#52FilmsByWomen

Talvez você, mulher, assim como eu, tenha sentido falta, durante a sua vida, da caracterização de personagens femininas que fossem reais e que não fossem apenas símbolos sexuais ou donas de casa perfeitas que estavam sempre felizes. Os diálogos dos filmes “Sessão da Tarde”, por exemplo, mostram mulheres que apenas conversam sobre maquiagem, cozinha e questões dentro desse espectro do que seria, teoricamente, o universo feminino, ignorando toda a complexidade que mulheres possuem. No geral, dos filmes dirigidos por mulheres há, na verdade, o fenômeno contrário: a maioria de suas personagens são mulheres relevantes, determinadas, independentes e, principalmente, reais; com falas reais, problemas reais, motivações reais, que refletem sobre o meio que vivem e não somente estão interessadas em apoiar outro personagem masculino. Filmes dirigidos por mulheres tendem a apresentar uma diversidade maior de personagens e de tramas.

Logicamente, há diversas exceções, como a personagem de Frances Mcdormand em Três Anúncios para um Crime, que é um filme dirigido por um homem e tem uma representação verossímil da personagem feminina. Apesar da representação da mulher no cinema estar sendo mudada, ela está em poucos e lentos passos, e o que o que é visto no cinema, como regra, é a sub-representação das mulheres. O público feminino consome metade dos ingressos vendidos para o cinema, mas, mesmo assim, a desigualdade entre homens e mulheres nas fases de produção de um filme é alarmante. As mulheres ainda não são valorizadas em qualquer sentido, então incentivar as mulheres na direção é também a valorização do que é feminino e do que é ser mulher. Essa situação não é uma circunstância que afeta apenas a indústria do entretenimento, mas que transcende como entendemos a política, a cultura e o social.

Adotar a campanha #52FilmsByWomen e divulgá-la em suas redes é, antes de tudo, um projeto também político que subverte as falsas ideias de que mulheres não tem lugar no cinema ou em qualquer outra indústria. É quebrar a visão de garotas que, mesmo inconscientemente, acreditem que não conseguem ou não podem exercer determinada carreira ou função.