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Possessão: entre a fé, a ciência e o sobrenatural, o que é real?

Poucas coisas assustam mais um telespectador do que encarar a frase “baseado em fatos reais” no início de qualquer filme de terror, e foi com esse calafrio na espinha que recordo ter assistido O Exorcismo de Emily Rose, filme lançado em 2005 dirigido por Scott Derrickson e protagonizado por Jennifer Carpenter. Possessão, livro escrito por Felicitas D. Goodman e lançado pela DarkSide Books por meio do selo Macabra, conta a história real que inspirou o filme onde a morte de uma jovem após uma sessão de exorcismo leva os padres responsáveis, e seus pais, à julgamento.

Assim, acompanhamos a trágica história de Anneliese Michel, uma jovem alemã que levava uma vida comum até os dezesseis anos: filha amorosa e irmã dedicada, era uma menina estudiosa que sonhava em ser professora na região da Baviera. Querida por todos no lugar onde morava, Anneliese era também uma jovem muito religiosa que frequentava a igreja católica com frequência, buscando na fé o conforto de que precisava quando se sentia triste ou com alguma questão a atormentando.

Era o final dos anos 1960 quando a menina começou a apresentar um comportamento estranho, totalmente diferente do que sua família e amigos estavam acostumados até então. Além disso, Anneliese passou a ter apagões, desmaios e convulsões, mas nenhum médico soube diagnosticá-la com clareza, optando por indicar que a jovem sofria de epilepsia. Anneliese chegou a ser internada por um período, a fim de que o tratamento fosse mais eficaz, mas o método pareceu apenas intensificar a sensação que ela nutria no peito: a de que estava possuída por demônios.

“Só estou cansada demais para sentir. Parece que estou incapaz de sentir qualquer coisa.”

Após passar por diversas consultas médicas sem resultados palpáveis, o que deixava Anneliese frustrada e cada vez mais depressiva, e, talvez, por ter uma criação baseada na fé católica, Anneliese intui que seu problema era demoníaco após ter alucinações enquanto rezava. Para ela e seus familiares, a possessão demoníaca parecia ser a única resposta para seu estado, visto que a menina não conseguia mais entrar em igrejas ou tocar objetos sagrados, como crucifixos, sem grande esforço. Foi assim que em conjunto com os pais, Anneliese buscou por padres que pudessem ajudá-la com um exorcismo, mas mesmo a Igreja foi reticente em atender aos seus pedidos por um tempo.

Enquanto isso, Anneliese, obedientemente, continuava comparecendo às consultas médicas onde receitaram anticonvulsivantes a ela pela primeira vez. A droga deu um alívio momentâneo para a menina, mas logo ela começou a ver faces demoníacas onde quer que olhasse, fazendo-a crer, cada vez mais, que sua doença era infligida por entidades que não queriam seu bem. Anneliese, mesmo sem acreditar na medicina, recebeu a receita de outros medicamentos usados para tratar diversas psicoses como esquizofrenia e distúrbios de comportamento.

Quando, finalmente, um bispo alemão permite que o exorcismo seja colocado em prática após inúmeros pedidos de Anneliese e sua família, o Padre Renz realiza a primeira sessão com o Rituale Romanum. Durante cerca de dez meses, o Padre Renz, sempre com a presença da família de Anneliese, realizou um total de 67 sessões de exorcismo, uma ou duas durante a semana, com algumas durando até quatro horas. Todos estavam convencidos da possessão de Anneliese e, a pedido da jovem, pararam com as consultas médicas e dedicaram-se totalmente às orações e ritos do exorcismo católico.

Anneliese faleceu aos 23 de anos de idade, durante o sono, após uma sessão particularmente cansativa de exorcismo. O relatório da autópsia indicou que a causa da morte da jovem foi desnutrição e desidratação unidos a quase um ano de semi-inanição enquanto os rituais de exorcismo eram realizados. Atormentada desde os 16 anos por vozes, visões de rostos macabros e torturas que autoinfligia, como se bater na parede e se jogar no chão repetidas vezes, Anneliese também falava em vozes que não pareciam sua, gritava de gelar o espírito dos presentes e comunicava informações passadas por demônios e santos. As sessões foram gravadas pelo Padre Renz e a autora de Possessão teve acesso aos seus arquivos para colocar em palavras o grande sofrimento pelo qual a menina passou durante longos sete anos.

possessão

Com a morte misteriosa de Anneliese, foi feito o comunicado de óbito às autoridades locais que iniciaram o inquérito. Os promotores públicos indiciaram os Padres Renz e Ernest Alt, que esteve presente em algumas sessões e conversava com Anneliese, além dos pais da jovem, por homicídio causado por negligência médica. O julgamento não demorou a chamar a atenção da mídia, colocando todos os envolvidos sob os holofotes em que questionavam as circunstâncias em que a morte de Anneliese aconteceu, acendendo um debate acerca dos limites da fé, da crença no sobrenatural e no inexplicável. A população não deixou de questionar: Anneliese estava mesmo possuída ou passou por inúmeros sofrimentos nas mãos de fanáticos que a privaram de atendimento médico quando mais precisou?

Quando essa história chegou aos ouvidos de Felicitas D. Goodman, linguista e antropóloga que dedicou toda a sua carreira ao estudo de fenômenos relacionados à possessão e à língua usada por pessoas ditas possuídas, ela precisou investigar o caso mais à fundo. Publicado pela primeira vez em 1982, Possessão é um relato denso e pesado de toda a trajetória de Anneliese Michel durante sete anos de pura dor, medo e agonia. A autora obteve acesso não somente ao material jurídico usado durante o júri do “Caso Klingeberg”, como ficou conhecido pela mídia, mas também aos arquivos médicos de Anneliese e a todas as fitas gravadas durante as mais de sessenta sessões de exorcismo a que a menina foi submetida. Felicitas D. Goodman destrincha em seu livro todos os momentos pelos quais Anneliese passou, desde suas visões aos recados enviados por meio dela para os presentes nas sessões de exorcismo quando a jovem falava em vozes e dava nome aos demônios que a possuíam, um por um, após grande pressão dos padres.

O objetivo de Felicitas em Possessão é trazer um relato minucioso dos fatos, e ainda que o livro seja relativamente curto, a leitura é pesada pois é impossível não sentir empatia pelo sofrimento de Anneliese, seja você cético ou crente. O fato é que, possuída ou sofrendo de alguma doença mental não diagnosticada, a jovem alemã sofreu por longos anos até sua morte, incapaz de compreender o que a afligia e de sair da espiral de medo em que se encontrava. Os Padres Renz e Ernest Alt, além dos pais de Anneliese, foram considerados culpados pela morte da jovem por negligência médica  e sentenciados a seis meses com liberdade condicional sob fiança. O “Caso Klingeberg” levantou um debate fervoroso na Alemanha a respeito da liberdade religiosa e os direitos paternais, e em 1984, oito anos após a morte de Anneliese, os bispos alemães solicitaram que a Igreja fizesse uma revisão no ritual do exorcismo devido ao que aconteceu a ela, mas foi somente em 1999 que o Vaticano realizou a primeira atualização a respeito do Rituale Romanum desde o século XVII, indicando que é necessária qualificação médica para que o exorcismo seja considerado.

Felicitas D. Goodman dedica os capítulos finais de Possessão para destrinchar todo o caso de Anneliese, mostrando como a trajetória da menina e os estranhos fenômenos que a acometaram podem ser interpretados. Ainda que autora seja coerente em suas palavras, usando dados e fatos para embasar sua publicação, sempre ficará a dúvida: Anneliese esteve mesmo sob possessão de uma legião de demônios? O que é ciência e o que é sobrenatural?

“Você pode rezar o quanto quiser, pode gritar pedindo ajuda, não adianta, o paraíso é surdo.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a DarkSide Books.


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