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O Impulso: livro de estreia de Ashley Audrain explora o lado sombrio da maternidade e os desdobramentos do noir doméstico

Em 2013, a escritora Julia Crouch publicou um artigo no seu blog a respeito de uma ramificação do thriller que estava em ascensão: o noir doméstico. À época, o subgênero literário se popularizava rapidamente entre os leitores de romances policiais e títulos como Garota Exemplar, de Gillian Flynn, encontravam sem dificuldade o seu caminho para a lista de mais vendidos do New York Times.

Nesse texto, a autora citou as principais características que uma obra precisava ter para ser considerada pertencente ao estilo. Como o nome sugere, as narrativas deveriam se passar em residências. Uma vez que este espaço é dominado por mulheres, as histórias tinham que se interessar por explorar a experiência das personagens femininas e o quanto a vida doméstica poderia ser desafiadora para elas.

Para além da tentativa de nomear o fenômeno literário, Julia Crouch também usou esse artigo para deixar claras as diferenças entre o thriller psicológico e o noir doméstico. Para ela, havia algo mais revelador na forma como o segundo gênero se estruturava, algo mais sutil. Assim, o trabalho do escritor não era somente criar uma trama repleta dos altos e baixos característicos do thriller, mas conseguir capturar nuances a respeito de dinâmicas familiares disfuncionais e de uma série de conflitos de ordem íntima.

É interessante notar que nos últimos três anos o noir doméstico se desdobrou em outro subgênero, o mum noir. Predominantemente escrito por mulheres, ele surgiu a partir da necessidade de explorar uma vivência ainda mais específica das personagens femininas: a maternidade.

o impulso

Em uma matéria do Grazia, a editora Phoebe Morgan destacou que muitas autoras têm se interessado por escrever a respeito da faceta sombria da maternidade, o que gera uma série de livros de suspense emocionantes e torna o tema “quente para o mercado”. Essas “novas mães” às quais os leitores estão sendo apresentados são bastante diferentes das que a literatura normalmente se dedica a retratar, especialmente porque elas são cheias dúvidas, inclusive sobre o amor que sentem pelos seus filhos, algo que supostamente seria incondicional e instantâneo.

Considerando esses aspectos, o grande diferencial do mum noir enquanto gênero é colocar sob os holofotes a ideia de que mães não são seres angelicais cumprindo um destino biológico. Existe muita coisa acontecendo durante a gravidez e durante os primeiros meses de vida dos bebês e, no fim, todo o processo é solitário até para aquelas que possuem uma rede de apoio. É claro que é possível encontrar mulheres que estão satisfeitas com a maternidade mesmo diante de todas as dificuldades, mas isso não deveria eliminar o fato de que existem mães que estão com raiva, que se ressentem e que se sentem tristes, seja pela sobrecarga ou pela súbita perda de identidade.

Entre todas as obras produzidas dentro do mum noir de 2020 para cá, um dos grandes destaques é O Impulso, livro de estreia de Ashley Audrain. Em uma entrevista ao El País, a autora declarou que por conhecer o mercado editorial e saber das dificuldades para vender um livro, escreveu a obra para si mesma e isso lhe deu a coragem para entrar em tantos temas tenebrosos com a história de Blythe Connor, uma mulher que está determinada a ser uma mãe muito diferente da que teve. Casada com Fox, ela pretende formar a típica família de comercial de margarina, ainda que em um primeiro momento se mostre reticente quanto à maternidade e acabe se comprometendo com a ideia pelo desejo do marido, alguém vindo de uma família estruturada e com ideias bem distintas sobre o que é ser mãe. Tanto por essa diferença quanto pelo fato de que Blythe afirma escrever para contar “o seu lado da história”, nós sabemos que esse plano fracassou. Essa impressão é reforçada pelo fato de que, no capítulo de abertura, a protagonista está do lado de fora de um apartamento observando enquanto o seu marido e a sua filha passam a noite de Natal na companhia de outra mulher. O que nós não sabemos é como as coisas chegaram a esse ponto e é exatamente por esse trajeto que Audrain nos guia.

Embora esses aspectos de tragédia anunciada estejam no centro do que move a curiosidade do leitor, tornando quase impossível interromper a leitura de O Impulso, uma das coisas mais interessantes do livro está na escolha de Blythe para narradora. Seria fácil dizer que Ashley Audrain optou por dar voz àquela mulher porque tudo ao seu redor conspirou para que ela não fosse ouvida a respeito de coisas importantes. Também seria bastante cômodo afirmar que o objetivo da autora era criar um “laço de empatia“ entre o leitor e a protagonista por meio das passagens nas quais a sua infância é rememorada, nos dando uma compreensão privilegiada dos seus receios quanto à maternidade e a sua própria capacidade de cuidar de um bebê. Entretanto, ao mesmo tempo em que nada disso é equivocado, esses pontos parecem não dar conta de toda a verdade porque um narrador-personagem, especialmente um que participa tão ativamente da trama, é obrigatoriamente não confiável.

“Um dia você vai entender, Blythe. As mulheres desta família… nós somos diferentes.”

O narrador-personagem confina o leitor a uma perspectiva supostamente factual, mas que inevitavelmente passa pelos seus filtros. No caso específico de obras que resgatam o passado, essa característica se torna ainda mais alienante porque depende da memória, que é construída de forma relacional. Ou seja, os “fatos” se depositam no interior de cada indivíduo de acordo com a importância que têm para ele. Portanto, algo extremamente banal pode se tornar marcante sob essa perspectiva. Da mesma forma, os acontecimentos podem ser exagerados e ter as suas proporções aumentadas por fatores externos, como o medo de repetir erros do passado e perpetuar traumas geracionais. Considerando essas questões, como um público como o do thriller, tão acostumado a questionar, poderia confiar em Blythe? Ela não parece a pessoa indicada para contar uma história com tanto espaço para dúvidas. E é exatamente por plantar esse questionamento na cabeça do leitor que Ashley Audrain consegue tornar a construção de O Impulso algo intrigante.

Blythe é propositalmente não confiável e Audrain não quer que quem lê acredite cegamente no que ela conta. Na verdade, a autora está o tempo todo brincando com diferentes hipóteses quando faz com que a sua protagonista questione o que viu, ouviu e sentiu a respeito da filha desde o seu nascimento. Mais do que isso, enquanto mulher e mãe, Ashley Audrain sabe de todas as possíveis resistências dos leitores contra Blythe, mesmo que o público do mum noir seja composto majoritariamente por mulheres, algumas com experiências pessoais ambivalentes quanto à maternidade. Então, ao optar por tornar O Impulso um resgate de lembranças de uma personagem às voltas com as consequências de se tornar mãe, a autora consegue fazer com que, ao mesmo tempo, a versão dos fatos de Blythe seja questionada e abraçada. A protagonista está psicologicamente abalada pelo cansaço e, de repente, deixa de ser uma mulher com interesses e personalidade próprios para se tornar um ser que existe em função de outro e somente porque esse outro precisa dela. Então, é muito fácil entender porque Blythe tem ressentimentos contra Violet, especialmente uma vez que a chegada da menina interrompe uma vida que seguia um curso de estabilidade e afeto desejados por ela desde a infância.

Em uma determinada passagem de O Impulso, a narradora rememora uma frase dita pela sua mãe a respeito da relação negativa das mulheres da sua família com a maternidade. A partir desse trecho, é possível perceber que o medo é algo bastante marcante no comportamento de Blythe e que pode ter influenciado na forma como ela percebia Violet. Durante a sua entrevista ao El País, Ashley Audrain chegou a declarar que enxerga o medo como uma parte intrínseca da maternidade e entende a vertente do thriller que explora essas experiências como desconcertante exatamente por essa relação. Para a autora, é impossível que uma mãe não tenha medo de estar fazendo as coisas do jeito errado. No caso da protagonista de O Impulso, esse sentimento vai além porque existe também o medo de que a sua filha seja alguém perverso e capaz de machucar outras crianças, um pensamento que ela não tem espaço para compartilhar porque Fox está completamente apaixonado por Violet e se recusa a ver a filha sob uma perspectiva negativa, ainda que essa recusa possa colocar outras pessoas em perigo.

Portanto, O Impulso é uma obra que abandona os seus leitores a própria sorte porque nada é conclusivo. O tempo todo as impressões dos demais personagens sobre Violet entram em choque com as percepções de Blythe. Isso se torna ainda mais acentuado quando Gemma passa a fazer parte da equação porque ela também não percebe nenhum problema no comportamento da enteada e as duas estabelecem uma relação amistosa. Por outro lado, ninguém além da protagonista está presente durante os momentos nos quais a sua filha supostamente revela a sua pior face. Então, como eles poderiam julgar os acontecimentos? Devido a essa impossibilidade, tudo acaba sendo tratado como fruto da imaginação de alguém que está cansado dos desafios dos primeiros meses de maternidade e não consegue amar o seu bebê. Em um determinado ponto, a própria Blythe parece aceitar essa teoria. E, infelizmente, essa é uma possibilidade que nós não descartamos completamente enquanto leitores por mais que o nosso primeiro instinto seja acreditar na narradora. Simultaneamente, nós não conseguimos nos fechar para a ideia de que algo está errado com Violet porque existe uma longa tradição literária de obras que exploram a temática da maldade infantil, de Menina Má, de William March, a Precisamos Falar Sobre Kevin, de Lionel Shriver.

“Eu estava tão cansada de pensar em Violet. Não queria mais que ela fosse meu problema. Meu maior medo.”

Esse último livro, inclusive, tem diversas interseções com O Impulso. Embora seja óbvio relacionar as duas histórias aproximando Blythe e Eva enquanto mulheres que se tornaram mães sem ter certeza sobre a sua aptidão ou desejo, o maior ponto em comum entre as duas obras está nos personagens masculinos, Fox e Franklin. Primeiramente, porque ambos se colocam na posição de advogados dos filhos mesmo em situações extremas, como na passagem em que Kevin causa um acidente que faz com que Celia, a sua irmã mais nova, perca a visão de um olho. Além disso, os dois são descritos como excelentes pais pelas suas companheiras, que se dirigem  a eles nas suas memórias. E embora Blythe e Eva nunca cheguem a falar explicitamente sobre isso, tanto Fox quanto Franklin estão constantemente ausentes do ambiente doméstico e ocupam uma posição confortável: a do homem que ajuda na criação dos filhos, como se uma presença esporádica na rotina fosse equivalente a uma participação ativa. Justamente por estarem nesse lugar de alguém que compartilha com as crianças os momentos de lazer e poucas horas do dia a dia, eles podem se dar ao luxo de escolher o que querem ver. Então, faz pouca diferença que Blythe e Eva tentem contar o seu lado da história porque qualquer um que tenha que fazer esse tipo de escolha vai acabar optando por confiar na ideia de que a infância é um período de inocência e que a maldade é um traço socialmente construído, podendo inclusive ser fomentado pela ambiguidade feminina diante da maternidade. Portanto, a culpa por qualquer tragédia é exclusivamente das mulheres para Fox e Franklin, que seguem confortavelmente nas suas posições de privilégio mesmo quando tudo ao redor desmorona.

Apesar de todas as semelhanças, existe um ponto que afasta Precisamos Falar Sobre o Kevin e O Impulso, tornando a obra de Ashley Audrain um passo adiante em relação ao que Lionel Shriver construiu quase duas décadas antes: a ausência de respostas. Enquanto Shriver não deixa dúvidas a respeito do fato de que as ressalvas de Eva quanto ao filho tinham razão de ser, Audrain escolhe tornar os dois últimos capítulos da sua história algo aberto. Logo, o leitor pode acreditar no que Blythe afirma, ainda que ela mesma faça questão de dizer que não tem certeza sobre o que ouviu quando se afastava do novo apartamento de Fox; ou ele pode optar por manter as suas suspeitas mesmo diante da frase sussurrada por Violet e do conteúdo do telefonema de Gemma. Essa escolha de Audrain é bastante inteligente visto que não existe uma resposta absoluta para os conflitos explorados em O Impulso, quer se fale sobre a suposta maldade de Violet ou sobre a influência que os traumas de Blythe tiveram na sua relação com a filha e na sua percepção da maternidade. Portanto, um final moldável às crenças de cada um é tudo que uma obra como essa poderia oferecer.

É natural que um desfecho que não responde às principais perguntas que o livro levanta seja frustrante para algumas pessoas, especialmente quando se fala sobre um gênero derivado do thriller, que é conhecido por investigações que geram questionamentos, mas que têm uma resolução em si mesmas. Porém, como O Impulso trabalha com temas cujos debates são ainda bastante recentes e pouco conclusivos do ponto de vista científico, tentar oferecer uma solução fechada significaria esvaziar o sentido de busca que a obra deixa claro desde as suas primeiras páginas. Blythe escreve para Fox porque está procurando o que pode ter feito de errado e tentando entender como a sua bagagem interferiu na sua maternidade. E quem poderia afirmar isso com certeza, já que esse tipo de experiência é subjetiva? Ashley Audrain prefere circular pelo campo das possibilidades, um terreno muito mais frutífero para o mum noir porque permite sutilezas e interpretações diferentes. Ao fazer isso a autora consegue criar uma história inquietante, profunda e que não desvia o olhar das discussões sombrias, tornado O Impulso um livro corajoso e que provavelmente vai se tornar referência para todas as autoras que decidirem se aventurar por temáticas desse universo futuramente.


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