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The Southern Book Club’s Guide to Slaying Vampires: horrores fantásticos e domésticos

Lançado em 2020, The Southern Book Club’s Guide to Slaying Vampires, de Grady Hendrix, foi vendido como uma interseção entre o clássico literário Drácula com o filme Tomates Verdes Fritos, e ainda com pitadas do reality show The Real Housewives. O thriller sobrenatural se passa nos anos 1990, e retrata o cotidiano de Patricia Campbell, uma ex-enfermeira e dona de casa, que periodicamente se reúne com suas quatro melhores amigas de um ascendente bairro de Charleston para o clube do livro, a fim de ler e debater suas obras literárias favoritas: suspenses e true-crime.

Apesar da temática fúnebre, o Clube do Livro é um momento de lazer, socialização e relaxamento para as cinco integrantes, que muitas vezes se veem sobrecarregadas pelo dia a dia de mães, esposas e donas de casa, rotina que muitas vezes é considerada pacata, simples e enfadonha por seus maridos. Além disso, as reuniões são o momento ideal para essas mulheres fazerem o que fazem de melhor: fofocar sobre os acontecimentos da vizinhança. E rapidamente, o recém chegado na cidade, James Harris, vira uma pauta entre o grupo de vizinhas.

Harris é um mistério: raramente sai durante o dia, dirige uma van que não orna com o resto do bairro, e pouco tempo depois de chegar a cidade, herda a casa de sua tia-avó Ann, que sofre uma morte no mínimo inesperada e bizarra. Apesar da resistência inicial da vizinhança em acolher James Harris, logo ele conquista o coração de Patricia e, mais ainda, dos maridos da região, que o acolhem como um irmão mais novo na comunidade de classe média alta.

Paralelamente, em uma região menos afortunada da cidade, crimes macabros passam a acontecer com crianças e mulheres desprivilegiadas, o que faz com que Patricia Campbell, com todo seu treinamento proporcionado pelas leituras do Clube do Livro, passe a desconfiar do novo e sedutor vizinho. Seria ele o criminoso? Pior, seria ele humano ou um ser amaldiçoado?

The Southern Book Club’s Guide to Slaying Vampires

Puxando gatilhos

De forma geral, The Southern Book Club’s Guide to Slaying Vampires não é um suspense tão misterioso. O desenrolar da trama principal não chega a surpreender, mas a forma como é construída chama a atenção ao evidenciar o drama sofrido por mulheres até em nossa realidade atual: o gaslighting. Mesmo quando certas, são chamadas de doidas, o que faz com que elas duvidem da sua própria intuição e da verdade que encaram com os próprios olhos.

A crua diferença entre classes, raça e gênero também fica muito clara na narrativa, sendo tão desconfortável quanto o gore frequente no livro, que possui descrições de violência física, sexual, psicológica, e contra animais. Dessa forma, apesar de ter uma narrativa intrigante e repleta de nuances, a obra de Hendrix não é uma leitura tranquila. Portanto, antes de caçar vampiros com as integrantes do Clube do Livro, é bom ter os alertas de gatilho em mente.

Logo no primeiro parágrafo, há um aviso sobre o conteúdo que estamos prestes a ler: vai acabar em um banho de sangue. Muito sangue. E não apenas do vilão, mas das nossas heroínas, e de vítimas inocentes. Vagando entre as avaliações do livro no GoodReads, Skoob e StoryGraph, além de inúmeras resenhas positivas, também há muitas reclamações sobre as descrições de violência, e não apenas as agressões claras, mas também as microagressões sofridas por várias personagens.

Ilustração da realidade injusta

Em The Southern Book Club’s Guide to Slaying Vampires, acompanhamos cerca de seis anos de história. Sim, não é uma narrativa que se conclui rapidamente, e há muitas idas e vindas e alguns capítulos tediosos até o “final feliz”, se é que podemos chamar assim, de Patricia Campbell. E, entre os acontecimentos, temos vislumbres de uma realidade injusta e preconceituosa.

A protagonista, que se considera uma boa mãe e uma boa pessoa, muitas vezes elogiada por sua generosidade, negligencia e ignora em vários momentos as dores e as realidades das mulheres pobres e não-brancas que conhece, chegando a colocá-las em ainda mais risco em alguns momentos do livro. Há momentos de racismo mais escancarado, mas também do preconceito velado, sendo possível imaginar com clareza o olhar de desdém e desconfiança das mulheres ricas com os moradores do bairro desprivilegiado, majoritariamente não-brancos.

O machismo na narrativa também é desconfortável de acompanhar. Como somos apresentados principalmente ao ponto de vista de Patrícia Campbell, podemos perceber tanto o sexismo presente na sociedade e reproduzido por suas amigas e conhecidos, como também o que ela enfrenta dentro de seu casamento.

Os segredos no casamento

Já nos primeiros capítulos, Patrícia e as outras cinco integrantes do Clube do Livro reclamam de ler livros indicados e escritos por homens, que muitas vezes não as interessa verdadeiramente. Isso muda quando uma nova integrante do grupo recomenda que elas passem a ler algo que realmente as entretenha, como romances sobrenaturais, mistérios e casos criminais.

Todas se empolgam com a mudança, mas nenhuma se sente confortável o suficiente para comentar sobre a mudança com seus respectivos maridos e filhos. Patrícia diz que segue lendo os livros da lista de sempre, enquanto outras dizem ler textos religiosos, pois não querem que o clube seja influenciado ou cancelado pelos maridos. Essa pequena omissão já nos dá pistas sobre a realidade matrimonial desse grupo de amigas. Em pouco tempo, fica evidente o papel dos maridos na história: são os provedores, gestores e verdadeiros “chefes de família”, que ditam o que é certo e o que é errado, o que é um comportamento social adequado, e o que leva vergonha para suas linhagens.

A família de Patrícia, por sua vez, é comandada pelo seu marido, Dr. Campbell, um dos principais psiquiatras de Charleston, que apesar de amar profundamente sua esposa e filhos, em pouco tempo se corrompe e prefere priorizar a visão de um novo amigo, do que confiar em sua cônjuge, colocando sua família em profundo risco. A traição conjugal aparece em diferentes pontos da narrativa, com ocorrências em diferentes famílias “tradicionais””. Mas, pelo bem de uma boa convivência com os vizinhos, os assuntos são abafados e as esposas fazem vista grossa para não arriscarem um divórcio, que ainda parece ser um tabu nessa comunidade dos anos 1990. Mais do que isso, é um risco para as mulheres que abandonaram suas profissões e independência financeira para se tornarem as esposas e mães “perfeitas”.

Mesmo com essa estrutura conservadora tão fortalecida, com mães atentas e pais provedores, Patrícia e seu marido falham ao perceber que seus filhos estão sendo seduzidos, psico e fisicamente pelo lobo em pele de cordeiro, o vizinho James Harris. Até quando Patrícia sabe a verdade sobre o monstro, ela se convence a ignorar o que vê para não perder seu casamento e a guarda dos filhos, uma vez que o marido a ameaça com um divórcio — não por conta dos casos extraconjugais que ele mantém, mas porque sua esposa está desonrando o precioso amigo da família.

No casamento dos Campbells, e de outras personagens do livro, o recém-chegado James Harris é visto como um filho mais velho ou irmão mais novo pelos os maridos, enquanto as preocupadas esposas são mulheres histéricas, desconfiadas, que leem ficção demais e, sem um emprego, têm muito tempo para fofocar.

Horrores reais e fantásticos

Pelos seis anos retratados no livro, a narrativa de Grady Hendrix é afiada a todo momento, com camadas de humor e crítica em meio ao horror e, apesar de sua vivência como um homem cis, o autor é bem sucedido em muitos momentos do livro ao descrever frustrações vividas por suas personagens femininas. Ele expõe em sua história terrores que vão muito além de um vampiro violento e assassino, mas que assolam a realidade de milhares de pessoas tanto no espaço-tempo que a narrativa retrata, quanto nos dias de hoje, a partir do ponto de vista de uma protagonista privilegiada, que não é a vítima direta de muitos dos preconceitos retratados, mas sim sua fomentadora.

Como informado no início do livro e nesta resenha, The Southern Book Club’s Guide to Slaying Vampires se conclui em sangue, muito sangue, que, na verdade, escorre por todos os capítulos. Temos o sangue dos vilões e das mocinhas, que, por sua vez, são muitas vezes anti-heroínas, com moral complexa e falha. Temos também o sangue dos inocentes, que desperta uma dor real. Ao mesmo tempo, ter todos esses horrores escancarados nas páginas também é um lembrete que a literatura é uma arte que não tem uma função única de nos entreter com narrativas doces e utópicas, mas serve também para colocar o dedo na ferida, causar desconforto, e evidenciar o que há de feio em todos os lugares.

Dessa forma, quem deseja ser incomodada pelo terror, pelo suspense e pelo macabro, tem em The Southern Book Club’s Guide to Slaying Vampires um livro que, apesar de um pouco arrastado, tem em si obscuridade, raiva, pitadas de humor, mistério e uma narrativa de alta qualidade.

The Southern Book Club’s Guide to Slaying Vampires


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