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Not Me: nem eu, nem você — todos nós, juntos, é que mudamos o mundo

Diferente dos filmes LGBT+ que estão apenas agora começando a se popularizar e ganhar a produção em massa no ocidente, o boy’s love (carinhosamente chamado de BL) é um gênero bastante difundido na Ásia. Como explicado no episódio sobre Tóquio na série documental Christiane Amanpour: Amor e Sexo Pelo Mundo, a história desse tipo de mídia se iniciou no Japão dos anos 70, criado por e para mulheres. Daí o nome: boy’s love. Embora possa ter muito subgêneros e se encaixar nas mais variadas categorias — suspense, ação, terror ou qualquer outra —, há mais outra característica marcante que o tempo deixou como marca desse tipo de história.

Quase como numa fantasia, os BLs apresentam relacionamentos entre dois homens, geralmente com foco romântico ou (levemente) erótico, e as histórias são ambientadas em nosso mundo, mas no universo ficcional criado para contar tais tramas, onde amar alguém do mesmo gênero não chega a ser uma questão muito dramática. Nesse tipo de obra, outras questões do relacionamento e das próprias conexões humanas através do amor ganham destaque, já que a homofobia, externa ou internalizada, não toma parte da trama, que também não costuma centralizar questões sobre aceitação da identidade LGBT+.

Esse tipo de característica dá abertura para que os personagens possam se preocupar com outros aspectos da vida. Normalmente, os finais são felizes e o telespectador consegue visualizar um mundo e se inspirar por relações em que o amor é possível e mais livre das expectativas sociais baseada em gênero. Por si só, essa é uma característica revolucionária do boy’s love, ao menos na definição da escritora Ursula K. Le Guin que, em seu discurso de agradecimento pela homenagem por sua contribuição à literatura estadunidense, no National Book Award de 2014, fez a seguinte afirmação:

“Acredito que tempos difíceis estão por vir, quando desejaremos ouvir a voz de escritores que consigam ver alternativas ao que vivemos hoje e possam enxergar além desta nossa sociedade, tomada pelo medo e por sua tecnologia obsessiva, outras maneiras de existir, e que possam até imaginar possibilidades reais de esperança. Precisaremos de escritores que possam se lembrar da liberdade. Poetas, visionários — os realistas de uma realidade mais ampla.

Neste momento, acredito que precisamos de escritores que saibam a diferença entre a produção de um bem de consumo e a prática artística. Desenvolver material escrito para se adequar a estratégias de venda e maximizar o lucro corporativo e a renda publicitária não é bem a mesma coisa que ser um editor ou autor de livros responsável.

Porém, vejo os departamentos de venda ganharem controle sobre o editorial; vejo minhas editoras em um pânico tolo de ignorância e ganância, cobrando de bibliotecas públicas seis ou sete vezes mais do que cobram dos consumidores. Acabamos de ver um aproveitador ameaçar uma editora por desobediência e escritores ameaçados por uma fatwa corporativa, e vejo muitos de nós, produtores que escrevem os livros e fazem os livros, aceitando isso. Deixando esses exploradores nos vender como desodorantes e nos dizer o que publicar e o que escrever.

Livros, vocês sabem, não são apenas mercadorias. A motivação pelo lucro está frequentemente em conflito com os objetivos da arte. Vivemos no capitalismo. O seu poder parece ser inevitável. Assim era o poder divino dos reis. Os seres humanos podem resistir a qualquer poder humano e mudá-lo. A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte, e muitas vezes mais na nossa arte — a arte das palavras.”

Not Me

Criar o imaginário de um universo onde a homofobia não seja um empecilho para a felicidade das pessoas e o sucesso de suas relações amorosas nos permite almejar e lutar por uma realidade diferente da nossa, mesmo que o cenário seja a Tailândia — um país em que a homofobia não causa o número alarmante de mortes que causa no Brasil, por exemplo, e onde as identidades de gênero têm tradicionalmente mais possibilidades do que o da nossa sociedade binária. Mas Not Me é um drama que faz criar a imagem mental de revoluções ainda mais transformadoras.

Os BLs começaram a ser escritos por e para um público majoritariamente feminino, para que as mulheres pudessem escrever, ler e se projetar em corpos mais livres da censura e do julgamento imposto aos seus próprios, quase como uma tentativa de fugir aos estereótipos dos romances heterossexuais, e hoje, produções do gênero têm se multiplicado principalmente no leste asiático. O desenvolvimento histórico e cultural de cada país acaba levando ao estabelecimento mais específico de alguns tipos de mídia e cada lugar se especializa em algo. Na Tailândia, a produção de séries dramáticas curtas tem alimentado toda uma indústria com consumidores não apenas dentro do país, mas também fora dele.

Com a difusão dos serviços de streaming, incluindo o próprio YouTube — algumas emissoras têm canais onde disponibilizam episódios semanalmente, com legendas feitas por fãs internacionais — as séries BL têm sido mais vistas por um público mais amplo, incluindo pessoas LGBT+ ao redor de todo o mundo. Ganhar esse público carente de uma variedade de histórias protagonizadas por eles mesmos talvez seja parte importante de uma estratégia para promover a cultura tailandesa, tornando-a um produto comercializável, patrocinado por marcas internacionais — algo parecido com o que faz a Coreia do Sul com a onda Hallyu, como explicado no programa Greg News sobre k-pop.

É neste momento, em que o consumo da cultura tailandesa ganha força, e com um enredo baseado em clichês típicos do romance, que o drama Not Me foi lançado, em dezembro de 2021. No entanto, embora o romance dos protagonistas e personagens secundários receba destaque a traga também sua dose de clichês (até porque eles também movimentam a trama), a série de quatorze episódios consegue se tornar independente da estrutura tradicional dos BLs para se voltar para revoluções ainda mais importantes, enquanto acompanhas as descobertas transformadoras que White (Gun Atthaphan), o personagem principal, faz sobre si mesmo, sobre o irmão e seus amigos e, principalmente, sobre o sistema em que vivemos.

Not Me

Desde pequenos, os gêmeos Black e White possuem uma ligação muito peculiar. Ambos são interpretados brilhantemente por Gun Atthaphan, ator premiado que consegue, de maneira sutil, marcar com sua atuação a distinção entre os dois personagens. Além de uma proximidade e parceria que pode ser típica a qualquer grupo ou dupla de irmãos, os dois também são unidos por uma característica incomum: um consegue sentir as dores físicas, o sofrimento e a euforia do outro. Os dois, no entanto, já se mostram diferentes em suas personalidades desde a infância e são separados por um longo tempo pelos pais, após o divórcio do casal, quando Black segue vivendo na Tailândia com a mãe e White é levado para a Rússia com o pai, onde se forma em Relações Internacionais e vive uma vida aparentemente comum.

Ao regressar ao país de origem, White deixa para trás o relacionamento que viveu em seu período universitário e está pronto para retomar a vida e os processos de conseguir um emprego após se formar. Enquanto é apresentado aos amigos do pai, numa das folgas dos estudos para um concurso público, White se sente estranhamente mal. Ele sabe que algo aconteceu com seu irmão, com quem não tem mais nenhum contato. A confirmação daquela sensação vem quando Todd (Harit Cheewagaroon), único amigo de infância dos irmãos, procura White para avisar que Black foi encontrado inconsciente depois de ter apanhado. Sem pistas de quem possa ter ferido o irmão, White recebe um recado simbólico de Black, que remete a um episódio da infância dos dois: ele deve continuar a missão de Black enquanto este ainda se encontra em coma.

Todd não demonstra saber muito sobre Black, mas sabe que ele pertence a um grupo e ajuda White a se infiltrar entre os amigos, sob o pretexto de que, dessa forma, seria mais fácil descobrir o responsável pelo ataque. Inicialmente, White desconfia de todos, que parecem ora amigáveis, ora suspeitos, e estão envolvidos em alguma trama que não parece muito certa: na primeira missão do grupo, a gangue invade uma residência e ateia fogo a ela. Entre não ser pego pelos amigos do irmão, descobrir a verdade e não fazer nada que considera errado e vai contra seus princípios, White tenta lidar com a situação da melhor maneira possível, e aos poucos começa a entender o que o grupo almeja enquanto vive as duas identidades — a sua própria e a que tem que fingir.

Através das relações com os colegas da gangue e outras pessoas do passado de Black, White se dá conta de que também tem o mesmo objetivo de seu irmão: um mundo mais justo, onde todas as pessoas tenham oportunidades e direitos iguais. E o que parecia antes ser um método radical demais para o recém-chegado da Rússia vai se revelando através de diálogos diretos. O roteiro é corajoso e não tem medo de apontar abertamente as questões sociais e nomeá-las como parte de uma ampla e intrincada rede de impedimentos para mudanças que são necessárias para transformar a sociedade. Não apenas parte dela, mas todo o sistema: a série traz discussões sobre a desigualdade social, de gênero, capacitismo, racismo e dá bastante destaque às lutas pela igualdade de direitos para a população LGBT+.

Uma das cenas mais emblemáticas, inclusive, acontece em um protesto pela liberação do casamento entre pessoas do mesmo gênero, que surge em decorrência de uma ação mais radical do grupo contra a empresa de um capitalista que vem monopolizando os meios de produção e a política no país. Debaixo da bandeira LGBT+ e em meio a gritos de ordem contra o empresário e pela igualdade de direitos, Sean, vivido por Off Jumpol, e White se encontram e estabelecem pela primeira vez um elo de concordância em seus planos — que não apenas são contra o sistema, mas também uma vingança pessoal contra Tawi (Daweerit Chullasapya), dono das empresas e da casa atacada no começo da trama.

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Com o passar dos episódios e a proximidade forçada entre White e Sean, descobrimos que Tawi é o homem por trás da morte do pai de Sean, que se viu sendo obrigado a colaborar com o tráfico por causa das condições injustas de trabalho e, ainda assim, foi morto a tiros por um policial sem ao menos ter a chance de um julgamento ou de explicar que tinha escolhido aquela forma de ganhar dinheiro para sustentar o filho e a esposa. Flashbacks revelam que, depois do episódio e ainda em meio ao luto, Sean foi abandonado pela mãe, e decide não apenas se vingar de Tawi, mas lutar por um mundo mais justo onde histórias como a sua e a de seu pai não se repitam. É com uma mistura sutil e equilibrada de delicadeza e brutalidade que essa história anterior aos fatos da trama se revela, e aprendemos, junto aos personagens, que sua luta é importante, mas também é importante o meio como se briga por igualdade e justiça. E é por isso que, além do simbolismo romântico, o encontro de Sean e White é também emblemático para a trama e representa um equilíbrio e uma junção de forças.

Muito mais do que uma união tática para seguir revelando ao povo as armadilhas do sistema capitalista e mobilizá-los para a transformação radical, a cena em que os dois se dão as mãos sob a bandeira do arco-íris representa também algo muito mais sutil, que o sistema também prejudica: a possibilidade de laços humanos genuínos, movidos pelo afeto verdadeiro e um amor livre das amarras e pré-definições da sociedade. Em meio às manifestações, preparação e execução de planos de sabotar as empresas de Tawi, White acaba aprendendo mais com todos os seus companheiros de luta, mas é claro que sua proximidade maior é com Sean e isso acaba gerando um dilema já que ele está vivendo a vida do irmão ainda em coma. Ao mesmo tempo que Sean não parece se entender bem com o Black verdadeiro, ele começa a se abrir e confiar em quem ele pensa ser uma nova versão do mesmo Black. À medida que compartilha seus desejos e fragilidades com White, Sean vai criando um laço de proximidade e os dois vão sendo impelidos pelo desejo a se aproximarem ainda mais um do outro.

Como muitas vezes os BLs reproduzem clichês românticos bastante questionáveis e baseados em papéis tradicionais e retrógrados de gênero — ainda que se tratem de romances entre dois homens —, Not Me é uma produção subversiva também aqui. O drama  quebra a tradição dos boy’s love não apenas por trazer uma temática nova — a militância anticapitalista que passa da ala mais radical até a mais moderada, mostrando como todas são importantes e igualmente —, mas os padrões e expectativas para o romance também são quebrados com a ajuda de um roteiro, atuação e direção suaves, que trazem nuances da intimidade dos personagens de forma direta e, ainda assim, gentil. Mesmo a fotografia sem muitos filtros e a iluminação mais crua, com câmeras muito próximas ao rosto dos atores, faz com que os espectadores se sintam testemunha de algo particular, o que contribui para a criação de relações ficcionais muito bonitas.

Em uma cena super delicada, que traz como base para a construção do momento romântico o diálogo, Sean e White redescobrem as possibilidades da nova forma de atração que sentem. Ambos haviam se relacionado com mulheres antes e, embora não pareçam ter nenhum impedimento quanto ao envolvimento com alguém do mesmo gênero, a trama indica que, ao menos para White, esta é sua primeira experiência amorosa com um homem. A direção e o roteiro constroem uma cena bonita e amorosa, sem amenizar o desejo, e com atuações que também ajudam a sustentar, nas entrelinhas da primeira relação sexual dos protagonistas — uma consolidação de todos os valores que a série defende.

Além do casal principal, outras relações retratadas pela série se beneficiam das escolhas intimistas, cruas e naturais da direção de Anucha Boonyawatana. Premiada por Malila: A Flor do Adeus e The Blue Hour, seus filmes mais conhecidos, a cineasta da cena independente já havia trabalhado previamente com os atores principais, e também com o time de roteiristas, e soube trazer delicadeza e leveza ao romance. Fora Sean e White, há o casal formado por Yok, artista plástico em formação que compõe o grupo de manifestantes, e Dan, um policial assombrado por seus próprios erros do passado e diretamente conectado à trama principal. Os dois conseguem concretizar uma relação aparentemente impossível e vão se conectando de forma intensa — e trágica — por meio da arte conscientemente politizada. Ainda que o desfecho do relacionamento seja amargo, há leveza na maneira como os atores são dirigidos para interpretar de forma natural o desejo que os atraem e as motivações que os unem. Até mesmo o triângulo amoroso entre Black, sua ex-namorada, Eugenie (Rachanun Mahawan), e Gram (Tanutchai Wijitwongthong), amigo de longa data de Genie e também integrante da gangue, se desenrola de forma sensível, pautada pelo respeito e pelo diálogo, por mais fortes, impetuosos e determinados que eles sejam.

É aqui que parece fazer mais diferença a direção e o roteiro terem as mãos de mulheres: Genie e até mesmo a ex-namorada de Sean, são personagens coadjuvantes, com pouco tempo de tela, mas com profundidade em suas construções e densidade em suas questões. Muitas vezes, nos BL’s, personagens femininas acabam servindo apenas como uma ferramenta para que um dos personagens se descubra apaixonado pelo outro, e são bastante desumanizadas. Aqui, as duas têm voz e, inclusive, participação na trama política que atravessa o enredo, mostrando também como a arte de cada uma — o desenho e a dança, respectivamente — pode se conectar com as transformações sociais.

Também é importante ressaltar que a diretora é uma mulher trans e, talvez por isso, a ex-namorada de Gram — de quem ainda é amigo — receba um olhar tão gentil na trama. Nuch (Natthapon Pakdeerak) segue presente de forma ativa na série, que faz questão de destacar sua inteligência e maneira peculiar de combate ao sistema. A questão de gênero é bastante diferente no país asiático, se a compararmos com o Brasil, mas ainda assim é importante para nós, que viemos desta cultura transfóbica, ver Nuch não apenas como uma representação vazia ou mera coadjuvante preenchendo uma cota: ela também é alvo de afeto e consideração e uma personagem que recebe traços humanos em sua composição — como não costumamos ver na TV brasileira em horário nobre até hoje.

É também com uma mistura angustiante de sutileza e brutalidade que a trama mostra a realidade dura de quem se envolve no combate a um sistema tão articulado e opressor, e chega a ser surpreendente que a produção tenha sido realizada em um país como a Tailândia, em que, depois de um golpe de estado das forças militares em 2014, atualmente é crime até mesmo criticar a monarquia que se encontra no poder. Not Me não tem medo de mostrar a realidade, escancará-la e nomeá-la. Mais uma vez, o discurso de Ursula K. Le Guin volta a definir a importância da obra que, apesar de se adequar ao mercado, ainda nos permite imaginar o inimaginável: formas de sair e combater o capitalismo.

Nesse sentido, outro personagem que vai conquistando tempo de tela e relevância dentro da trama é Todd, amigo de infância de Black e White. O personagem acaba se revelando o culpado pelos ferimentos quase mortais de Black e também é um grande beneficiário do sistema, tendo diálogos impressionantes com seu amigo quando ele retorna do coma: de forma aberta, os dois falam sobre as dificuldades de transformar a sociedade e quais meios podem ou não ser verdadeiramente revolucionários. A violência do combate de um ao outro se intercala com uma compreensão quase surpreendente e que dá uma camada muito mais complexa à relação dos dois e também ao próprio drama. Embora o foco dos militantes representados na série não seja o governo em si, a partir das discussões dos ex-amigos e atuais arqui-inimigos fica óbvio que o sistema capitalista tão criticado e combatido pelos protagonistas é também sustentado pelo regime político, e não é apenas de responsabilidade da classe alta à qual Todd pertence.

É exatamente neste ponto que Not Me demonstra como é preciso conciliar o radicalismo e a moderação para angariar uma transformação que não é minha nem sua, mas que deve ser de todos e para todos. Além de ter os gêmeos Black e White representando o radicalismo versus a moderação, em uma dinâmica que demonstra que ambos são complementares e não opostos, a própria narrativa conta com essa abertura para falar e demonstrar como derrubar o capitalismo — mas apenas na medida necessária para que a produção possa existir e ser exibida em condições favoráveis: no horário nobre da TV aberta tailandesa.

De muitas outras formas, a série prega a união de forças, já que, além dos manifestantes, há também a importância da arte: todos os personagens, de uma forma ou outra, usam suas próprias ferramentas para protestar e combater o sistema e, como forma de reconhecer essa importância, a produção trás da vida real a participação especial de militantes de movimentos existentes no país e artistas ativos em uma arte engajada. Na figura de Khumpa (Phromphiriya Thongputtaruk), um mecânico com experiência na militância radical, Not Me mostra a importância da tradição de luta ao acolher e trazer sabedoria ao grupo jovem e cheio de energia, fazendo com que os planos se realizem com cautela e ação.

Também é de forma corajosa e catártica que a série demonstra os dois extremos da militância para de fato transformar a sociedade. O final da série parece absurdo: traído por Dan, o grupo militante é pego enquanto tenta resgatar Yok do hospital, que passou por uma cirurgia para remoção de uma bala. No conflito dramático, os militantes parecem sem saída, e é mérito da direção e das atuações a maneira como sentimos a agonia que eles passam: uma morte traumática parece inevitável e eles chegam a se despedir e dizer últimas palavras enquanto estão encapuzados em um veículo que os leva para longe. É brutal e desesperador. Mas então eles são salvos pelo público, que acompanhou as ações moderadas de White na internet — apoiadas principalmente por Nuch, como descobrimos depois do ápice.

A cena é emocionante e esperançosa: os manifestantes são soltos pelas mãos do povo que apoia sua causa. E, embora tudo pareça cinematográfico demais e inacreditável, a cena é inspirada no desfecho real de um caso famoso na Tailândia. Uma das roteiristas do drama tailandês postou no dia da exibição do último episódio o trecho, que exibe o momento em que líderes de protestos ocorridos no ano anterior ao lançamento de Not Me são resgatados por uma multidão de outros manifestantes que pressionaram a polícia — que os havia pego à paisana e sem um mandato — a liberá-los para receberem atendimento médico, conforme explica a matéria sem tradução oficial para inglês ou português do Thai República.

Talvez, Not Me seja tão importante porque consegue ser realista em trazer os perigos reais de se engajar nessa luta ao mesmo tempo em que traz também esperança, motivação e caminhos pelos quais podemos nos mobilizar sem entrar no campo da fantasia completamente utópica. O que está ali é real, possível, e pede a consciência e colaboração de todos. O título do drama, afinal, é uma referência à hashtag usada pelos manifestantes da série que acabaram salvando o grupo: “not me, not you, but everyone” [“não eu, não você, mas todo mundo”]. Todos nós, juntos, somos capazes de mudar o mundo.


** Muitas das informações deste texto surgiram a partir da discussão do grupo Vamos Falar Sobre Doramas, organizado pela historiadora Natália Campos. No encontro para falar sobre Not Me é que a ideia deste texto surgiu, e agradeço a ela por tanto conhecimento transmitido, pelo apoio na escrita deste artigo e também a todas as pessoas presentes no grupo acolhedor e tão aberto para o conhecimento e entendimento de uma cultura tão distante.