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Crítica: Doutor Estranho

Quando Doutor Estranho surgiu, na década de 70, o mundo experimentava um período único em sua história. Fora o momento político e econômico bastante conturbado, a década marcou o surgimento e acensão de inúmeros artistas na música, nas artes plásticas e no cinema, e estimulou a busca por liberdade e desmistificação de tabus. Não é uma surpresa, portanto, que a história criada por Stan Lee e Steve Dikto brinque com tantas referências da época e experimente conceitos até então inexplorados dentro do Universo Marvel.

Aviso: este texto contém spoilers!

Da sua própria forma, Doutor Estranho chega aos cinemas com a missão de não só introduzir um novo personagem, mas todo um universo com infinitas possibilidades que piscam em luzes neon e dançam ao som de Pink Floyd. Em sua empreitada, no entanto, o filme dirigido por Scott Derrickson comete mais erros do que seria confortável admitir e mostra, mais uma vez, que a fórmula Marvel de se fazer cinema começa a apresentar claros sinais de desgaste.

Como em qualquer história de origem, o filme começa ao apresentar seu personagem principal, Dr. Stephen Strange, vivido por Benedict Cumberbatch, um homem rico, famoso e extremamente egocêntrico que perde tudo que tem após um acidente de carro. Desiludido pela medicina, Strange parte para Kamar-Taj, onde inicia sua jornada – primeiro, em busca de uma cura; depois para se tornar o herói que verdadeiramente é.

Muito se falou sobre a semelhança do personagem com Tony Stark (Robert Downey Jr.), outro herói conhecido pela fama, dinheiro e egocentrismo sem limites. O filme, no entanto, é bem-sucedido ao mostrar que, embora existam semelhanças, suas diferenças são bastante significativas. Robert Downey Jr. é um inegável showman e empresta esse seu lado à Tony Stark. Num extremo oposto, Benedict Cumberbatch mostra que é possível chamar a atenção para si sem apostar em grandes firulas, mas em sua inteligência e conhecimento. Ambos mostram dois lados de uma mesma moeda e se Tony Stark é o herói favorito das crianças, que conquista corações facilmente por onde passa com sua armadura vermelha e dourada, Stephen Strange é uma figura mais palpável e real, que parece muito mais cabível no mundo em que vivemos.

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É curioso pensar, então, que Strange esteja associado justamente a um universo que, de todas as loucuras apresentadas dentro do universo expandido da Marvel, parece tão pouco possível. E esse contraponto, talvez, seja um dos pontos altos do filme, que leva o espectador numa jornada onde acreditar é fundamental. Se ao chegar em Kamar-Taj, Dr. Strange precisa abandonar tudo que conhece para abraçar um mundo onde noções de tempo e espaço são relativas, e o impossível esbarra em sua própria definição, quem assiste do outro lado é igualmente encorajado a abraçar esse universo, que cresce e subverte a realidade aos nossos olhos.

O visual do filme, em conjunto com a sonoplastia impecável, constrói um cenário único que, embora remeta a filmes como A Origem, eleva seu potencial ao nível máximo. Aliado ao 3D, a sensação de instabilidade é uma presença constante, que brinca com nossa percepção e questiona cada certeza sobre a vida, o tempo e o espaço, construindo um universo diegético belíssimo onde a alucinação exerce papel fundamental.

Talvez por isso seja tão decepcionante pensar que, numa realidade cheia de possibilidades, a narrativa se perca em sua própria fórmula do sucesso. Vendido como um filme diferente dos demais, Doutor Estranho esbarra na necessidade constante – e, por vezes, desnecessária – de explicar conceitos que ficam claros na tela – algo que vai de encontro à própria noção de cinema como forma de contar histórias a partir da união de imagem e som. Embora muito disso se deva ao fato de que o contato do público médio dessas produções com seus heróis seja exclusivamente pelo cinema, o didatismo exagerado faz com que o filme perca muito da sua complexidade e, numa trama onde o mistério parece fundamental, receber respostas mastigadas faz com que tudo pareça fácil demais.

Num esforço para construir metáforas complexas sobre o tempo e a falta de controle do ser-humano, somos bombardeados com imagens do relógio quebrado de Stephen e de suas mãos, que já não são mais confiáveis e não oferecem a segurança de outrora, que se repetem exaustivamente até perderem significado. De repente, o que poderia ser uma história sobre vulnerabilidade humana e a efemeridade da vida, tão inerente à própria existência, se torna um entretenimento vazio que não faz nada além de divertir e ser esquecido no momento seguinte.

Nesse sentido, entretanto, um ponto bastante positivo é perceber que, embora seja um herói com muito potencial, Strange ainda está em formação e comete uma porção de erros que podem ou não trazer consequências graves para sua jornada. As lutas, ainda que muito bem coreografadas, contam com uma dose bem-vinda de improviso que, por mais calculado que seja, mostra que Strange ainda tem muito o que aprender não apenas sobre si mesmo, mas principalmente sobre o universo em que vive. O auxílio de novos elementos também tornam o embate muito mais interessante, além de servirem como um alívio cômico muito mais genuíno do que os próprios personagens. Se numa trama que se diz sombria, o humor parece por vezes deslocado, são esses novos elementos os responsáveis por mostrar que, embora perca a mão em muitos momentos, ainda é possível rir com filmes de super-heróis.

No entanto, essa mesma dose de humor se mostra, mais uma vez, o tiro que pode acabar saindo pela culatra. Ao trazer um assunto que estimula tantas discussões como a morte, o tempo e a falta de controle do ser-humano perante a vida, o filme cai em uma abordagem rasa que nunca é capaz de dar a real dimensão do que está sendo discutido. Todos os personagens, ao seu próprio modo, possuem fantasmas que se alimentam da própria vulnerabilidade do ser-humano diante da morte e são esses mesmos fantasmas que os motivam a tomar as decisões que movem o enredo para o bem e para o mal.

Da mesma forma, o hospital, sendo um ambiente onde a vida surge e se esvai, se torna um cenário fundamental dentro dessa proposta, mas que pouco significa quando o filme desiste de uma abordagem realista para dar lugar ao humor tão característico e, consequentemente, tropeça na própria fórmula de sucesso. Se Doutor Estranho é o herói que os anos 70 construíram, em 2016 ele é o herói que a Marvel de uma sociedade conservadora e apavorada com a possibilidade de mudanças insiste em destruir – e aí é irônico pensar que o mesmo filme que vende a desconstrução de seu próprio universo é o mesmo que esbarra nas limitações impostas dentro do gênero.

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O humor também é a sina dos vilões, que perdem muito de sua força ao receberem uma representação simplista e pouco inspirada. Kaecilius (Mads Mikkelsen) é o vilão perfeito até que se prove o contrário, mas muito de sua força se perde ao se tornar vítima do cômico – um problema que não é exatamente surpreendente, mas que continua a mostrar sua cara de forma exaustiva produção após produção. Embora as motivações do personagem também tenham relação direta com a vulnerabilidade humana e a dor da perda, sua história é, como quase tudo aqui, trabalhada de forma rasa e descompromissada, que nunca chega a alcançar a complexidade de um personagem que poderia vir carregado de nuances. Já sobre Dormammu, muito pouco pode ser dito. O vilão aparece muito mais como um ser onisciente e passivo, do que como uma ameaça que deve verdadeiramente ser combatida – o que pode decepcionar muitos fãs dos quadrinhos, acostumados com os embates históricos entre Stephen Strange e Dormammu.

Ainda que não possua uma relação direta com outras histórias do universo da Marvel nos cinemas, sendo uma história até então deslocada em sua própria realidade, o filme não abandona completamente os eventos ocorridos dentro do universo expandido, mas faz relações que muitas vezes parecem forçadas e fora de lugar. É o caso, por exemplo, da menção às Jóias do Infinito, que é jogada de forma descuidada para o público e que não faz a menor diferença dentro de seu próprio contexto. O mesmo pode ser dito sobre as cenas pós-créditos que, embora deixem ganchos, não chegam a empolgar o suficiente para valer a espera.

Sobre a representação feminina, não é preciso ir muito longe para perceber que Doutor Estranho é um filme predominantemente masculino. Se no material de divulgação a presença de mulheres já não era mostrada com grande força, o longa só deixa claro que não houve nenhuma real preocupação para além da representação rasa e tão comum nesse tipo de produção.

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A figura da Anciã, vivida aqui por Tilda Swinton, embora seja uma presença mínima em comparação ao número de homens presentes no elenco, parece uma representação à altura das mulheres que consomem esse tipo de produção – até, claro, percebermos que sua personagem é apenas mais um sintoma de uma sociedade que acredita que mulheres chutando bundas é suficiente para promover representatividade e empoderamento. Vivida por um homem nos quadrinhos, a troca de gênero é acertada apenas até certo ponto, quando fica claro que só conheceremos a personagem o suficiente para que Stephen tenha sua dose de motivação e siga sua jornada – primeiro, ao lado da Anciã; depois, por sua própria conta. A personagem entra no limbo de mulheres que cumprem perfeitamente o papel de mentoras até não serem mais necessárias, quando sua própria existência é utilizada para realizar movimentações no roteiro que dão motivação para que o personagem principal siga sua jornada, numa saída clichê e pouco inspirada, mas ainda bastante comum.

Além disso, o fato de termos uma mulher branca vivendo um papel que deveria ter origem oriental é um exemplo clássico de white washing, um problema tão grande quanto a própria representação feminina. Numa indústria que trata suas mulheres de forma tão pouco gentil e que nos força cada vez mais histórias sobre pessoas brancas goela abaixo, um white washing tão descarado é a prova de que ainda caminhamos a passos lentos rumo a um cinema que seja genuinamente diverso.

Numa contexto diferente, mas ainda bastante problemático, Christine Palmer (Rachel McAdams) surge como o clássico interesse amoroso do personagem principal que é deixada de lado tão logo o macho alfa enfrenta provações para dar as caras novamente na história quando sua presença se faz necessária. Não há nenhum esforço para que ela cresça de algum modo, ficando sempre à sombra de Strange. Com Claire Temple (Rosario Dawson) ganhando cada vez mais espaço nas séries da parceria entre Marvel e Netflix, no entanto, fica a esperança de que, em algum momento, Palmer também assuma um papel digno da mulher que verdadeiramente é.

Entre uma história de origem clichê e erros que poderiam ser facilmente evitados, a impressão que fica é a de que Doutor Estranho, embora bem-sucedido enquanto entretenimento, poderia ser um filme muito maior do que verdadeiramente é, mas que, no final das contas, se torna apenas mais um produto da Marvel Studios que esbarra em sua própria fórmula de sucesso enquanto tenta a todo custo desconstruir a si mesmo – dessa vez, vendido em uma embalagem psicodélica que pisca, incansavelmente, em luzes neon.

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2 comentários

  1. Eu adorei esse filme. Achei muito interessante como o personagem é abordado. Eu adoro o Benedict Cumberbatch. Ele sempre nos fascina nos seus papeis como em Doutor Estranho e Sherlock e neste não parece ser diferente. Achei muito inusitado utilizarem um assunto tão atual para fazerem uma produção. Creio que é uma grande produção, sendo um dos melhores filmes, além de ser bem revelador e intrigante devido sua história, parece não ser mais um filme enfadonho de política, mas que pelo contrário, tem um ritmo legal e bem conduzido, sem ser tão previsível quanto os demais da categoria. Recomendo a todos.

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