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Depois da Queda: as muitas mentiras que os homens contam

A citação que antecede a sinopse contida na quarta capa de Depois da Queda destaca uma frase dita pela protagonista após atirar em seu marido, com quem, até aquele momento, vivera uma vida aparentemente perfeita. “Eu te amei, eu te odiei, mas nunca soube quem você era”, ela diz, enquanto o observa afundar na água gelada, seu sangue rodopiando em direção à superfície. Na ausência do contexto original, a frase é uma referência à verdadeira natureza de seu casamento, e às muitas mentiras e segredos que a levaram ao limite. Mas o que seria tão grave ao ponto de fazê-la puxar o gatilho?

Essa é a pergunta que norteia mais da metade das quase 400 páginas que compõe o mais novo romance policial de Dennis Lehane, nome por trás de títulos consagrados como Ilha do Medo (inicialmente publicado como Paciente 67 no Brasil) e Sobre Meninos e Lobos. Em 2018, o autor retorna com uma história repleta de mistérios e suspense, em conformidade com o estilo que lhe fez famoso, e coloca uma mulher no protagonismo da trama: Rachel Child, uma jornalista cuja carreira desmorona após ter um colapso ao vivo, em rede nacional. Dividido em três partes (“Rachel no Espelho”, “Brian” e “Rachel no Mundo”, cada um dedicado a um período de sua vida), o romance acompanha a história de Rachel desde a infância, quando foi abandonada pelo pai, sendo criada sozinha por sua mãe, Elizabeth Child, uma mulher brilhante, mas igualmente complicada, com quem constrói uma dinâmica bastante problemática; ao relacionamento com o milionário Brian Delacroix, a quem acredita conhecer profundamente até que o contrário se prove uma verdade incontestável.

Atenção: este texto contém spoilers!

Rachel no Espelho: os muitos traumas de uma mulher

“Aquela mãe, brilhante na análise dos problemas alheios, jamais fora capaz de diagnosticar a si mesma. Assim, passou a vida inteira buscando soluções para problemas que nasciam, cresciam, viviam e morriam em sua própria medula. Rachel não sabia disso aos sete anos, claro, nem aos dezessete. Só sabia que a mãe era infeliz, o que fazia dela uma filha infeliz.”

Nascida no oeste do estado de Massachusetts, em uma região cercada por universidades, cafés e áreas verdes, Rachel Child nunca teve uma vida fácil. Após a partida do pai, pouco antes de completar três anos, a convivência com a mãe tornou-se mais difícil, principalmente porque Elizabeth, amargurada e infeliz, se recusava a dar informações sobre o ex-companheiro ou revelar sua identidade para a filha, que tinha apenas uma vaga lembrança como referência. Durante parte da infância e quase toda a adolescência, mãe e filha bateriam de frente com frequência, e suas diferenças logo se tornariam maiores, afastando-as em igual proporção, ainda que continuassem vivendo sob o mesmo teto e dividindo a mesma rotina. “Por que você quer saber? Por que acha que precisa conhecer um estranho que nunca fez parte da sua vida nem respondeu pela sua segurança financeira?”, perguntava a mãe, e Rachel, inconformada, não sabia o que fazer além de gritar e quebrar objetos pela casa.

Somente anos mais tarde, durante seu primeiro ano de faculdade, e em sequência à trágica morte da mãe em um acidente de carro, é que Rachel tem a chance de procurar pelo pai, numa tentativa desesperada de preencher a lacuna de uma vida inteira — e ela o encontra, mas não sem sofrer com uma nova reviravolta do destino. Ao contrário do que imaginava, Jeremy James não era, de fato, seu verdadeiro pai, mas um homem com quem sua mãe se envolvera mais ou menos à mesma época em que engravidara e que decidiu assumir a criança de qualquer forma. Entretanto, quando Elizabeth o colocou para fora de casa, não havia nada que ele pudesse fazer senão atender ao seu pedido e ir embora, deixando para trás a mulher e a filha que uma vez considerara como sua. A descoberta não torna as coisas mais fáceis para a própria Rachel, no entanto, que mesmo antes de encontrá-lo, passa a ter ataques de pânico motivados tanto pela morte da mãe quanto pela ausência do pai.

Mas a ausência de um vínculo sanguíneo não impede que Rachel e Jeremy tornem-se bastante próximos. Mesmo com uma nova família e outros filhos — dessa vez, efetivamente seus — para criar, Jeremy acolhe Rachel como uma das suas, sem ressalvas, auxiliando-a, inclusive, na busca pelo pai biológico. A partir de antigas fotos de Elizabeth, além de seus diários, os dois tentam encontrar pistas que possam esclarecer o mistério da paternidade de Rachel, concluindo um capítulo importante de sua vida. Mas essa é apenas uma das razões que os mantêm juntos, e durante o período em que estão mais próximos, Rachel passa a ter aquilo que nunca tivera antes: uma família. Apesar do pouco contato com outros membros da família de Jeremy, principalmente com seus dois filhos, ela encontra, pela primeira vez, um lugar para si mesma e é evidente que mesmo a busca passa a existir em segundo plano quando seu desejo por pertencimento é finalmente suprido. Nem todos enxergam a relação com bons olhos — Sebastian, então namorado de Rachel, se incomoda profundamente com o fato de ela ser tão próxima de um homem tão mais velho e com quem não divide nenhum grau de parentesco, enquanto a esposa de Jeremy, Maureen, junto com seus dois filhos, não parece particularmente empolgada com a presença constante de Rachel dentro de sua casa ou sua interferência na antiga rotina da família —, mas tanto Rachel quanto Jeremy não parecem realmente interessados em abrir mão da convivência e parceria após tantos anos afastados um do outro.

Os encontros tornar-se-iam mais esporádicos após o casamento de Rachel, no entanto: depois de retornar da lua de mel, ela descobre que Maureen não vinha passando muito bem, o que faz com que Jeremy precise ficar mais tempo em casa, ao lado da esposa. Pouco tempo depois, ele sofre um primeiro derrame em casa e um segundo na emergência do hospital, que o deixam inconsciente e transformam Rachel em uma completa estranha. Assim, mesmo que continuasse a ser bem recebida pela família do amigo e pouco a pouco começasse a ser novamente reconhecida por ele, ela não deixaria de se sentir um incômodo e, sem o antigo ponto de ancoragem dentro do seio familiar, se afasta cada vez mais de sua convivência.

“Saindo da casa dele, caminhou pela passarela de pedras até o carro, e sentiu uma dor renovada por perdê-lo. E também a velha suspeita de que a vida, pela experiência que tivera até ali, era uma sequência de desencontros. Eram muitos os personagens que surgiam no palco, alguns permaneciam por mais tempo que outros, mas no fim todos saíam de cena.”

Em paralelo, sua carreira profissional era a única parcela de sua vida que continuava se desenvolvendo de maneira positiva e, mais ou menos à mesma época, ela seria enviada para cobrir um terremoto no Haiti — uma oportunidade única, todos acreditavam, e que Rachel tampouco pretendia desperdiçar. Mas naquele ambiente hostil, ela logo percebe que não conseguiria se manter alheia aos horrores que aconteciam ao alcance de seus olhos. Embora a orientação fosse não intervir na vida daquelas pessoas, era humanamente impossível ignorar a fome, as doenças, a falta de recursos, e os saques, assassinatos e estupros que aconteciam à luz do dia. Quando diz à cinegrafista que a acompanhava que aquilo era um verdadeiro inferno, a colega rebate dizendo que não era, porque “no inferno existe alguém que dá ordens”, ao passo que ali não havia ninguém que o fizesse, e ela não estava errada.

A experiência que transformaria a vida de Rachel para sempre, no entanto, aconteceria algum tempo depois, em um acampamento para desabrigados. Depois de auxiliar no transporte de refugiados em péssimas condições de saúde, ela e Greta, a cinegrafista, retornariam ao acampamento, onde se deparariam com quatro meninas muito jovens, recém-chegadas ao lugar. Mas o acampamento era uma ameaça à integridade física dessas meninas, que corriam sérios riscos, sobretudo quando os homens de uma gangue que ali residiam marcaram-nas como presas e não descansariam enquanto suas péssimas intenções não fossem concretizadas. Assim, durante toda a noite, Rachel e Greta, além de uma ex-freira local e um antigo estudante de enfermagem, transferiram as meninas de hora em hora para diferentes esconderijos, na tentativa de despistar os homens da gangue, que reviravam o acampamento em busca de cada uma delas. Por fim, duas delas foram salvas por um caminhão da ONU, mas outras duas foram perdidas no processo e nunca mais encontradas — e Rachel, responsável por uma das meninas desaparecidas, jamais deixaria de culpar a si mesma pelo ocorrido.

“Foi impressionante como sumiram por completo. Não só seus corpos e as roupas que usavam, mas qualquer vestígio de sua existência. Uma hora depois que o sol nasceu, suas duas companheiras já emudeciam quando perguntavam por elas. Dali a três horas, ninguém mais no acampamento, além de Rachel, Greta, da ex-freira Véronique e de Ronald Revolus, admitia ter visto alguma das duas. Ao anoitecer do segundo dia, Véronique tinha mudado sua história, e Ronald começou a pôr sua memória em dúvida.”

Mas ninguém estava interessado em ouvir histórias sobre o assassinato de meninas negras e pobres, não tanto quanto Rachel estava interessada em denunciá-las, e a frustração e o desespero a colocam em uma posição, no mínimo, delicada. De volta a Porto Príncipe, a jornalista ouve de seu editor que suas matérias estavam“estridentes demais, monótonas demais, assumindo um tom lamentável de desespero”, e que as pessoas — aquelas que assistiam aos horrores diretamente do conforto de suas casas — precisavam de esperança. Nesse momento, Rachel o lembra que os haitianos precisavam de água, algo muito mais básico e urgente, mas nada disso faz com que ela consiga mais tempo no país, e seu retorno, mais do que uma decepção para ela própria, é também o marco de seu declínio profissional — cuja pedra é colocada de uma vez por todas quando retorna para o Haiti e tem uma (bastante compreensível) crise de ansiedade enquanto ainda estava no ar, sendo demitida logo depois.

Brian: um local imaginário chamado lar

“A felicidade, dizia ela, era uma ampulheta com o vidro rachado.”

No meio tempo, os caminhos de Rachel e Brian se cruzariam algumas vezes até que, enfim, se envolvessem romanticamente. Os dois se conhecem logo após a morte de Elizabeth, quando sua filha e única herdeira decidira contratar um investigador profissional para encontrar seu suposto pai, Jeremy James. À época, Brian trabalhava no ramo e foi o primeiro — e único — a lhe dizer que ela não possuía pistas suficientes para encontrá-lo e que qualquer um que aceitasse o caso estaria lhe dando um golpe. Os dois se encontrariam novamente algum tempo depois, quando Brian já não trabalhava mais como investigador, tendo assumido o milionário negócio de sua família. Mas mesmo antes ele continuaria a lhe mandar e-mails, quase sempre relacionados ao seu trabalho como jornalista. “Adoro a maneira como você escreve”, ele diria certa vez, ou então falaria sobre seu trabalho no Haiti, como ela havia sido excepcional durante toda a cobertura e como era injusto que fosse demitida por ter sido tão humana.

Mais tarde, eles voltariam a se encontrar em Boston e, dessa vez, não voltariam a se separar. Não leva muito tempo para que eles decidam morar juntos e, posteriormente, se casar; união que é oficializada em uma pequena cerimônia apenas para os amigos mais próximos e íntimos do casal. Mas a segurança do relacionamento não faz com que os fantasmas do passado desapareçam da vida de Rachel, muito pelo contrário. Ainda que Brian seja uma fonte constante de carinho, suporte e incentivo, ela continua a sofrer com as crises de ansiedade e com o medo de sair de casa — o que eventualmente a leva a passar 18 meses trancada em seu apartamento. Ao mesmo tempo, Brian parece confortável em ter uma esposa tão vulnerável e dependente, e que dificilmente tomaria decisões drásticas sem o seu conhecimento. Se ele continua a incentivá-la a sair de casa, a impressão que dá é a de que isso só acontece porque esses momentos só acontecem em sua companhia, e a cada nova viagem de trabalho, ela continua sozinha em seu apartamento, ou cercada pelas mesmas pessoas que ele conhece e confia — e somente mais tarde, quando as coisas começam a dar errado, é que descobrimos que essa não é exatamente a realidade, mas apenas uma variável dela.

“Os homens são as histórias que contam sobre si mesmos, quase sempre mentirosas. Nunca examine nenhuma delas em detalhe. Se você denunciar que são falsas, isso só irá resultar em humilhação para vocês dois. Melhor aceitar conviver com a falsidade.”

Em tempo, a desconfiança também chega para Rachel e, uma vez plantada em sua mente, a dúvida a leva por uma investigação cujas descobertas são impossíveis de ser ignoradas. Ao longo de sua segunda — e mais longa — parte, Depois da Queda constrói uma teia de informações conflitantes e mistérios que são empilhados de maneira um tanto decepcionante. Mesmo as poucas respostas fornecidas então não parecem mais do que mero absurdo, tão incoerentes que cada nova revelação nunca tem o efeito esperado. Nem mesmo o assassinato de Brian, que permanece em suspenso desde o prólogo, não é tão interessante quanto a expectativa nos faz acreditar que seja, e termina por ser apenas um ponto de virada mediano com consequências tão fantasiosas quanto seu desenvolvimento.

Mas esse é apenas o começo.

Rachel no Mundo: é preciso contemplar os mortos

“Rachel sentiu o pênis de Ned endurecer contra a parte de trás de seu quadril estreito. Tinha ficado de pau duro, aquele pai de uma filha, aquele irmão de várias irmãs. Os monstros, sua mãe tinha avisado e ela própria havia aprendido ao longo da vida, não se apresentam como monstros; apresentam-se como seres humanos. E, o que é ainda mais estranho, raramente sabem que são monstros.”

Se a segunda parte do romance destaca-se, principalmente, por suas reviravoltas absurdas, elas continuam a acontecer com ainda maior intensidade em sua terceira e última parte. Aqui, os capítulos desenvolvem-se com mais agilidade e o ritmo intenso conduz a narrativa ao seu desfecho. Nada disso, porém, impede que a trama se perca em sua própria teia, e o cuidado presente, sobretudo, em sua primeira metade, se perde em meio a tantas intrigas, tantas mentiras e tanta, tanta confusão. Uma vez que o crime cometido por Rachel deixa de existir como norte, a história de Depois da Queda perde-se em si mesma, recorrendo com alguma frequência à justificativas tão medíocres quanto incoerentes. Mesmo os traumas da protagonista, desenhados com tanta minúcia nos primeiros capítulos, são deixados de lado em prol da ação — que, no entanto, jamais parece equivalente em qualidade do ponto de vista narrativo.

Ao longo de pouco mais de 120 páginas, muitas informações são desvendadas e novas ameaças são identificadas. O suposto assassinato de Brian desencadeia um sem fim de novos conflitos, além da introdução de novos personagens, como os assassinos de aluguel Ned e Lars, e uma nova variável: a polícia. Assim, a vida antes tão ordeira de Rachel é definitivamente deixada para trás e uma nova faceta da personagem ganha espaço: aquela mascarada em sua confortável e muito privilegiada rotina; aquela que precisa lutar tanto pela própria sobrevivência quanto por liberdade. De fato, muitos dos momentos mais ferozes de Rachel acontecem durante a sua fuga, mas é também verdade que suas habilidades não a fazem, necessariamente, mais complexa. Dennis Lehane cai em uma abordagem simplista da figura feminina, preferindo abandonar temas mais espinhosos, como a culpa e o medo, para dar lugar a uma mulher fisicamente habilidosa.

“Sempre que for possível, pensou em dizer a Brian em voz alta (mas não disse), você precisa contemplar a realidade dos seus mortos. Precisa entrar no campo de energia que ainda restar do espírito, da alma ou da essência deles, e deixar que ela atravesse seu corpo. E pode ser que, de passagem, algum sopro consiga grudar em você, enxertar-se em suas células e, nessa comunhão, os mortos continuem a viver. Ou pelo menos tentem.”

Embora muitas sejam as surpresas mantidas até o último instante, poucos são os momentos verdadeiramente inspirados do livro — sendo um dos poucos a morte da única personagem feminina envolvida no caso além de Rachel que é mantida viva até o final, justamente quando ambas tornam-se mais próximas.

Porque o amor é uma questão central na narrativa, quase sempre visto por um viés pouco positivo, Depois da Queda desenvolve relacionamentos sustentados por bases inconsistentes, que ruem com alguma facilidade, mas que, de maneira paradoxal, são reconstruídos de maneira tão fácil quanto. A própria Rachel, em toda a sua roupagem intimidadora, não deixa escapar que, no fundo, as muitas mentiras contadas por Brian durante todo o tempo em que estiveram juntos não interferem no modo como se sente em relação a ele, quase como se o amor fosse suficiente em si mesmo. Dennis Lehane conclui a narrativa de maneira incerta e menos literal, e é difícil saber o que reserva o futuro de Rachel. O reconhecimento de seu caráter transitório, no entanto, evidencia uma independência inédita e faz com que ela pareça verdadeiramente mais segura de si — resta saber até que ponto a segurança lhe confinará novamente em uma sucessão de traumas e mentiras rotineiras ou a libertará de uma vida compactada em confortos triviais.

“Não sei como isso acaba, ela disse para a escuridão. Não conheço o meu verdadeiro lugar nisso tudo.
Ainda assim, a única resposta da escuridão foi ficar ainda mais intensa, à medida que subia as escadas.
Mas podia haver alguma luz no andar de cima, e certamente havia luz quando ela retornasse ao lado de fora. 
E se, por alguma trapaça do destino não houvesse, e tudo que restasse do mundo fosse a noite, sem escapatória?
Então ela travaria amizade com a noite.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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