Quem foi criança no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 provavelmente se lembra das aventuras de She-Ra, alter ego da princesa Adora, irmã gêmea de Adam, o He-Man. Na animação original, o objetivo de She-Ra e da Grande Rebelião é proteger o Reino de Etéria do exército de Hordak enquanto usa de sua força física, agilidade, resistência e habilidades estratégicas para traçar planos que impeçam os avanços de seus inimigos. Além de possuir a capacidade de se comunicar telepaticamente com animais e curar os feridos apenas impondo suas mãos, She-Ra era um exemplo de liderança para as meninas da época. De sua primeira aparição até hoje passaram-se 35 anos e muita coisa mudou, mas o que será que a nova She-Ra tem em comum — e de diferente — com sua antiga contraparte?
She-Ra e As Princesas do Poder é a aposta da Netflix para recontar a história de Adora, personagem que ressurge com um traço mais jovial, fazendo justiça a sua adolescência, além de contar com uma trama ágil e diálogos divertidos. Escrita e produzida por Noelle Stevenson, responsável por títulos como Nimona e As Lumberjanes, She-Ra e As Princesas do Poder nasceu de uma parceria entre a Netflix e a Dreamworks e surge com uma roupagem inteiramente nova, bebendo na fonte clássica apenas em momentos chave da narrativa. Desenvolvida para o público infantojuvenil, She-Ra e As Princesas do Poder não lembra em nada sua antiga protagonista sexy e de cabelos esvoaçantes — agora Adora (Aimee Carrero) é uma adolescente inteligente, divertida e corajosa que não tem o corpo curvilíneo de outrora e, justamente por isso, condiz muito mais com sua faixa etária e o público alvo da produção.
E esse é, exatamente, um ponto que tem causado revolta: a falta de sexy appeal por parte de Adora. Mas não é seu público alvo, crianças e adolescentes, que têm reclamado dos traços da nova animação, mas sim homens com mais de 30 anos de idade, que cresceram assistindo a animação clássica e pensam que tudo tem que ser sobre eles e suas memórias nem tão infantis assim. De acordo com levantamento do IMDb, mulheres entre 19 e 29 anos deram notas que deixam She-Ra e As Princesas do Poder com média 8.6 em uma escala de 1 a 10, enquanto homens na faixa de 30 e 44 anos fizeram a nota da animação ficar em 5.4. Entre as reclamações dos homens que criticaram o projeto estão o fato de She-Ra não usar mais a armadura antiga — que a sexualizava — e a inclusão de uma “agenda” por parte de Noelle e seu time de roteiristas, que são todas mulheres. Os “críticos” reclamam do fato de que She-Ra é uma animação para “garotinhas” e que a representatividade corrompeu as personagens, o que pode ser entendido como se eles estivessem dizendo, basicamente, “não podemos mais sexualizar uma personagem de um programa infantil — e odiamos isso”.
O fato é que a nova She-Ra tem, sim, uma agenda, e isso se deve à Noelle Stevenson e seu time de roteiristas. Ao reimaginar She-Ra, a produtora trouxe a personagem para os tempos atuais onde meninas querem muito mais de uma animação do que breves momentos de diversão. She-Ra e As Princesas do Poder é capaz de traçar uma história sobre amizade e coragem enquanto nos brinda com personagens diversos e singulares que possuem motivações verossímeis, narrativas próprias e muita independência. O trio que toma conta da maior parte dos episódios é composto por Adora, uma jovem leal e corajosa, Cintilante (Karen Fukuhara), uma princesa inteligente e determinada, e Arqueiro (Marcus Scribner), um adolescente gentil e adorável. E mesmo a antagonista dessa história, Felina (AJ Michalka), é escrita de uma maneira que se torna impossível não gostar dela, de seu humor ácido e língua afiada. O humor, inclusive, é marca de She-Ra e As Princesas do Poder, algo impossível de desassociar dos outros trabalhos de Noelle Stevenson: se na She-Ra original o tom era sempre solene — como esquecer as lições de moral ao final de cada episódio? —, agora nós podemos rir com os personagens e seus momentos de descontração em uma linguagem muito próxima daquilo que vemos na internet todos os dias. O roteiro leve é um dos pontos positivos da nova produção e, ainda que a primeira temporada tenha seus momentos dramáticos, toda a trama é pontuada por situações leves e divertidas.
Com treze episódios que duram em torno de 25 minutos, a primeira temporada de She-Ra e As Princesas do Poder é responsável por nos apresentar a história de Adora, adotada por Sombria (Lorraine Toussaint) e criada desde bebê para ser soldado no exército de Hordak (Keston John). Adora e Felina são inseparáveis desde que se lembram, e a vida na Horda é tudo o que conhecem. Esse cenário começa a mudar quando Adora descobre que a história que Sombria tem contado a ela sobre a guerra entre Horda e o Reino de Etéria não era toda a verdade, o que faz com que a jovem deserte do exército e passe a integrar a Grande Rebelião. Toda a reviravolta na narrativa acontece quando Adora, explorando um local proibido, descobre a Espada do Poder e desperta como She-Ra, a princesa guerreira capaz de salvar o Reino de Etéria das mãos de Hordak. Quando descobre que Sombria a manipulou durante toda a vida, Adora decide reunir forças com Cintilante e Arqueiro, saindo em busca de outras princesas para reativar a Aliança da Princesa, um grupo de guerreiras nobres que tem por objetivo derrubar o exército de Hordak.
Esse é o fio condutor da série e ao longo dos treze episódios acompanhamos Adora e seus amigos recrutando princesas, se metendo em encrencas, sendo fofos uns com os outros e cultivando amizades enquanto protegem Etéria de Sombria e Hordak. Se fosse apenas isso a animação já seria cativante o suficiente, mas Noelle Stevenson e sua equipe de roteiristas são capazes de ir além: há humanidade e profundidade em cada um dos personagens de She-Ra e As Princesas do Poder, seja um mocinho ou vilão, e isso faz toda a diferença no momento de criar uma conexão com seu público. Sim, Adora é uma adolescente corajosa e inteligente, mas também sente medo e tem dúvidas, sente saudades de Felina, mas ao mesmo tempo entende que precisa combatê-la. Ela é uma protagonista crível que mete os pés pelas mãos algumas vezes, comete erros, mas tenta consertá-los — e tudo isso enquanto aprende a dominar os poderes de Grayskull e tenta entender o que significa ser Adora além de She-Ra. Mesmo os coadjuvantes recebem enredos que os fazem ganhar mais dimensão aos olhos do público, como é o caso de Cintilante e das princesas recrutadas pela Aliança, Serena (Vella Lovell), Perfuma (Genesis Rodriguez) e Entrapta (Christine Woods), só para citar algumas. Cada uma delas tem uma personalidade, um biotipo e uma trajetória de vida — algo bem diferente do que acontece na série clássica.
Outro ponto importante e que faz de She-Ra e As Princesas do Poder uma animação tão especial é a representatividade e inclusão presentes em sua trama. As personagens de She-Ra são diversas em cores e biotipo, e nem todos os guerreiros e princesas são amazonas curvilíneas e musculosas como na série clássica. As feições de seus rostos são inúmeras, assim como as cores de suas peles, cabelos e olhos — os personagens diferem entre si de acordo com o reino da qual fazem parte, e a representatividade está presente em todos os campos. O mesmo pode ser dito a respeito da sexualidade dos personagens, visto que alguns deles se sentem atraídos romanticamente por ambos os sexos — e tudo bem. Nada disso é feito de maneira a cumprir um requisito, muito pelo contrário — a sexualidade dos personagens, assim como seus tipos físicos, acontecem de maneira simples e tranquila, características que fazem parte da vida como ela é. Eles simplesmente existem, e isso é o suficiente. Em artigo publicado na Vox, Alex Abad-Santos também chama a atenção para outro detalhe da animação que pode ter deixado o público trans representado: Arqueiro, um personagem não-branco, usa o que se parece com uma cinta de ginecomastia em um dos episódios, algo que uma pessoa trans ou de não-conformidade de gênero poderia usar. Se a produção de She-Ra confirmar a transexualidade de Arqueiro, essa será a primeira vez que um personagem como ele aparece em uma animação para crianças.
Ao lado de Steven Universe, criado por Rebecca Sugar, a nova She-Ra tem se mostrado um lugar seguro e inclusivo para crianças de todas as idades. Cresci assistindo a She-Ra clássica e é inegável a qualidade superior da nova animação em todos os quesitos, de enredo a traço do desenho, de personagens a diálogos e roteiro. She-Ra e As Princesas do Poder nos brinda com princesas que governam, são diplomatas e guerreiras, que se libertam sozinhas por meio de suas forças, físicas ou mágicas, e que estão em total controle da situação — ainda que fiquem com medo vez ou outra, afinal são jovens e tão humanas quanto possível. O roteiro não se prende a estereótipos de gênero e vemos relacionamentos diversos entre os personagens, a começar por Adora e Felina, que passam de melhores amigas para sempre a nêmesis quando a protagonista se junta à Grande Rebelião e deixa a amiga na Horda. Em um jogo de gato e rato em que as tensões mudam de uma hora para outra evocando, inclusive, uma tensão romântica, o relacionamento entre elas é repleto das melhores nuances possíveis, mostrando uma história complexa que vai além do que podemos ver em um primeiro momento.
E todo o brilhantismo de She-Ra reside na qualidade de seu roteiro que explora as tramas de praticamente todos os personagens com cuidado e atenção. Não ficamos a par apenas da história de Adora, mas também vemos os conflitos de Cintilante e sua mãe, Ângela (Reshma Shetty), a Rainha de Lua Clara; o passado de Felina; as motivações de cada princesa para ingressar, ou não, na Aliança da Princesa. She-Ra e As Princesas do Poder consegue reunir em uma mesma produção lutas de espadas, poderes mágicos e um universo com mitologia única ao mesmo tempo em que desenvolve os relacionamentos de seus personagens de maneira realista — algo pouco comum para uma animação voltada ao público infantojuvenil. A série é honesta ao falar de sentimentos e não subestima seu público, colocando questões difíceis no debate sem fugir ou sair pela tangente. She-Ra é uma animação encantadora que consegue se sair bem em todos os sentidos: tem uma narrativa que contagia, personagens cativantes, visuais belos e coloridos, além de um roteiro afiado e emocionante. Os episódios são divertidos e leves na mesma medida em que podem ser intensos, e a promessa de diversão é cumprida, seja você uma criança de oito ou oitenta anos. Ser princesa, afinal, nunca foi tão contagioso.
Estou amando essa nova She Ra, como os personagens se relacionam entre si, como.o Arqueiro é um homem bacana, que não tem problemas em elogiar e admirar seja outros homens ou mulheres.
Eu que vi a primeira versão e aquela She Ra foi minha heroína, a que eu imitava, imagino o que essa She Ra não teria feito por mim.