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This Is Us: amor como legado

Um dos grandes fios condutores de This Is Us, drama familiar que conquistou público, crítica e o próprio meio artístico, desbancando até mesmo a onipresente The Handmaid’s Tale na última premiação do Sindicato dos Atores, é a noção de legado. Ao adotar uma estrutura que mistura o tempo presente e flashbacks que levam a diversas outras épocas na vida de um mesmo grupo de personagens, Dan Fogelman enfatiza o peso que nossas experiências passadas têm sobre as pessoas que nos tornamos, sobre as escolhas que fazemos e sobre aquilo que não necessariamente escolhemos ser, mas somos. Dentro dessa estrutura, o roteiro da série até agora levantou uma única Grande Questão, sobre o que exatamente teria acontecido com Jack Pearson (Milo Ventimiglia). A resposta veio com o impacto e as lágrimas esperadas, mas bem antes de ela chegar pudemos testemunhar os efeitos duradouros de sua perda sobre a família e sobre aqueles que se juntaram aos Pearson muito depois de sua partida. Mais evidenciados do que os efeitos de sua perda, no entanto, foram os efeitos de sua presença na vida dos Pearson — e também nas vidas daqueles que se juntaram aos Pearson sem jamais conhecê-lo.

Atenção: este texto contém spoilers!

Depois de trinta e seis episódios, é possível afirmar sem medo que Dan Fogelman é um showrunner que gosta de discursos bonitos e diálogos comoventes, e em sua série quase sempre prefere dizer que ao fim do dia está tudo bem, ainda que os momentos às vezes sejam agridoces, ainda que as resoluções bem amarradas muitas vezes não sejam exatamente felizes. Como o bom drama familiar que é, This Is Us tem como base para seus arcos dramáticos os conflitos que existem nas relações muito próximas entre pessoas muito complexas, mas na série esses conflitos dificilmente ficam sem solução (ou pelo menos uma tentativa de solução). Porque nessa história não existe força motriz maior do que o amor que existe entre os Pearson, e a série passa muito tempo — a maior parte do tempo, na verdade — explorando e aprofundando esses laços, que começam lá atrás, com Jack e Rebecca (Mandy Moore).

Se Jack inicialmente é apresentado como ótimo marido, ótimo pai, que no máximo tem problemas rapidamente superados com a bebida à época do nascimento de seus filhos, eventualmente descobrimos de onde isso vem e a que se opõe. Jack crescera num lar muito diferente daquele que busca criar ao lado de Rebecca para seus três filhos; em meio a um relacionamento violento e sem amor entre seus pais, enfrentando um pai abusivo, vivendo em uma profunda falta de conexão com seu pai. Até então o legado Pearson era um legado amargo, mas Jack o transforma ao lado de Rebecca e junto dos filhos. Tudo o que Jack procura ser é o oposto do pai, construindo suas relações familiares com base no diálogo, na compreensão, no carinho e em oferecer sempre a melhor vida possível para os filhos, o que às vezes significa sacrificar sonhos e ambições, algo de que ele jamais se ressente.

This Is Us

O casamento de Jack e Rebecca não é perfeito, e fica ainda mais difícil quando três filhos chegam ao mesmo tempo para eles, pais de primeira viagem. Eventualmente o alcoolismo de Jack volta a atormentá-lo, e ele precisa admitir que tem um problema e buscar ajuda e apoio, que vem principalmente de sua família e da força imbatível de Rebecca. Os Pearson aprendem desde cedo a enfrentar seus demônios individuais em conjunto, algo de que eles nem sempre lembram conforme a narrativa avança, mas de que sempre são lembrados uns pelos outros. O casamento tem problemas, a relação de cada um com os filhos adolescentes também, mas os problemas são sempre apresentados como dificuldades que podem ser vencidas ou contornadas porque para Jack e Rebecca seu relacionamento é algo por que vale a pena lutar, não por conveniência, não porque têm três filhos, mas porque a vida de ambos é melhor e mais feliz quando estão juntos.

Quando chegam os filhos, o amor de Jack e Rebecca se estende imediatamente a eles. Não necessariamente porque são frutos dessa união — porque, é claro, nem todos são. O relacionamento de Jack e Rebecca com os filhos se transforma em uma história de amor tão importante quanto aquele que os dois tinham antes; é uma história que se expande e se multiplica. Os relacionamentos entre mãe e filhos, pai e filhos, irmãs e irmãos, são sempre explorados com muito carinho: tem a cumplicidade de Jack e Kate (Chrissy Metz/Mackenzie Hancsicsak/Hannah Zeile), a conflituosa relação dela com Rebecca, a dificuldade de Kevin (Justin Hartley/Parker Bates/Logan Shroyer) ao se sentir preterido tanto pelo pai quanto pela mãe, a necessidade constante de Rebecca de sempre fazer com que Randall (Sterling K. Brown/Lonnie Chavis/Niles Fitch) tenha certeza de que é tão parte da família e tão amado quanto os irmãos. E todas elas são histórias muito bonitas, muito cheias de possibilidades dramáticas e muito destacadas pelo roteiro. Mas talvez nenhuma delas seja tão bem executada quanto a adoção de Randall.

Randall chega para preencher o espaço vazio que Jack e Rebecca tinham para Kyle, o terceiro trigêmeo que perderam durante o parto. Mas adotar e gerar um filho obviamente não é o mesmo processo, e Rebecca inicialmente tem muita dificuldade de passar por esse momento ao não viver o luto que deveria ter vivido. O processo continua a existir enquanto Randall cresce e procura entender melhor suas origens e os motivos por que foi adotado, chegando a acreditar que é um mero substituto para o filho que os pais realmente desejavam. De uma maneira bastante honesta, o roteiro de This Is Us evidencia as dificuldades dessa caminhada. Desde o começo, desde a dificuldade de Rebecca em estabelecer o relacionamento com seu inesperado e não planejado filho adotivo, os momentos difíceis são transponíveis porque seu coração já estava aberto. Assim como Randall é capaz de perdoar as mentiras colossais de Rebecca sobre William (Ron Cephas Jones), seu pai biológico, porque a ama, porque ela se arrepende, porque eles restabelecem a confiança com base na honestidade (ainda que tardia) e na franqueza.

This Is Us

Mas não é só lado mais difícil do processo de adoção que continua a refletir em Randall muito tempo depois. Quando sua vida vira de cabeça para baixo e ele decide pedir demissão de seu emprego estável e muito bem remunerado porque quer procurar por algo com mais sentido, ainda que nada esteja efetivamente faltando em sua vida, Randall descobre que quer adotar uma criança, dar a uma criança sem lar e sem família a mesma chance que ele tivera, e o mesmo apoio e carinho. Beth (Susan Kelechi Watson), sua esposa e verdadeira companheira em todas as caminhadas, aceita o desafio e embarca — não sem alguma dificuldade inicial — nele junto com Randall. É ela quem compreende que eles não precisam repetir a experiência de adoção de Randall, mas fazer as coisas de seu próprio jeito, do jeito que também faça sentido para ela, que é trazer uma criança mais velha, uma das crianças que costumam ser preteridas no processo de adoção, para dentro de sua casa e de sua família.

Randall chega para Jack e Rebecca com algumas horas de vida; é verdade que os conflitos vão existir, afinal ele é o filho adotado entre dois filhos biológicos, ele é o filho negro adotado por pais brancos, ele é o filho mandado para uma escola particular cara entre irmãos que continuam a frequentar a escola pública. Mas Randall é um Pearson desde o nascimento, é moldado e transformado pela presença de Rebecca e Jack desde os primeiros dias de sua vida. De modo muito diferente acontece a chegada de Deja (Lyric Ross) para Randall e Beth. Ela já é uma pessoa com uma história, com os próprios dramas, traumas, alegrias e tristezas que eles desconhecem e nem sempre conseguem entender completamente. Filha de mãe solo e mãe adolescente, Deja precisa crescer e se tornar responsável cedo demais, enquanto segura as barras de viver com uma mãe muitas vezes ausente, que tem problemas com drogas, uma passagem pela prisão e a tendência de se envolver com homens horríveis que são trazidos para dentro de casa. Mas Deja ama a mãe e não quer ser separada dela, e ainda tem experiências ruins em outras passagens por lares temporários. Tudo isso dificulta a aproximação de Beth, e principalmente de Randall, da garota. É com paciência, carinho e compreensão que eles aos poucos conseguem transpor esses muros e conquistar sua confiança. Mas o amor que estendem a Deja não cura tudo, não suporta tudo, e o enigmático episódio final da temporada, “The Wedding”, deixa aberta a possibilidade de os piores pesadelos de Randall em relação à adoção terem se concretizado no futuro.

E, ainda assim, o legado dos Pearson parece seguir firme e forte. Em “Superbowl Sunday”, episódio que ocupou em fevereiro desse ano o cobiçado horário pós-Superbowl na televisão americana, enfim descobrimos que Jack morreu em consequência de um incêndio na casa da família, depois de tirar todos de dentro de lá. Como seria de se esperar, o episódio mais importante de This Is Us até agora foi dedicado à sua até então Grande Questão, o mistério que aguçava nossa curiosidade. Mas “Superbowl Sunday” não se dedica somente a retratar o luto, que é explorado com mais força no episódio seguinte, o comovente “The Car”. Antes de mais nada, “Superbowl Sunday” é dedicado a manter vivo o legado da família Pearson, de Jack, e levá-lo ainda mais longe.

This Is Us

Em meio aos tantos flashbacks que sustentam a estrutura básica de This Is Us, “Superbowl Sunday” nos apresenta ao primeiro flashforward: é a primeira vez que ultrapassamos o momento definido como o presente, quando os irmãos têm trinta e sete anos. Não por acaso, o primeiro flashforward da série tem a mesma trilha sonora (numa versão diferente da mesma canção) dos momentos que fecham o episódio piloto: quando Jack vê Randall pela primeira vez no hospital e toma a decisão que transformaria toda a sua vida, e quando descobrimos que as histórias que até então pareciam independentes eram, na verdade, a história única de uma mesma família. Ao perder um filho, Jack e Rebecca escolhem abrir sua família para alguém que talvez nunca tivesse outra. Randall, por sua vez, depois de conseguir estabelecer para si mesmo um lar saudável, estável e cheio de amor, opta por abrir sua vida para uma jovem que não teve as mesmas oportunidades que ele. Mais pra frente, em nosso primeiro vislumbre do futuro dos irmãos Pearson, Tess (Eris Baker/Iantha Richardson), filha mais velha de Randall, a menina que tira o telefone fixo do gancho de novo e de novo para evitar os telefonemas das assistentes sociais depois da partida de Deja, trabalha como assistente social e procura novas famílias para as crianças que precisam delas. É um legado que muda vidas e continua a atravessar gerações, rompendo então os limites da família.

Em This Is Us, Randall conta para Tess que sempre quisera ser metade do pai que seu próprio pai fora. Kate conta para Rebecca que queria ser como a mãe, que sonhava em ter um casamento como o dos pais. Tess conta a Randall que, mesmo com as dificuldades, gosta que seus pais estejam dispostos a oferecer um lar para outras crianças. Randall abre as portas de sua casa para William, e através dele se depara com toda uma nova realidade. É principalmente por causa dele que Randall e Beth compram o antigo prédio onde ele morava, a fim de oferecer uma moradia melhor para todos os seus vizinhos. O que não deixa de ser um ato de amor. De Randall para a memória de William, de Beth para Randall e para sua vocação, de Randall e Beth para o mundo.

Estender a mão ao outro é o legado que passa de geração em geração aos Pearson, afinal.