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Uma Chama Entre as Cinzas: o retrato cruel e ocasionalmente esperançoso de um mundo opressor

Na melhor das hipóteses, uma boa literatura de fantasia aborda temas como amor, família e amizade, tudo isso com um universo diferente e bem construído como pano de fundo, oferecendo escapismo e conforto para quem procura se prender no gênero. Se a obra for realmente boa, no entanto, ela vai fazer tudo isso e ao mesmo tempo criar uma realidade que é mais empática. Ou pelo menos, mais esperançosa.

Existem várias palavras que podem definir a saga que começa com Uma Chama Entre as Cinzas, de Sabaa Tahir. Mas é justo dizer que esperançosa é algo que resume muito bem a essência dos livros; são três, no total: além do primeiro, também conta com Uma Tocha na Escuridão e Um Assassino nos Portões. O quarto e último (A Sky Beyond the Storm. Ou, se você preferir, Um Céu Além da Tempestade) já saiu no exterior e deve chegar em algum momento de 2021 no Brasil. Se o mundo retratado nessa distopia é cruel e opressor, a dinâmica entre os personagens e a forma como eles são construídos garantem um contraponto pertinente e até mesmo sensível. O resultado é algo que se destaca da maioria das obras do gênero — e se torna algo realmente especial e que vale a pena acompanhar.

Atenção: este texto contém leves spoilers!

Para se adentrar no mundo criado por Tahir, e traduzido por Jorge Ritter no Brasil, é preciso saber entender sua estrutura opressora: em Uma Chama Entre as Cinzas as pessoas são dividas entre os Eruditos, que são uma raça escrava e submissa, e os Ilustres, aqueles que são os opressores, considerados “superiores”. Enquanto os Eruditos sofrem com péssimas condições de trabalho e vida, tendo que lutar todos os dias por itens básicos de sobrevivência, os Ilustres criam suas crianças para serem leais ao Império e principalmente ao Imperador, mandando as mesmas para uma escola brutal e fascista, onde eles lutam entre si para se tornarem Marciais. Se eles completam o treinamento violento e são considerados “dignos”, se formam como Máscaras. Essas figuras, que literalmente usam máscaras para cobrir mais da metade de seus rostos, são parte fundamental do exército marcial, aqueles que mantêm a ordem e fazem todo o trabalho sujo, enquanto os Ilustres mais velhos fazem parte do conselho e acatam a honra das Gens (grandes famílias de nome, poder e dinheiro). Se tornar um Máscara é uma honra, e apenas algumas crianças (sempre as mais “fortes”, segundo o conceito deles de força) são selecionadas para participar do treinamento e frequentar a escola. Menos crianças ainda conseguem sobreviver e passar para a vida adulta.

No centro de todo esse mundo complexo estão os dois protagonistas: Laia e Elias. Apesar de serem de mundos diferentes, a jornada dos dois se torna interligada e, mesmo sendo pessoas criadas em contextos diferentes, com sonhos e esperanças distintas, fica claro que um precisa do outro para seguir em suas respectivas trajetórias, de forma literal e até mesmo romântica. Isso seria um problema em qualquer outra narrativa que não estivesse disposta a realmente explorar as motivações dos personagens. Criar uma dinâmica entre duas pessoas que vêm de lugares tão diferentes, sendo que uma delas está inserida em um sistema responsável pela opressão que aflige o povo da outra, é algo realmente complicado e difícil de realizar, correndo o risco de tornar as consequências desse envolvimento em algo leviano e até mesmo inconsequente, sem implicações reais. Mas não é o que acontece. Uma Chama Entre as Cinzas toma todo o tempo necessário para entender o que move ambos e porquê eles estão no ponto em que estão quando começamos a história. E isso faz toda a diferença.

Uma Chama Entre as Cinzas

No pontapé inicial da trama, Laia é uma Erudita comum. Seus avós são curandeiros e ela vive com eles e com seu irmão, Darin, uma vida que é (quase) tranquila. A protagonista está se preparando para assumir a mesma profissão dos seus parentes quando Máscaras surgem na sua casa procurando pelo irmão — que aparentemente está envolvido em uma conspiração com rebeldes contra o Império. Desesperado com a morte dos seus avós e uma possível prisão, ele diz para Laia fugir. O único problema é que, depois de deixar o irmão à mercê dos inimigos, ela começa a se sentir culpada e, por isso, vai procurar ajuda da mesma rebelião no qual o irmão foi acusado de ajudar.

É interessante ver a forma como Tahir explora as tramoias que existem dentro de uma organização como a resistência. Apesar de lutarem pela liberdade dos Eruditos e prezar pela sobrevivência do seu povo, o chefe resiste em ajudar Laia de primeira, só vindo a fazê-lo quando ele descobre que ela não apenas é filha da “Leoa” (uma ex-membro da rebelião, que foi morta em combate e se tornou uma lenda) e porque ele vê assim, esperando que ela tenha herdado a coragem da mãe, uma oportunidade de mandá-la se infiltrar na Academia que forma os Máscaras. Em troca, eles ajudariam a resgatar seu irmão.

A forma como Uma Chama Entre as Cinzas também explora o legado da “Leoa” perante a personalidade de Laia é algo que vale a pena mencionar. A protagonista se sente constantemente pressionada a ser algo que ela não necessariamente é, caindo no mundo da rebelião e arcando com responsabilidades que são terríveis não só para uma jovem inexperiente como ela, como também para o resto das pessoas no geral. Sua jornada no primeiro livro explora muito o sentimento de inadequação e exclusão que ela sente, além do medo de estar em situações complicadas e perigosas. Por mais que seja satisfatório acompanhar protagonistas de obras jovens adultas que são destemidas e fazem o que tem que fazer sem um pensamento “covarde”, é refrescante ver Laia rompendo suas próprias barreiras do medo e seguindo seus instintos e, consequentemente, crescendo. Não apenas como mulher, mas também ao encontrar seu papel no mundo. Mesmo com um medo que é quase palpável, ela se vê obrigada a ajudar seu irmão, que é a única pessoa que ela ainda tem no mundo, e aceita o desafio, se disfarçando como uma escrava da Comandante Veturius, uma mulher que é uma das figuras mais proeminentes da Academia.

A Comandante Veturius também é mãe de Elias e uma das personagens mais complexas da obra. Cruel e implacável, é difícil saber exatamente quais são as suas motivações no começo. A única coisa que fica claro desde o começo é o que faz com que Elias seja um protagonista mais acessível e humano: quando era pequeno, foi desprezado pela sua mãe e abandonado para viver com as Tribos — que são livres, ao contrário dos Eruditos. Elias foi, portanto, criado por um povo com uma cultura completamente diferente da sua, mas, ao completar idade para entrar na Academia, foi rastreado pelos Máscaras e levado para servir. Mesmo a contragosto, ele se tornou um aluno brilhante e, com o passar dos anos, começou a absorver a forma como as coisas aconteciam na Academia — a violência, os estupros e a forma como os Marciais agiam — e como isso não era certo, ou algo que ele aspirava para si. Quando Uma Chama Entre as Cinzas começa, Elias está prestes a desertar, sem querer se tornar um Mascara completo.

Uma Chama Entre as Cinzas

Respondendo algumas perguntas no Instagram, a autora disse que planejava começar sua história com Elias já como um desertor, mas mudou de ideia ao perceber que precisava explorar suas motivações com um pouco mais de afinco. E essa com certeza foi a escolha certa. Elias é um personagem complexo e um protagonista completo justamente porque existem dois lados seus que estão eternamente em conflito. Ele entende que o fascismo do Império é cruel, absurdo e errado, mas ao mesmo tempo se sente dividido pelo amor que sente por alguns colegas — em especial por Helene, sua melhor amiga de anos e uma das pessoas que sempre estiveram ao seu lado. Quando o Imperador está prestes a morrer, sem deixar uma linhagem ou possíveis herdeiros, um grupo seleto de estudantes da Academia são convocados para uma competição e se tornarem Imperador e Águia de Sangue, uma espécie de braço direito para o governador. Aqueles que ficassem em primeiro e segundo lugar, respectivamente, tomariam os cargos. Elias e Helene estão entre os concorrentes, ao lado de Marcus e seu irmão gêmeo Zack, dois dos mais cruéis personagens da saga. Obviamente, o primeiro instinto do protagonista é não participar, mas ele é avisado que apenas participando da competição ele poderia se tornar “realmente livre”.

É assim que o destino de Laia e Elias se interliga. Enquanto ele compete para se tornar imperador, Uma Chama Entre as Cinzas faz com que ela comece a se infiltrar cada vez no mundo da Comandante Veturius, com objetivo de repassar informações para a rebelião. Para isso, ela conta com a ajuda de Izzie e da Cozinheira, essa por sua vez que hesita em revelar seu nome verdadeiro, duas escravas que já estão “acostumadas” com as crueldades de Veturius. Criados em contextos sociais e políticos diferentes, ambos encontram formas de ajudar Laia, ainda que muitas vezes com medo das consequências. O que é interessante na dinâmica dos personagens é a forma como nasce uma conexão entre eles e como isso, consequentemente, faz com que eles sigam sempre na direção certa. O amor de Laia pelo irmão Darin é sua maior motivação, assim como a amizade que nasce entre ela e Izzie — ela se torna uma das fontes que a protagonista bebe para se fortalecer; a bondade e a coragem de Laia é algo que inspira Elias a finalmente deixar o Império para trás e fazer a coisa certa, ainda que seu relacionamento com Helene seja uma amizade verdadeiramente genuína e interessante de acompanhar. E o amor de Helene por Elias e pela família, por sua vez, explana uma lealdade raramente vista em personagens de universos como esse.

Uma Chama Entre as Cinzas

Existe também uma boa dose de empatia que corre entre eles. Como são personagens humanos e erráticos, muitas das suas escolhas, ainda que venham do lugar certo, acabam dando errado e prejudicando as pessoas ao seu redor. Laia ter corrido e deixado o irmão com os Máscaras representa bem esse aspecto. Apesar de ele a ter mandado embora, a sensação é que Laia deveria ter feito mais, tentado mais, mesmo que não pudesse fazer nada. Elias sente a mesma coisa em relação aos seus colegas e a vida que levou na Academia, como se fosse o catalisador para tanto sofrimento, perda e violência. Um entende o outro e, ocasionalmente, oferecem um ombro amigo ou uma perspectiva diferente para que eles sigam em frente — ou pelo menos, consigam fazer o necessário para consertar as coisas.

“Existem dois tipos de culpa. Aquele que é um fardo e aquele que lhe dá um propósito. Deixe que a culpa seja o seu combustível. Deixe que ela te lembre do que você quer ser. Trace uma linha em sua mente e nunca mais a ultrapasse. Você tem uma alma. Ela foi ferida, mas está lá. Não deixe que tirem isso de você, Elias.”

A mesma coisa funciona com Helene. Apesar da personagem só ganhar um POV (point of view ou ponto de vista, em português) no segundo livro, sua jornada talvez seja uma das mais complexas das três obras. Ao contrário de Elias, ela é completamente leal ao Império e acredita muito no que eles pregam. Sua desconstrução, portanto, é ainda mais lenta e gradual e parte do ponto de que sua lealdade feroz, antes aplicada ao Império, passa a funcionar com sua família (que sofre perdas absurdas) e até mesmo com Elias, que ganha o benefício da personagem mais de uma vez. É difícil entender o ponto de vista de Helene, até porque ela faz parte de um sistema opressor, mas ao mesmo tempo é interessante acompanhar como as coisas se desenrolam para a mesma e como, eventualmente, seu senso de dever e honra começa a apontar para o lado certo. É algo tão natural e bem construído quanto a jornada de Elias para se tornar alguém que está constantemente tentando proteger aqueles ao seu redor, cumprir seu papel e compensar os seus anos na Academia, como também aquele que mostra Laia superando suas barreiras e se tornando uma líder — diferente da sua mãe, melhor e mais empática.

Apesar de Uma Chama Entre as Cinzas ser voltado para um público relativamente jovem, a escrita de Sabaa Tahir é cruel e violenta. As cenas onde Laia é violentada, seja pela Comandante Veturius ou por alguns estudantes da Academia são difíceis de ler, assim como as etapas da competição de Elias são absurdamente cruéis. Mas nenhuma das suas decisões narrativas é tratada por leviandade e as consequências alcançam os personagens eventualmente.

Com um mundo inspirado muito na Roma Antiga e com uma mitologia bem enraizada no Oriente Médio (com direito a djins e ghouls), Uma Chama Entre as Cinzas é muito focado na Academia em si, com Laia e Elias determinados a sobreviver e alcançar seus objetivos, ainda que de maneiras diferentes. Enquanto isso, as outras duas obras são ainda mais importantes e fundamentais porque adentram a mitologia da história, oferecendo uma visão mais aprofundada não apenas nos protagonistas, com seus anseios e sonhos, mas também nos vilões e nas figuras que rodeiam e são importantes para aquele universo. A narrativa de Tahir é incrivelmente esperta, rápida e cheia de acontecimentos, com reviravoltas que apenas deixam a trama mais rica e cheia de camadas. Apesar de não acreditar que spoilers prejudicam toda a experiência de uma obra, acredito que a saga que começa com Uma Chama Entre as Cinzas oferece uma trama que mescla bem os dois elementos — revelações importantes e ao mesmo tempo momentos íntimos e fundamentais para desenvolver os personagens. É possível se divertir absurdamente com os elementos mitológicos expostos pelos livros e roer as unhas de ansiedade pela ação e suas consequências, mas também ter esperança de que aqueles personagens, cada um com suas jornadas específicas e originais, que ocasionalmente se entrelaçam, vão criar um mundo melhor e mais empático.


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