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A saga Corte de Espinhos e Rosas e a sutil construção de um relacionamento abusivo

A saga Corte de Espinhos e Rosas, escrita por Sarah J. Maas e publicada em 2015, pode parecer só mais uma trilogia de livros de fantasia em que a protagonista se apaixona por um homem não humano e passa a conhecer uma nova realidade cheia de seres fantásticos e perigos. Na verdade, se você ler apenas o livro 1, Corte de Espinhos e Rosas, que dá nome a saga, essa será sua exata impressão da história. Apesar de a protagonista ser uma personagem forte e determinada, o livro parecerá apenas mais um romance fantástico entre os milhares que existem por aí. Caso você seja um leitor mais atento, pode sentir até certo incômodo, devido a uma questão bastante problemática na história que a princípio é um pouco difícil de perceber. No entanto, no segundo e terceiro livros, Corte de Névoa e Fúria e Corte de Asas e Ruína, somos surpreendidos com uma reviravolta inesperada na história, e aquele problema incômodo do primeiro livro é completamente explicitado e resolvido.

O livro Corte de Espinhos e Rosas conta a história de Feyre, uma humana que vive na extrema pobreza e tem que se virar sozinha para sustentar suas duas irmãs e seu pai. O mundo em que ela vive é dividido entre humanos e seres mágicos chamados feéricos, considerados assassinos cruéis da raça humana. Esses seres não podem atravessar a chamada “muralha”, barreira que magicamente divide as terras feéricas das terras humanas. Um dia, enquanto caça para poder alimentar sua família, Feyre mata um lobo, que mais tarde descobre se tratar de um feérico. Assim, ela é levada para o outro lado da muralha onde passa a viver com o Grão-Feérico da Corte Primaveril, Tamlin. Com o tempo, o relacionamento dos dois vai se aprofundando até virar uma paixão perigosa para ambos.

Atenção: o texto abaixo contém spoilers leves. Se a sinopse do livro (acima) não chamou sua atenção, pode ser que as informações abaixo aumentem seu interesse.

Como já dito, o primeiro livro, apesar de ser uma história interessante, não chega a ter nada de muito diferente de outras histórias que existem por aí. Então, o que tem de tão especial nessa saga? O que mais chama nossa atenção é a reviravolta que acontece no segundo livro, que não apenas nos pega de surpresa, como quebra alguns clichês comuns em livros do gênero.

No primeiro volume, somos apresentados a Tamlin, um feeérico superior, líder de uma corte de feéricos. Ao longo da história, ele e Feyre se tornam muito próximos e, mesmo que ela seja humana e ele, feérico, as diferenças são deixadas de lado por ambos, que aprendem a conviver e acabam se apaixonando. Tamlin é um personagem tão encantador e amável que acabamos não percebendo o quão controlador ele é. Até mesmo aqueles que percebem acabam por relevar esse aspecto, pois nos apaixonamos facilmente pelo personagem.

Tamlin trata Feyre “muito bem”. Dá roupas bonitas a ela, alimenta-a bem, leva-a para passear, a incentiva a se dedicar a seu passatempo, a pintura, de forma que ela nunca pôde antes devido à sua pobreza. Ele se Preocupa com o bem estar dela, físico e mental, e sua segurança enquanto uma humana morando naquela corte. Vários momentos do casal são de tirar o fôlego e nos fazem desejar encontrar um Tamlin na vida real. A questão é que todos esses momentos amáveis e acolhedores de Tamlin acabam por mascarar as atitudes tóxicas do personagem. Ele mantém Feyre em rédea curta com a desculpa de mantê-la a salvo. Sim, há muitos perigos no mundo em que ele vive, mas, supostamente para protegê-la, ele nega a Feyre sua liberdade. Além disso, ele não gosta de ser contrariado. Quando Feyre não concorda com ele, Tamlin, apesar de a princípio não agir de forma fisicamente agressiva com ela, demonstra vários sinais de descontrole, como suas garras aparecendo, seus rosnados, sua voz elevada que não mais “pede” algo a Feyre, mas sim lhe dá “ordens”. Apesar de tudo isso, o livro é tão bem escrito que, para muitos leitores, esses sinais serão imperceptíveis ou serão facilmente desculpáveis quando descobrimos, aos poucos, os monstros que vivem no mundo feérico.

Além disso, toda a história que cerca Tamlin nos faz sentir empatia pelo personagem, um homem amaldiçoado que está fazendo de tudo para proteger seu povo. Um homem bonito, que vive cercado pela natureza, por livros e pela arte. Um líder que carrega um enorme peso nas costas. Tudo nos diz, a todo momento, quão incrível ele é. E não só Feyre cai nesse relacionamento abusivo, como nós também somos facilmente convencidos de que eles são um lindo casal. Ao fim do primeiro livro, chegamos a ficar com um pouco de raiva de algumas atitudes de Tamlin, ou, no caso, a falta de atitude dele, que não faz nada para ajudar Feyre quando ela mais precisa. Apesar disso, novamente tudo parece justificado quando ele destroça furiosamente o inimigo que torturou Feyre e, com uma tristeza profunda, acredita ter perdido sua amada, fazendo com que nos derretamos novamente pelo casal. Assim, o livro termina e, se não formos para o segundo livro, iremos continuar acreditando que Tamlin é um modelo de homem perfeito, e que este é um lindo relacionamento. Afinal, uma relação abusiva nunca começa com um soco, ela sempre começa de maneira muito, muito sutil.

No segundo livro, a autora, de forma intencional ou não, muda drasticamente nossa percepção sobre o casal e sobre Tamlin. Ela finalmente expõe o quão controlador Tamlin é, tornando atitudes cada vez mais drásticas e possessivas. Ele continua fazendo as mesmas coisas que fazia no primeiro livro, mas agora de forma muito mais explícita e, mais uma vez devido à escrita da autora, finalmente percebemos que esse relacionamento entre os dois é extremamente tóxico. Tamlin continua dando para Feyre e para nós as mesmas desculpas para justificar suas ações, ao mesmo tempo que pratica abusos diversos, como restringir a liberdade de Feyre; não contar a ela a verdade sobre o que ocorre na corte; forçar um casamento com ela, mesmo sabendo que Feyre está passando por um péssimo momento em sua vida; não levar em conta a opinião dela ou os claros sinais de depressão que ela exibe; mentir para ela, entre tantos outros. Felizmente, agora não conseguimos mais aceitar essas justificativas, pois o abuso é jogado na nossa cara de forma crua e direta.

Feyre, devido aos acontecimentos do livro anterior, fica traumatizada e entra em um estado depressivo. Ela tem constantes pesadelos que a impedem de dormir e perde a vontade de fazer qualquer coisa, incluindo pintar, sua maior paixão. Enquanto isso, Tamlin se torna cada vez mais agressivo, controlador e mentiroso. Assim, vemos Feyre definhar, enquanto Tamlin finge, de forma descarada, não ver. O descontrole de Tamlin é tão grande que ele chega a lançar seus poderes contra Feyre em um ataque físico, e logo em seguida pode desculpas a ela e promete que aquilo não acontecerá de novo, numa representação perfeita de uma relação abusiva.

Em uma das cenas mais impactantes do livro, vemos Feyre finalmente se impor perante Tamlin e não mais aceitar o controle dele. Como resposta, Tamlin literalmente a tranca dentro do palácio, fazendo Feyre entrar em completo estado de desespero, aprofundando ainda mais sua depressão.

Ao longo segundo e terceiro volumes da saga, vemos Feyre se livrar do relacionamento abusivo com a ajuda de novos amigos e de um novo amor, tornando-se muito mais forte e poderosa. Ainda assim, algo que considero especial no livro é que, diferente de muitas outras obras, fica claro que Feyre não se torna forte por passar por um abuso (olá, Game of Thrones!). Ela sempre foi forte, mas se perdeu por um tempo. Fica evidente também que esse relacionamento deixou marcas que ela levará por toda a vida. Não vemos nenhuma insinuação do abuso sendo romantizado e usado de forma instrumental para o desenvolvimento da personagem em Corte de Espinhos e Rosas.

O novo relacionamento de Feyre, com um personagem inesperado, nos mostra como um parceiro realmente deve ser. Esse novo amor nunca prende Feyre, por mais que estivesse preocupado com sua segurança; nunca lhe dá ordens ou a obriga a fazer algo que não queira; nunca a trata como uma boneca indefesa que precise de proteção. Ao contrário, sempre respeita suas decisões, seu espaço e suas discordâncias. Esse novo amor também não é um personagem perfeito, o herói incorruptível da mocinha; ele é uma boa pessoa, que comete erros e faz muita burrada, mas que aprende com seus erros e, acima de tudo, está disposto a ouvir o que aqueles que estão ao seu redor têm a dizer, principalmente sua parceira. O personagem chega, inclusive, a quebrar tradições machistas da cultura feérica para que Feyre possa dividir o poder e liderança com ele, ou utilizar desse poder e liderança sozinha se for o caso.

Corte de Espinhos e Rosas não é uma saga perfeita, mas é uma obra incrível, divertida, interessante, com personagens muito bem construídos, uma protagonista feminina fantástica e que me surpreendeu ao representar de forma lenta, sutil e principalmente corajosa, um relacionamento abusivo, mostrando-o de forma sensível e bastante real. A obra faz com que fiquemos completamente apaixonados por um personagem, para depois, jogar na nossa cara que ele era um homem abusivo e que isso sempre esteve lá, mas não quisemos enxergar.

Ficha técnica Corte de Espinhos e Rosas - 4 estrelas

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11 comentários

  1. parabéns pelo texto incrível, uma pena que na vida real os Tamlins parecem ser bem mais comuns que os Rhysands.

  2. Estou lendo o terceiro livro agora, e desde o primeiro já havia visto algo estranho no Tamlin. Confesso que, a princípio, fiquei receosa quanto ao relacionamento dela com o Rhys, pois, mesmo hoje ele se provando uma pessoa muito boa, não passo pano para algumas das coisas que ele fez no primeiro livro hehe. De toda forma, mesmo tendo achado o primeiro livro sofrido, e ainda achando algumas coisas meio enroladas, eu gostei bastante do segundo e estou gostando também do terceiro. O artigo ficou maravilhoso!

    1. Olá! Gostei muito da interpretação sobre o livro! Realmente tem um relacionamento abusivo velado no primeiro livro, o qual acabo de ler, e realmente as atitudes de Tamlin são sempre justificadas para que pareçam inofensivas aos nossos olhos. Vou para o segundo livro, e como o relacionamento tóxico vai se tornar mais claro como citado na matéria, talvez isso seja uma própria prova de que a visão da Feyre se ampliou sobre a situação, e sem dúvida uma jogada de reviravolta da autora Sarah para que nos déssemos conta disso e passassemos a condenar Tamlin.

  3. fico feliz em anunciar que nunca caí nas garras do tamlin desta maneira. o odeio pelo fato de tê-lo em minha vida ser tão palpável. é real e aterrorizante demais.

  4. Foi EXATAMENTE assim que eu me senti durante toda a saga. Parabéns pelo texto, você descreveu muito bem todo o desenvolvimento do livro. Adorei!

  5. Ler isso me faz pensar na minha relação e como ela se parece com a da Feyre e do Tamlin, é a mesma situação tirando as partes mágicas na história , me está tirando a liberdade com uma desculpa de proteção …. E eu não consigo sair agora…

  6. ENTÃO ,COM TODO O RELACIOMENTO ABUSIVO E GATLHOS E TALZ EU ACHEI O TAM MUITO INCOMPREENDIDO SEI LA POSSO ESTAR PASSANDO PANO MAS EU ACHEI O AMOR DELE POR ELA TÃOO REAL AHH GENTE OS MACHOS DE ACOTAR SÃO TODOS SUPER PROTETORES E ELE POR SER UM GRÃO SENHOR COM TANTOS INIMIGOS …SEI LA TBM TENHO UMA QUEDA POR VILÕES /MOCINHOS BLZ FREYE ESCOLHEU O RHYSAND MAS … NÃO SEI EU AINDA SOUN #TEANTAMILIN , E MUITO AFTER SABE TEM GENTE QUE ODEIAO HARDIM JA EU NÃO KKKKK *LEMBRANDO E SO MINHA OPNIÃO FADONS NÃO ACABEM COMIGO

    1. Mana, o problema todo é que ele não é superprotetor, ele é controlador. Por mais que vc ame alguém, nao tem o direito de tirar a liberdade de escolha dessa pessoa. Romantizar esse tipo de atitude é perigoso pq vc pode deixar de perceber os limites que tem que colocar num relacionamento nao perceber a manipulação que pode acontecer com vc e com outros.
      Você pode achar o Tamlin bonito (ele é né? Kkkkk) mas desde o primeiro livro os sinais estavam lá. Fique atenta pra nao cair nesse tipo de armadilha na vida real! Bjs!

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