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Dona Ivone Lara: uma pioneira invisibilizada da saúde mental

Quando assisti ao filme Nise — O Coração da Loucura (2015), deparei-me com um comentário que dizia que a enfermeira Ivone (Roberta Rodrigues), personagem secundária, representava, na verdade, Dona Ivone Lara. À época, não conhecia a carreira de Dona Ivone na saúde pública. Fiquei surpresa, não por esse fato, mas pela forma como ela foi retratada no filme. Inclusive, seu nome poucas vezes é mencionado. Na realidade, entretanto, Dona Ivone esteve ao lado de Nise da Silveira na construção de um projeto de cuidados humanizados em saúde mental. Vale a pena conhecer a trajetória dessa mulher negra à frente do seu tempo, enfermeira, assistente social, especialista em terapia ocupacional e compositora. Tudo isso já nas décadas de 1940-50.

Passos que vêm de longe

Nascida em 1921, no Rio de Janeiro, filha de um casal de músicos, aos 12 anos ficou órfã de pai e mãe. Os pais haviam semeado a importância da educação: no colégio interno, teve aulas de música com Lucília Villa-Lobos e Zaíra de Oliveira. Posteriormente, prestou processo seletivo para a Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, a única então que oferecia curso gratuito com oportunidade de ascensão socioeconômica. Passou entre os dez primeiros colocados, com direito a bolsa. Foi uma das primeiras mulheres negras a adquirir ensino superior.

Também foi uma das primeiras alunas do curso de Serviço Social, antes que a profissão fosse regulamentada, e especializou-se em Terapêutica Ocupacional, no curso ministrado por Nise da Silveira. Mesmo depois de se tornar uma compositora famosa, na década de 1990, ela ainda se apresentava como assistente social.

Após a aposentadoria, Dona Ivone seguiu a carreira de cantora. Dedicou mais de 30 anos ao campo da saúde mental, em Engenho de Dentro e na Casa das Palmeiras, onde trabalhou ao lado da psiquiatra Nise. Juntas, elas desenvolveram uma abordagem humanizada, individualizada, com a articulação das famílias dos pacientes e comunidade.

Imagem do filme "Nixe - o coração da loucura" mostrando Dona Ivone, Nise da Silveira e alguns pacientes

O poder curativo da música

No filme, há uma cena na qual Nise, recém incumbida da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR), encontra dois enfermeiros ociosos, entre eles, a personagem de Ivone, enquanto o local está sujo e com entulhos. Ela solicita a colaboração de ambos para arrumar o local e somente Ivone atende. Nos momentos em que aparece, Ivone demonstra ter pouca iniciativa, recebendo, a maior parte do tempo, instruções de Nise da Silveira. No entanto, Dona Ivone, em entrevista, relatou que zelava pelo seu trabalho enquanto enfermeira, tirava férias apenas no carnaval, não faltava e fazia muitos plantões. “A minha repartição era sagrada”, disse.

Na realidade, ela teve papel crucial em algumas atividades que o filme retrata, como encontrar as famílias dos pacientes em locais longínquos, utilizar a música como atividade terapêutica, recolher doações de instrumentos musicais, organizar eventos sociais entre os pacientes, familiares e médicos. Assim, construiu-se um espaço de expressão dos sujeitos.

Dona Ivone conciliava o trabalho como assistente social com a carreira musical. Foi a primeira mulher a assinar a composição de um enredo de escola de samba. Durante muito tempo, entregou suas canções ao primo, para que assinasse. Vivenciou a transição do samba, de perseguido e criminalizado — juntamente com o candomblé, espaço no qual se originou — a símbolo da cultura brasileira.

Dona Ivone relata que muitos pacientes eram músicos. Um deles, Ribamar, considerado catatônico, voltou a interagir após ouvi-la cantar. Segundo ela, Nise ria muito quando um paciente catatônico questionava: “Ivone, vai ter ensaio hoje?” Ribamar, que tinha sido clarinetista em uma orquestra, passou a tocar nas festas do hospital. Dona Ivone foi até a casa de seus familiares, que então passaram a visitá-lo. Posteriormente, ele recebeu alta.

Dessa forma, Nise da Silveira fundamentou-se em Carl Jung, enquanto Dona Ivone se apoiava em saberes ancestrais, materializados no samba. A menção ao seu sobrenome ou um par de cenas nas quais a personagem demonstrasse um comportamento mais ativo no desempenho dessas atividades citadas despertaria no telespectador leigo a curiosidade de pesquisar mais sobre a vida e a obra de Dona Ivone.

Saúde mental e racismo

Segundo Dona Ivone, Nise ainda não tinha iniciado sua proposta terapêutica quando foi sua supervisora, mas sabia da importância da articulação com as famílias dos pacientes. Houve, assim, uma construção coletiva, e enfatizá-la, de forma alguma, tiraria o foco do tema do filme: a vida de Nise da Silveira. Regozijo-me com o fato dessas duas mulheres terem sido contemporâneas e trabalhado juntas pela Reforma Antimanicomial.

Abordagem diferente foi utilizada no musical Dona Ivone Lara — Um Sorriso Negro, no qual, já nas primeiras cenas, Dona Ivone se identifica com uma paciente negra, chamada de “Crioula”, e conversa com Nise da Silveira sobre como o racismo produz sofrimento psíquico. Não se pode perder de vista que gênero, classe e relações étnico-raciais estão entrecruzadas. Ao longo da história, grupos subalternizados foram considerados desviantes, sujeitos à internação.

Com relação à população negra, no pós-abolição houve uma série de medidas que tencionava impedir o seu desenvolvimento econômico, político e social — dentre elas, uma medicina ancorada em eugenia e higienismo, da qual Dona Ivone foi contemporânea. Dessa feita, o marcador raça deve ser levado em consideração na intervenção profissional em saúde mental, tendo em vista que vivemos em uma sociedade na qual o racismo é estrutural.

Não apenas no filme Nise — O Coração da Loucura houve o apagamento de Dona Ivone, como também na própria historiografia da profissão de assistente social. Trata-se de um processo no qual o papel que pessoas negras desempenham na construção do conhecimento é negado, retratado como como algo episódico. Neste 2021, comemorou-se o centenário de Dona Ivone. Assim como Nise da Silveira, Dona Ivone Lara também é referência em terapia ocupacional e movimento antimanicomial. Como ela mesma cantou em “Minha Verdade”: “nada poderá me afastar do que eu sou”.


Referências

AMORIM et al. “Asfixias sociais” da população negra e questões para a Terapia Ocupacional. Rev. Interinst. Bras. Ter. Ocup., Rio de Janeiro, 2020. v.4, n. 5, p. 719-733.
BURNS, Mila. Nasci para sonhar e cantar: Gênero, projeto e mediação na trajetória de Dona Ivone Lara. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2006.
LEITE JR., Jaime Daniel; FARIAS, Magno Nunes; MARTINS, Sofia. Dona Ivone Lara e terapia ocupacional: devir-negro da história da profissão. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 29, e2171, 2021.
SANTOS, Katia. Dona Ivone Lara: voz e corpo da síncopa do samba (Tese de doutorado). University of Geórgia, Geórgia, 2005.
SCHEFFER, Graziela. Serviço Social e Dona Ivone Lara: o lado negro e laico da nossa história profissional. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 127, p. 476-495, set./dez. 2016.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!