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Atypical: drama e comédia na medida certa

Em 2018, mais uma vez, completei minha meta pessoal de assistir 500 episódios no ano. Assisti mais do que isso, na verdade (623 episódios foi a contagem final, inferior apenas aos anos de 2014 e 2015, quando o total somou 790 e 680, respectivamente). Esse registro, que para nada serve além de ser mais uma forma de tentar colocar minha vida em ordem e em listas, é feito há mais de meia década (!) no quase falecido Tumblr e em sites de organização da grade de tudo o que assisto, quero assistir e já assisti. Quando olho para trás, para esses anos de consumidora de TV, agravados pela facilidade da Netflix, percebo que poucas das séries que assisti eu realmente amei. Muitas delas eu só gostei; às vezes muito, às vezes só o suficiente. Várias eu assisti por costume. E algumas outras por curiosidade. Quando penso nas muitas maratonas que já fiz, sempre penso com carinho no mesmo punhado de não mais de uma dúzia de títulos. Breaking Bad. The Newsroom. Mad Men. BoJack Horseman. Crazy Ex-Girlfriend. Brooklyn Nine-Nine. How I Met Your Mother. E nem tudo realmente tem a ver com a qualidade das séries, embora uma boa parte delas tenha sido aclamada pela mídia. Tem muito sentimento também.

Com o ritmo dos dias atuais, é fácil sentir que a gente fica para trás. Que não dá conta de assistir tudo o que as pessoas estão comentando, muito menos tudo o que a mídia diz ser a próxima série que você não pode perder. Terminei 2018 lendo um ótimo texto sobre o mundo das produções de TV, ou do streaming, você escolhe. No texto, o autor detalha os específicos de tentar manter o ritmo em uma época onde há muitas séries boas, mas muitas delas só são boas o suficiente. Há muito do que gostar, porém pouco para amar.

Por essas e outras, estabeleci que no ano de 2019 assista melhor e mais do que realmente quero assistir, mesmo que isso signifique não cumprir a meta. Nesse sentido, como primeiro texto da categoria TV pra esse ano, decidi falar sobre Atypical, uma série que eu ainda não sei se vai passar para a categoria de séries que amo — a gente sempre precisa de um tempo pra medir a temperatura dessas coisas —, mas que foi uma surpresa muito agradável depois de aguentar um final de série horrível (sim, House of Cards, estou falando de você).

Atypical, série lançada em 2017 pela Netflix e já com a terceira temporada encomendada, conta a vida de Sam Gardner (Keir Gilchrist), um adolescente autista de dezoito anos, que busca o que adolescentes geralmente buscam: um amorzinho e crescer. Acontece que Sam está convencido de que o par perfeito para ele é sua terapeuta, Julia Sasaki (Amy Okuda), o que acaba gerando algumas justificadas confusões. Além de Sam, conhecemos muito do dia a dia da família Gardner. Elsa Gardner (Jennifer Jason Leigh) é a mãe superprotetora que faz de tudo para que a vida do filho seja mais tranquila; Doug Gardner (Michael Rapaport) é um pai que tem dificuldades em se aproximar do filho, mas que, com o passar do tempo, acaba conseguindo estreitar a relação com ele; e Casey Gardner (Brigette Lundy-Paine) é a filha mais nova um tanto quanto rebelde da família Gardner. Na escola, é a protetora número um do irmão mais velho.

Atenção: este texto contém spoilers.

Na primeira temporada, Sam parte em busca de experiências com mulheres e relacionamentos, sempre encorajado pelo seu melhor amigo e colega de trabalho, Zahid (Nik Dodani). A ideia é entender como o amor funciona para depois poder se relacionar com Julia. No meio do aprendizado, ele acaba conhecendo Paige (Jenna Boyd), uma colega de escola que demonstra interesse por ele. Paige é ligada nos 220 v, tem um estilo esquisito, mas é uma pessoa de bom coração. Além da jornada de Sam, a primeira temporada introduz tramas para outros personagens. Julia Sasaki, a terapeuta, está em um relacionamento horrível, depois não está mais, e aí descobre que está grávida — é o plot mais fraco da temporada, e a falta de sal, açúcar e pimenta também se estende para a temporada seguinte.

A família Gardner é, sem dúvida, a grande estrela da série. Casey é uma dedicada atleta de corrida, motivo pelo qual recebe a oferta de uma bolsa de estudos em uma escola particular renomada. Mais comum do que não, a irmã é negligenciada pelos pais em detrimento das necessidades do irmão mais velho — o que é compreensível, mas gera mágoas em uma adolescente que, sem motivo realmente justificado, já ressente a própria mãe. Casey também se envolve romanticamente com Evan Chapin (Graham Rogers), um moço legal com fama de bad boy porque foi expulso da escola por roubar uma tuba. Elsa, por sua vez, tem dificuldades em aceitar que o filho busca independência, pois significa que o seu papel de supermãe é colocado à prova — assistimos Elsa perder espaço para Doug na vida do Sam, além de ser deixada de lado pela própria filha. Em razão disso e talvez de mais, Elsa incorpora uma nova rotina, que inclui trair Doug com um bartender mais novo. Doug é um tanto quanto picolé de chuchu na primeira temporada, faz o papel de pai legal e pai bonzinho, e dá muita pena assistir a Elsa o traindo. Mais tarde sabemos que Doug nem sempre foi um pai legal, tampouco um pai bonzinho: quando Sam é diagnosticado, ainda criança, Doug não sabe lidar com a realidade e decide sumir por meses, abandonando Elsa com um filho autista e uma filha pequena. Em um jantar com um colega de trabalho de anos, sabemos que o diagnóstico de Sam não parece ser algo que Doug deixa explícito para os amigos próximos, diferentemente de Elsa, que frequenta um grupo de mães que levam uma vida parecida com a dela.

Mais madura, a segunda temporada da série traz novos e velhos dilemas para serem diluídos ao longo de dez episódios (dois a mais que a temporada de estreia). No final da primeira temporada, Casey flagra Elsa beijando Nick (Raúl Castillo), e, passivo-agressiva, deixa uma nota no mural da família, levando Doug a descobrir sobre a traição. Por esse motivo, na segunda temporada Elsa é expulsa de casa, onde todos a tratam com frieza e desdém. A mãe busca abrigo na casa de uma amiga, enquanto planeja reconquistar a confiança do marido e dos filhos, o que demonstra ser um trabalho árduo.

Sam, por sua vez, aceita que nada vai rolar com Julia e, por consequência de seus atos, acaba sem suas sessões com a terapeuta, uma vez que profissionalmente ela decide encerrá-las (diferente do código de ética entre terapeuta e paciente de outras séries — sim, Suits, agora falo de você). Sem as sessões individuais, Sam encontra espaço em um grupo de apoio para adolescentes autistas, onde conhece novas pessoas e é incentivado a seguir a ideia de cursar uma graduação. Ele, agora, está focado no seu futuro. Lá fora, Doug, o responsável por apoiar Sam nesse sentido, conhece Megan (Angel Laketa Moore), mãe de uma das adolescentes do grupo de apoio. Eles formam um tipo de amizade, que tem muita chance de se tornar algo mais, embora ele seja casado e tenha recebido, aos poucos, Elsa de volta em casa. Já o casal Sam e Paige sofre altos e baixos, mas proporciona algum dos momentos mais bonitinhos da segunda temporada.

No aspecto paizão, Doug bem que se esforça em estar presente e se aproximar de Sam e Casey, tentando manter com tranquilidade a rotina da família. Mas ele fracassa e isso, somado à dificuldade em lidar com a traição de Elsa (e provavelmente uma ansiedade não tratada), deságua em uma crise de pânico. Em outra escola, Casey a princípio sofre dificuldades para se enturmar, e quando consegue, trata mal Evan e, depois, acaba, sem querer, metida em um triângulo amoroso, sofre por causa de um boato, é jogada para escanteio novamente, perde a amiga, reconquista a amiga, e percebe que talvez sente mais do que amizade pela mesma amiga. É um plot todo embaraçado que pavimenta o caminho para outro melhor, que provavelmente será desenvolvido na terceira temporada.

Em linhas gerais, Atypical é uma série sem grandes mistérios, que pode agradar a gregos e troianos. Criada por Robia Rashid, mente responsável pela produção de How I Met Your Mother e Bad Teacher, a série busca trazer aos holofotes a realidade de pessoas no espectro e também das pessoas próximas. Atypical nem sempre acerta, tendo sido criticada por reforçar estereótipos que transformam Sam em uma caricatura da doença, a falta de atores no espectro no elenco, entre outros. A criadora da série, no entanto, não se fez de morta e levou boa parte das críticas em consideração para escrever e produzir a segunda temporada. O esforço, embora reconhecido, ainda não foi o suficiente, mas abriu espaço e incentivo para continuar com o trabalho. Rashid afirma que Atypical, antes de mais nada, trata-se sobre a comunidade autista, motivo pelo qual, após críticas, procurou introduzir oito atores no espectro no elenco, todos eles participando do grupo de apoio de Sam. Levar em consideração e ouvir a comunidade é algo que nem todos os criadores, produtores e escritores de séries conseguem fazer, então o voto de confiança dado a Robia Rashid é merecido.

O grande protagonista da série, Sam Gardner, é difícil de ler. É com o auxílio da narração do personagem que sabemos um pouco mais sobre o que ele pensa e sobre como sua mente funciona. Sam é metódico, inteligente, organizado; a dificuldade em socializar está presente, e entender sentimentos também, mas ele nada mais é que um adolescente tentando crescer no meio de adolescentes neurotípicos. A sua jornada de crescimento fica mais interessante à medida que Sam se aproxima do fim do ensino médio, e gera curiosidade em saber como será a transição do personagem para a vida acadêmica. Mais do que a escrita, muito do personagem é devido à interpretação de Keir Gilchrist, um ator que não está no espectro, mas que trabalha muito bem e merece o digno reconhecimento.

Para além do autismo, há muito que se dizer sobre a maternidade e sobre o papel da mulher. Casey parece sentir pela mãe um desprezo que jamais se estende ao pai — mesmo quando descobre que ele os havia abandonado e mesmo antes de saber do affair da mãe. A superproteção de Elsa e a dedicação às tarefas domésticas embaçam a visão tanto dos filhos quanto do marido — ela deixa de ser uma pessoa para ser a figura d’A Mãe Que Faz Tudo. A personagem se torna invisível com o passar do tempo. Nem todos são capazes e obrigados a perdoar uma traição, isso é bem verdade, mas ao perder o espaço de Mãe Que Faz Tudo (e realmente fazia), Elsa é rapidamente deslocada para o papel de megera que destruiu a família. Não parece haver muito espaço para consideração e explicação, em especial por parte de Casey e Doug. Não que as atitudes de Elsa sejam escusas, mas existem nuances de cinza em uma situação onde ela é sobrecarregada de responsabilidades familiares e esquecida como pessoa.

A personagem bem que tenta se redimir, utilizando daquilo que faz de melhor: organizar a vida doméstica, dar suporte aos filhos e ao marido, consequentemente negligenciando a si própria. É fácil ficar irritado com as muitas atitudes que a mãe toma (acredite, eu perdi a conta das vezes que mandei a personagem parar de encher o saco), em especial daquelas tomadas diante do filho; uma proteção exacerbada que flerta com o sufoco. E é igualmente simples sentir por Elsa uma compaixão, principalmente na segunda temporada, onde ela é destratada e ignorada por aqueles que também possuem teto de vidro, tendo que aguentar Doug no melhor modo Homem Ogro.

Com uma opção de roteiro pouco convincente, a temporada mais recente joga um possível novo caminho para Elsa, uma chance de poder conviver em família, mas dividir atenção com algo que gosta e tenha interesse, lapidado pela relação com o filho: abrir um salão para crianças no espectro. Pouco se sabe se a ideia vai colar, mas parece ser uma alternativa para lidar com possíveis desentendimentos e/ou uma não reconciliação com Doug, que no último episódio, após prometer ir pra casa conversar com Elsa, aparece pedindo arrego para a amiga/romance em potencial.

Ainda que Casey faça birra, volte e meia tenha espasmos de adolescente rebelde sem causa e seja rude, a personagem bem que entrega algum dos momentos mais bonitos da série. Às vezes, sendo a irmã-inimiga-mas-também-protetora de Sam, em cenas delicadas e de pura cumplicidade; às vezes, com a relação que tem com Doug. Mas é na segunda temporada que a personagem tem destaque: o plot da evolução e da descoberta de sua própria sexualidade já possui seus momentos especiais e abre um leque para um possível desenvolvimento interessante, se bem feito. Personagens bissexuais ainda são mal representados na mídia, então nos resta esperar que Atypical saiba explorar essa história.

A TV, como forma de transmitir informação e entretenimento, é uma ferramenta muito acessível e por isso não deve, nem pode, se manter estagnada no que é considerado “comum”, “normal” ou “típico”. É necessário que ela seja cada vez mais inclusiva, que busque representar o mundo que existe fora das telas. Se Atypical nem sempre acertou, não se pode negar que ela não tenha buscado, e venha buscando, vozes para deixar a ficção um pouco mais fiel à vida real.

A roupagem de Atypical é de uma série leve e agradável, um abraço quentinho, que trata de assuntos relevantes, embora nem sempre da forma correta. Tem drama e alívios cômicos o suficiente para agradar e entreter. Aprendendo com os erros e com um elenco adorável, a série tem grandes chances de crescer e se tornar cada vez melhor da maneira que já vem fazendo. Apesar de não ser perfeita, Atypical é realmente gostosa de assistir. Os personagens são envolventes e a trama também. É impossível não se interessar pelos personagens, difícil até não criar certo apreço por eles, apesar dos erros e dos acertos que eles cometem. Com episódios de pouco mais de vinte minutos, ela consegue ser uma ótima opção para todo momento, principalmente quando a gente já saturou de assistir Grandes e Obscuras produções da televisão e dos serviços de streaming. Atypical é um dos nomes interessantes do catálogo da Netflix e a experiência de assistir a série valeu demais para mim. E talvez, quem sabe, ela também valha para você.


* A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

7 comentários

  1. Adorei vocês falando sobre essa série aqui, concordo plenamente que é um série super gostosa e ao mesmo tempo consegue abordar assuntos tão delicados. Eu além de amar o tema, trabalho com autismo e achei bem injusta as varias criticas (não daqui) que reforça o estereótipo do Autismo. Pelo ao contrário, aquele padrão super gênio (the good doctor) por exemplo acho muito mais disfuncional ou aquele autista super inflexível e de difícil trato e mestre em decorar coisas (rain men). A série mostra características que são bem características do espectro.

    Outro ponto, curti muito a análise sobre a mãe e engraçado que quando eu assisti eu pensei: nossa! Como eles pegaram pesado com a mãe.
    No universo autista constantemente existem pessoas que culpam a mãe, indireta ou indiretamente. E nesse ponto achei que eles reforçam o estereótipo. Para vocês terem noção já existiram até teorias psicológicas que acreditavam que o autismo era proveniente da rejeição materna. Claro que isso foi na visão da psicanálise que sempre coloca a culpa na mãe.

    1. Renata, fico muito feliz em ler teu comentário. Como falei sobre um assunto que não é do meu convívio direto, tentei pesquisar o máximo que pude sobre a recepção da série. Não fazia ideia de que ela tinha sido tão criticada, mas entendo que não é algo que eu poderia medir porque não tenho a mesma vivência dessas pessoas. Mas fico contente em saber que você gosta da série!

  2. Só arrumando um parte ali no comentário que ficou confuso na hora que eu falo dos esteriótipos. Eu acho que a série não reforça alguns estereótipos que acredito ser mais disfuncional como: rain men e the good doctor.

  3. Ps: odeio escrever no celular textos maiores, sairam alguns errinhos mas deu para entender rsrs

  4. ótimo texto! uma dica: o termo correto para pessoas fora do espectro de autismo é neurotípico, sem o “a”

  5. adorei a análise sobre a mãe, tipo, eu sei que o que ela fez foi bem errado, mas pô, achei muito paia crucificarem a mãe sendo que o pai já foi um tremendo babaca ao abandonar por 8 meses a família na época que a Elsa mais precisou (e a Casey imediatamente perdoou o pai) o que me fez lembrar do discurso da advogada no filme ”História de casamento”. Nesse discurso ela fala sobre a cobrança de perfeição sobre as mães que acontece na sociedade, enquanto que aos pais são permissíveis falhas, e eu refleti mt sobre isso pq comecei a assistir Atypical dps de ver esse filme maravilhoso. Fiquei com pena da Elsa pq apesar do q fez ela é uma mãe q sempre se doou por completo e com muito amor pelos filhos, e espero que a personagem seja cada vez mais desenvolvida ao longo da trama.

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