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Angela, à beira da complexidade

Em 1976, a socialite brasileira Ângela Diniz foi assassinada com quatro tiros à queima-roupa pelo namorado, o empresário Raul Street, conhecido como Doca Street. Disponível no Prime Video e dirigido por Hugo Prata (Elis), Angela mergulha na história de um dos crimes mais famosos do Brasil, que deu origem a um dos julgamentos mais emblemáticos do país.

Estrelada por Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes, a produção, lançada quase cinquenta anos depois do ocorrido, chega em um contexto social onde, ao menos, o final dessa história poderia ser diferente; porém, apesar da atuação impressionante da protagonista, perde em desenvolvimento de roteiro e se mostra um mero esboço de todo o seu potencial. Isso porque, Angela inicia o arco de sua personagem principal no que parece ser a metade de sua história, uma vez que Ângela Diniz possuía uma vida muito agitada e complexa mesmo antes de conhecer Raul Street, o que a produção apenas tateia muito por alto ao abordar a luta da mulher pela guarda dos filhos de seu primeiro casamento.

Roteirizado por Duda de Almeida, o filme chega a retratar a frustração de Ângela por ter pedido contato com as três crianças, mas decide fazer o recorte na “paixão avassaladora” do casal principal, que larga tudo para reconstruir suas vidas na famigerada Praia dos Ossos, em Búzios, e rapidamente vê a aventura desmoronar em razão de episódios frequentes de violência doméstica.

Angela

Implicitamente, pela quantidade de cenas de sexo, brigas e óbvia dependência emocional, é como se todo esse sentimento de Angela e Raul fosse tão acentuado que só pudesse resultar em um final dramático e trágico, como se uma coisa estivesse intrinsecamente ligada a outra. No entanto, falta uma ambientação, um pano de fundo para a profundidade que Isis Valverde expressa em tela, uma vez que a história da Ângela do cinema é drasticamente reduzida a este relacionamento.

É como se a produção não se decidisse se o filme foi feito para aqueles que conhecem a história na qual se baseou, recentemente revisitada por podcasts de crimes reais, como o Modus Operandi, apresentado por Mabê Bonafé e Carol Moreira, e Praia dos Ossos, apresentado e idealizado por Branca Vianna, que se aprofunda devidamente em todos os aspectos da complexa vida de Ângela Diniz, a mulher de antes do crime; ou, para quem não está a par dos detalhes verdadeiros do acontecimento. Em ambos os casos, o espectador sai perdendo. Apesar da competência técnica no que diz respeito à direção, ambientação, direção de arte e atuação, é como se “faltasse filme”, como se faltasse mergulhar de fato em Ângela e não em Ângela e Raul, pois já se conhece o que vem daí, por mais que exista a urgência de abordar a questão da violência doméstica no Brasil, onde, com uma mulher morta a cada seis horas, foi registrado recorde de feminicídios em 2022.

Esta mulher de antes do crime, tão formidável por sua beleza, que chegava a ser objetivada ao modo da época, e de personalidade difícil, mas arrebatadora de todos com quem convivia, talvez carregasse em si mais da mulher em que Isis Valverde se aprofunda em sua atuação. Participante assídua dos altos círculos sociais de Minas Gerais, conhecida pela aparência que a levou a participar de concursos locais, Ângela se casou pela primeira vez aos 17 anos com Milton Villas Boas, que tinha 32 anos. Frustrada com a vida conjugal monótona e monogâmica, logo o casamento, que gerou três filhos, se tornou consensualmente de fachada.

Uma vez que o chamado desquite era mal visto — e, mesmo o divórcio, ainda carrega até hoje o peso do julgamento social e estigma, especialmente para as mulheres —, Ângela e o marido passaram a viver separadamente, sob o combinado de que fossem discretos em suas aventuras extraconjugais, o que envolvia, segundo relatos, abuso de drogas e álcool em grandes festas da época e relacionamentos diversos, inclusive com homens casados. Ou seja, ela vivia a vida ao seu modo, conforme padrões próprios e sem se importar com os boatos ao seu respeito, o que, para a época, era considerado escandaloso.

Angela

A socióloga e amiga, Jacqueline Pitanguy, conta no livro Feminismo no Brasil: Memórias de Quem Faz Acontecer (2022), que Ângela não era ligada aos movimentos feministas emergentes, embora fosse uma mulher “à de frente de seu tempo” no que dizia respeito aos padrões conservadores da época, especialmente nos círculos em que vivia, onde as mulheres respeitáveis eram casadas e inevitavelmente domesticadas pela vida familiar. “Não creio que Ângela se autoidentificasse como feminista. Ela não atuava no movimento, nem tinha igualdade de gênero como bandeira de luta. No entanto, estava à frente de seu tempo na pauta da moral e dos costumes e se sentia para se relacionar fora dos padrões convencionais da época. Essa liberdade era uma forma de empoderamento da mulher”, conta.

Assim foi até 1973, quando o caseiro da residência onde Ângela morava em Belo Horizonte, José Avelino, apelidado de Zé Pretinho, foi assassinado com um tiro. Aos 18 anos, ele foi encontrado no jardim da casa com a braguilha aberta, sêmem na calça e uma faca na mão. A socialite, como de costume, novamente figurava nos jornais, mas, dessa vez, de maneira muito mais comprometedora do que quando aparecia nas colunas sociais simplesmente como “festeira”, principalmente porque, no primeiro momento, assumiu a autoria do crime.

Contudo, durante as investigações, as autoridades policiais descobriram que havia outra pessoa no local no momento do ocorrido e, como o mundo é cheio de coincidências e a vida de Ângela repleta de histórias bombásticas, esta era Tuca Mendes, ou seja, Arthur Mendes Júnior, herdeiro da empreiteira Mendes Júnior, de quem Ângela era amante. Em depoimentos posteriores, ela contou que assumiu a culpa porque não queria prejudicar o casamento de Tuca, o qual, depois, alegou ter matado o caseiro porque estava observando Ângela às escondidas enquanto se masturbava.

Apesar de o julgamento do caso ter ocorrido apenas depois da morte de Ângela, o episódio resultou na perda da guarda dos três filhos para o ex-marido, de quem já estava desquitada à esta altura, após ser escrutinada pelo olho da imprensa e do público, o que marcou para sempre a sua história, tendo em vista que, embora fosse considerada uma boa mãe por pessoas próximas, a fama de “libertina” cresceu em razão do assassinato do caseiro, se sobrepondo aos fatos e a ligação com as crianças, com as quais passou a ter contato limitado, especialmente após se mudar para o Rio de Janeiro.

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A ponte entre a Cidade Maravilhosa e Belo Horizonte foi palco para mais um dos dramas da vida de Ângela que, após visitar os filhos em 1974, resolveu, sem autorização do pai e responsável legal, levar Christina, para sua casa no Rio de Janeiro, o que fez com que fosse acusada de sequestro e, consequentemente, recebesse uma condenação de seis meses de prisão.

Segundo uma amiga da época, Kiki Garavaglia, Ângela só pensava nos filhos e entrou em um “processo autodestrutivo” por conta da perda da guarda e falta de contato. De acordo com ela, a socialite falava com Christiana várias vezes ao dia, às escondidas do ex-marido, e acreditava ser uma fase que passaria, até conseguir tê-los junto consigo novamente.

Ocorre que, nos anos 70, dificilmente as leis eram feitas para proteger as mulheres ou, mesmo, as condições mais intrinsecamente femininas, como a própria maternidade. O direito da mulher estava condicionado à reputação daquela que o rogava e Ângela era, constantemente, prejudicada por sua postura. Além de mãe, era uma mulher livre, mas os padrões conservadores a condenavam, jurídica e socialmente, em todas as instâncias. Kiki Garavaglia conta que “a chamavam de puta, mas o que ela era, sim, era uma puta mãe” e a própria Christiana Diniz, filha dela, disse à Folha de São Paulo, que sempre teve orgulho da mãe: “Ela era uma mulher de vanguarda. Ela fazia o que bem entendia. Apesar de toda a dor que passamos, eu tenho o maior orgulho de ser filha de Ângela Diniz”.

Com esses acontecimentos e outros, tão emblemáticos quanto (como o boato de o ex-marido ser gay), que a transformaram em quem era, Ângela já era uma mulher com muita bagagem no alto de seus 32 anos. Além da postura que parecia sempre precisar de defesa pública e de despertar opiniões diversas, também carregava consigo escolhas questionáveis, comportamentos tóxicos e uma eterna frustração pela situação com os filhos.

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Em detrimento disso e da solidão intrínseca, apesar de se encontrar rodeada de pessoas, era como se tentasse continuar a ser, ao menos em aparência, a intitulada Pantera de Minas, apelido público que ganhou do namorado, o colunista social, Ibrahim Sued, com quem estava quando oficialmente conheceu Raul Street, em 1976.

É difícil acreditar que, sob todo esse contexto, ele já não tivesse, ao menos, ouvido falar dela. Havia um fascínio instantâneo sobre sua figura, tanto dos homens quanto das mulheres, que a cercavam, e com Street não poderia ser diferente, o que é retratado na atuação de Gabriel Braga Nunes. Ademais, todos esses problemas pareciam fazer parte da construção da personalidade da mulher lindamente melancólica e perturbada.

Neste sentido, falta muito dessa Ângela à Ângela do cinema, por mais que Isis Valverde claramente tenha se aprofundado nela para criar seu retrato. Histórias como o “rapto” da filha e o ex-marido com quem tinha desavenças são mencionadas no filme de 2023, mas apenas vagamente em uma tentativa de conferir contexto à mulher que sente “estar voando ou caindo”, a depender dos altos e baixos que ditam seus dias.

Se, por um lado, pouco é mostrado da verdadeira personalidade de Raul Street, para além do fato de ter abandonado a esposa, Adelita Scarpa, e os filhos, para ficar com a Pantera; por outro, muito se vê da referida “paixão avassaladora” na produção. No entanto, o abuso de drogas e álcool, admitido por ele, bem como eventuais traições da parte da socialite ou mesmo a complexidade da misoginia que cercou o relacionamento e, posteriormente, o julgamento, são deixados de lado, embora sejam camadas que tenham tornado a história real verdadeiramente simbólica — muito mais do que o biquíni com “estampa de pantera” que Ângela usava no dia de sua morte.

O julgamento de Raul, três anos depois, movimentou tanto a sociedade quanto as organizações feministas da época e, por mais que a produção trate o caso como feminicídio, deixa de abordar o que se seguiu, jurídica, social e midiaticamente, após o assassinato e que reverberou até os dias atuais, pois o terceiro ato se resume a mostrar o personagem de Gabriel Braga Nunes na prisão com um breve texto, que explica o contexto de sua condenação, após uma cena rasa de assassinato.

Em 1979, a defesa de Street, durante o primeiro Tribunal do Júri televisionado da história, levantou a tese da legítima defesa da honra, ou seja, Ângela o provocava frequentemente e mantinha relacionamentos extraconjugais; assim, havia motivado o crime. A reputação “escandalosa” da mulher foi o pano de fundo para tornar Doca Street quase um herói nacional. Embora réu confesso, se tratava de um “homem trabalhador”, que havia cometido o crime em um momento de passionalidade, onde perdera o controle por um instante. Com a misoginia levantada pela defesa estampando as páginas da imprensa, uma charge no jornal O Pasquim satirizava, de maneira certeira e tristemente revoltante, que estavam “quase conseguindo provar que Ângela matou Doca”.

Ainda que o julgamento tivesse tomado um rumo absurdo, especialmente para os dias atuais, protestos e vigílias encabeçadas pelo movimento feminista ganharam as ruas sob o lema “Quem Ama Não Mata”, popularizado em razão do crime cometido contra Ângela. Contudo, com um júri formado por cinco homens e duas mulheres, a tese, que não possuía nenhuma base jurídica penal, utilizada meramente para desqualificar socialmente a vítima, inacreditavelmente convenceu e o assassino ganhou uma pena simbólica de pouco mais de dois anos. Considerando o tempo de prisão preventiva antes do julgamento e a natureza culposa do crime, quando não há intenção de matar, uma vez que a vítima, em tese, deu causa ao fato, o réu deixou o Tribunal livremente. Apenas em 1981, após recurso da Promotoria do caso, Raul Street foi condenado a mais de 15 anos de reclusão por homicídio qualificado e quarenta e sete anos depois do crime, e somente em 2023, o Supremo Tribunal Federal invalidou a tese da legítima defesa da honra, a considerando inconstitucional.

Durante seu voto, a Ministra Rosa Weber, então presidente da Corte, ressaltou que a utilização da teoria jurídica “traduz a expressão de valores de uma sociedade patriarcal, arcaica e autoritária”, especialmente em razão de costumes que, historicamente, desde as Ordenações Filipinas, condenam a liberdade feminina, condicionando as mulheres a patriarcalismos morais limitantes:

“12. Na realidade, até pouco, a legislação penal brasileira ainda tutelava apenas a castidade feminina e não sua dignidade sexual, trazendo figuras delitivas destinadas à proteção da ‘mulher honesta’ (CP, 215, 216, 219, redação original) e da ‘mulher virgem’, espécies delitivas cujo objeto não era a preservação da liberdade sexual feminina, mas apenas a defesa de costumes, tanto que capitulados como ‘crimes contra os costumes’.” 

Enquanto isso, a Ministra Carmén Lúcia relembrou o caso Ângela Diniz e ressaltou que o uso da tese retrata uma “sociedade machista, sexista e misógina que mata mulheres apenas porque elas querem ser o que são, donas de sua vida”, comentando que a violência contra a mulher se tornou “endêmica” no Brasil, pois, ainda hoje, a figura feminina é tratada como “coisa”, podendo ser, portanto, posse de alguém:

“Eu digo que essa tese da chamada legítima defesa da honra é mais que uma questão jurídica, é uma questão de humanidade. Nós, mulheres, continuamos a ser tratadas — e esta tese é adotada ainda com frequência, tanto que chegou a este processo aqui — como coisa. E como coisa há que se submeter objetivamente, como objeto, ao poder de mando de alguém, inclusive para a destruição.”

Jacqueline Pitanguy reflete que, no caso de Ângela, a pressão pública encabeçada pelo movimento feminista foi essencial para o desfecho, mesmo com o desastroso primeiro Tribunal do Júri:

“A atuação do movimento feminista foi fundamental para a condenação de Doca Street e, também, para uma mudança cultural sobre crime e castigo no âmbito das relações entre homens e mulheres. No primeiro julgamento, não só a Justiça condenou a vítima, como a própria imprensa retratou Ângela como uma mulher que merecia ter sido assassinada porque seu comportamento não se enquadrava nos padrões da mulher recatada e do lar, prevalentes na sociedade”. 

Neste contexto social, cultural e jurídico envolvendo o crime e a complexidade de Ângela Diniz como mulher na sociedade dos anos 60 e 70, a atuação impecável de Isis Valverde, bem como a direção e direção de arte, esbarram em um roteiro pouco profundo, que parece desconsiderar tanto a contar e a dizer sobre violência doméstica e feminicídio, a resumindo aos quatro e intensos meses que levaram à sua ruína, sem se preocupar em retratar suas verdadeiras raízes, resultando, infelizmente, em uma produção de pouco impacto no cinema nacional.

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