Como heranças imateriais, as histórias antigas — aquelas contadas por nossos antepassados ou as que permanecem nas bibliotecas ao redor do mundo século após século — ressurgem constantemente em narrativas contemporâneas. Elas podem ser adaptadas, recontadas; muitas vezes, a presença da história original não é tão explícita e o que se repete é o tema, a premissa, as motivações dos personagens ou outros elementos narrativos que são revisitados porque, não importa quão antigos sejam, ainda dizem algo sobre a sociedade ou o grupo em que vivemos: valores, crenças, visões do passado, perspectivas de futuro, etc.
A partir disso, pensei sobre como a persistência dessas histórias pode ser percebida no cinema de ficção científica, um gênero que costuma desenhar o futuro para revelar o presente. E enquanto refletia sobre a representação da mulher nesses filmes, em específico sobre robôs, andróides, inteligência artificial criada para assemelhar-se à mulher tanto em aparência quanto no comportamento, lembrei-me do mito grego de Pigmaleão e Galateia.
Conta-se que Pigmaleão foi um escultor que, por causa de seu desprezo às mulheres, esculpiu em marfim a mulher que lhe seria ideal. A escultura impressionava por sua perfeição e semelhança a uma pessoa de carne e osso. Pigmaleão encantou-se por sua própria criação e, apaixonado, pediu à deusa Afrodite que concedesse a ele uma mulher igual a estátua. A deusa, em vez disso, deu vida à própria estátua, que tornou-se humana. Pigmaleão chamou-a Galateia e, assim, finalmente pode ter como companheira a mulher de seus sonhos.
A imagem de Pigmaleão fascinado pela estátua facilmente evoca o cientista absorto no processo de criação, enfeitiçado pelo futuro despertar de sua obra, ela que é uma sombra ou parte de si mesmo, relembrando, principalmente, a relação criador-criatura, que se torna mais forte quando a criação é “uma mulher”, e como ela se manifesta em filmes de ficção científica. No clássico alemão Metrópolis (1927), o cientista Rotwang (Rudolf Klein-Rogge) desenvolve um robô humanoide com o objetivo de reviver Hel, sua amada, falecida ao dar à luz o filho de seu inimigo, Joh Fredersen (Alfred Abel). Ainda que, posteriormente, e a mando do próprio Fredersen, Rotwang tenha dado ao robô a aparência de outra mulher (a protagonista, Maria, interpretada por Brigitte Helm), sua obsessão por Hel continua e, em certo momento do filme, impõe-se sobre Maria, quando ele a assedia.
Anos mais tarde, na década de 1980, o filme Mulher Nota 1000 (1985) conta a história dos adolescentes Gary (Anthony Michael Hall) e Wyatt (Ilan Mitchell-Smith), que são considerados losers pelos colegas da escola e sofrem bullying. Um dia, eles criam, no computador, uma “mulher ideal” que, por acidente, torna-se humana. Linda, inteligente e capaz de lançar poderes, a jornada de Lisa (Kelly LeBrock) é cuidar dos garotos e ajudá-los a serem mais confiantes.
Nesses filmes, o desejo da criação científica ganha corpo e significado de mulher, ou melhor, de feminino: aquilo que é social e historicamente definidor do que é uma mulher — o corpo, as ideias, os desejos, o ser. Aos robôs é atribuído um gênero, portanto, são programados para se tornarem aquele gênero, assim sendo objetos dos propósitos e fetiches de seus criadores, nada mais que um punhado de ficções criadas sobre ser mulher pela perspectiva masculina.
Em Ex Machina (2014), Ava (Alicia Vikander) é uma IA (Inteligência Artificial) que passa por um teste para avaliar sua equivalência em relação à inteligência humana. Para isso, seu criador, Nathan (Oscar Isaac), convoca o programador Caleb (Domhnall Gleeson) para que ele interaja com Ava. Com o tempo, Caleb acaba se apaixonando por Ava e elabora um plano para que ela fuja com ele. O que seria uma forma de enganar Nathan, na verdade, não só estava previsto como programado: no teste, Ava usaria Caleb para fugir. Por isso, a própria Ava fora planejada para usar “autopercepção, imaginação, manipulação, sexualidade, empatia” para conseguir escapar. Caleb, por sua vez, cai na armadilha de seus próprios desejos.
No mesmo filme, há Kyoko (Sonoya Mizuno), outra IA que só revela sua verdadeira natureza depois de uma hora de filme. Até lá, ela é a companheira de Nathan, andando pela casa em saltos altos, vestidos curtos e maquiagem, silenciosa, realizando serviços domésticos e pronta para satisfazer Nathan sempre que ele queira. Dessa maneira, tanto Ava quanto Kyoko são criadas para condizer com designações de gênero, de modo a corresponder com os anseios dos homens da trama. O mito de Pigmaleão, portanto, renova-se continuamente. Ele dá voltas, é despedaçado, remontado, mas continua a ter o seu espaço na ficção.
O mito, no entanto, pode não se ater apenas à ficção. Em 2019, a EQUALS Skills Coalition, organização voltada para a promoção da igualdade de gênero no ramo da tecnologia, publicou, juntamente com a UNESCO, o documento I’d Blush if I Could: Closing Gender Divides in Digital Skills Through Education, em que consta um estudo sobre como o desenvolvimento de assistentes de voz estaria atravessado pela desigualdade de gênero. Em linhas gerais, assistentes como Siri (Apple), Alexa (Amazon), Google Assistant, entre outras, elaboradas por equipes compostas majoritariamente por homens, são conscientemente desenvolvidas de forma feminizada: suas vozes, nomes, pronomes e, em alguns casos, imagens, são (ou como socialmente entendemos ser) de mulheres.
Aliado a isso, em suas configurações anteriores, as assistentes respondiam de forma subserviente ou paqueradora a insultos e menções explicitamente sexuais. Embora, mais tarde, algumas empresas tenham alterado essas configurações (adicionando vozes masculinas ou respostas mais evasivas aos desaforos), o documento aponta que a associação direta das assistentes de voz ao feminino também contribui para a manutenção de estereótipos a respeito da condição das mulheres como subservientes, prestadoras de serviços ou passivas em situações desrespeitosas.
Se a ficção ao mesmo tempo que reflete, pode ir além da realidade, ao menos em Ex Machina, Ava e Kyoko terminam por resistir à sua condição de subalterna, utilizando suas programações para se virarem contra aqueles que buscavam fazer delas objetos de desejos. A relações entre Pigmaleão e Galateia é abalada, e eles não ocupam mais o lugar mesmo lugar de antes. Assim, a criatura nega a ficção imposta sobre ela. Talvez, dessa maneira, se faça a ficção: de ciclos infinitos de afirmação e negação, de tal modo que são igualmente infinitos os caminhos que podem ser abertos. Porque, afinal, a ficção permite recriar o ontem, ponderar o hoje e imaginar o amanhã. Gosto de pensar que nós, no breve instante que é o presente, se levamos o passado numa mão, com a outra podemos tocar o futuro. Quem sabe seja exatamente por nossa relação com o que já foi, que se faça possível pensar no que será.