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Desalma é a Ucrânia fora da Ucrânia

Não é de se admirar que uma série que trate do mistério envolvendo a morte de uma jovem seja caracterizada como drama. Quando eventos inexplicáveis ocorrem com os personagens, essa trama passa a ser classificada como um drama sobrenatural. É assim que Desalma, seriado de Ana Paula Maia para o Globoplay, foi divulgado, embora os trailers e teasers dessem a entender que a história tinha inclinação ao terror.

Atenção: este texto contém spoilers!

Na cidade de Brígida, localizada em algum lugar do interior da região Sul do Brasil, Roman (Nikolas Antunes) se suicida numa cachoeira. É a partir daí que a série se desenvolve em um suspense dramático sobrenatural que corre em duas linhas de tempo paralelas para revelar segredos ligados a três situações distintas: o motivo do suicídio de Roman, o comportamento errático do garoto Anatoli (João Pedro de Azevedo), e o que realmente aconteceu na noite do festival de Ivana Kupala trinta anos antes, quando a adolescente Halyna (Anna Melo) foi assassinada em um lago.

Junto à claustrofobia rural, Ana Paula Maia traz em sua obra também um fundo de grotesco, um caipirogótico aos melhores moldes do Southern Gothic estadunidense. Embora num tom mais ameno que em suas outras obras literárias, num primeiro momento Desalma parece permeada pelo estilo brutal da já consagrada autora de romances. Um estilo que liga o ser humano intimamente aos animais. Em Desalma são os porcos criados por Ivan Burko (Bruce Gomlevsky), que em seguida são abatidos no frigorífico de seu irmão Bóris (Ismael Caneppele). Os suínos são atormentados durante toda a temporada por comportamentos bizarros permeados pelo sobrenatural. São também uma metáfora de contraponto do estilo de vida da “estranha” Giovana (Maria Ribeiro), a viúva de Roman, com os costumes da cidadezinha. Apesar de vegetariana, ela vai trabalhar no frigorífico.

A série faz muitas referências a clássicos de terror e horror mundial, mas não admite que possam existir boas produções de um terror nacional para inspiração. Assim, Desalma não parece querer reconhecer a ficção televisiva de bruxas brasileiras da qual é herdeira, embora tome para si conceitos que já figuraram nelas. A cidade de imigrantes que tem habitantes ligados à bruxaria como pano de fundo é similar ao enredo de Eterna Magia, telenovela de Elizabeth Jhin de 2007. Apenas se troca Minas Gerais pelo sul do país e a ascendência irlandesa pela ucraniana. É até mesmo Cássia Kis quem interpreta ambas as bruxas más das cidadezinhas, Haia em Desalma e Zilda em Eterna Magia. Em Ilha das Bruxas (1991), minissérie de Paulo Figueiredo na extinta Rede Manchete, uma ilha no litoral de Santa Catarina é impregnada por bruxas que influenciam a população masculina. A minissérie surpreende pelo horror grotesco e pesado.

Já o terror e o sobrenatural de Desalma vão se diluindo ao longo dos episódios — junto aos sotaques sulistas dos personagens, que se perdem no decorrer da trama — e dão lugar a um drama policial. O suspense acaba girando em torno do segredo que há entre as duas famílias e a descoberta da transmutação de almas de Roman, que tem uma revelação aos moldes da literatura de detetive.

Numa atmosfera escura e fria, com fotografia remetendo às séries policiais europeias importadas pelo serviço de streaming Globosat+, Desalma vai de encontro ao que vem sendo feito no audiovisual do Brasil nos últimos tempos. A série deixa de lado o regionalismo e o microcosmo brasileiro e parte para uma ambientação genérica internacional com tendência leste europeia, prato cheio para os que reclamam que no país não há teledramaturgia de qualidade.

Não há o que falar das partes técnicas do seriado, produzido com cuidado aos detalhes e atenção do Grupo Globo. Além disso, é clara a tentativa de aproximação ao estilo de produção Netflix, tanto que o alemão Alexander Wurz foi chamado para assinar a sonoplastia (os efeitos sonoros de cena), após seu trabalho no seriado Dark. Quanto à trilha sonora, surpreende que ela seja completamente alheia ao sons que figuram nas rádios no nosso país, o que ajuda mais nesse deslocamento de localização. Nem mesmo os jovens de nenhuma das duas gerações se envolvem com músicas famosas e a série não se rende à nostalgia dos anos 1980, com o punk sendo relegado apenas ao vilão Aleksey (Nicolas Vargas) e seus Sex Pistols.

Nesse ponto, impossível não comparar com a recente Boca a Boca, série que figura um universo adolescente mais completo e menos adultizado. Guilherme Amabis não mediu esforços, inserindo diversos artistas “indies” brasileiros na trilha sonora do seriado da Netflix. Já Alexandre de Faria, ao contrário, optou por deixar de lado as músicas em português, trazendo para Desalma músicas tradicionais ucranianas, além do pop atual daquele país e da Rússia. A única música brasileira é primorosa em cena — “Boy Do Subterrâneo”, de 1986, da banda punk rock de Porto Alegre Os Replicantes —, além da versão exclusiva de “Tainted Love” (música famosa dos anos 1980 de Soft Cell) por Sepultura.

Com ajuda da trilha sonora, a construção de personagens vai para um lado fácil onde os adolescentes ligados às tradições são mocinhos e os que querem algo além da pequena comunidade são capazes de atos sórdidos, se tornando consequentemente vilões. O relacionamento amoroso entre Roman (Eduardo Borelli) e Bóris (Lucas Soares), embora real, é maculado pelo desfecho final, o crime que comentem para guardar seu segredo, e faz com que a série entre no campo do preconceito estereotipado.

Existe um grande histórico de demonização de pessoas queer e vilanização de homossexuais em tela. Durante décadas muitos vilões foram concebidos com “códigos queer, com comportamentos que ligavam psicopatia à orientação sexual de forma discriminatória. Isso também era baseado na ideia de que o “homossexualismo” e o “transsexualismo” eram em si patologias que tinham que ser curadas — os “-ismos” eram sufixos usados no passado justamente ligando essas sexualidades e identidades de gênero a doenças —, enquanto o “lesbianismo” era ligado à “histeria feminina” e “desvios de conduta”.

Essas visões tiraram a vida de milhares de pessoas da comunidade LGBTQIA+, além de levar outros milhares a definharem em presídios e manicômios apenas por existirem. Não é proibido que vilões sejam queer, mas ao se conceber uma história assim é necessário considerar esse histórico de luta de igualdade e não patologização de orientações sexuais e transgeneridades.

Roman e Bóris são revelados como os cúmplices de Aleksey no assassinato de Halyna. Eles não só não a salvaram como a deixaram morrer, tudo por uma foto dos dois dos juntos que escancara a homofobia enraizada de Halyna. Por não ter nenhuma outra contraparte queer apresentada durante os dez episódios da temporada, o texto acaba fazendo um desserviço. Na boa oportunidade de “consertar” esse deslize na nova geração de jovens, o enredo se distrai em romances corridos e desnecessários, sem representação ou importância alguma para a trama.

O assassinato por parte de Aleksey cobre o importante assunto do feminicídio. O moço pensa ter direito sobre Halyna, mesmo que a adolescente afirme diversas vezes que não o quer. Halyna é assassinada por ser mulher e exercer seu direito de não querer. A lei que criou o crime de feminicídio no Brasil veio só em 2015, prevendo punições mais severas aos assassinos, 27 anos depois do ano em que Halyna morreu. Na trama Aleksey ficou apenas sete anos preso. Se o crime ocorresse hoje sua reclusão seria de pelo menos 12 anos.

Com essas informações é possível entender o desfecho da bruxa Haia e o sentimento de vingança que permeia a morte de Halyna. É mais revoltante ainda quando se revela que Roman e Bóris, além de assassinos, eram chantagistas. O dinheiro que fez com que as famílias Burko e Skavronski prosperassem veio diretamente do assassinato da moça.

O ponto alto do seriado fica a cargo de Cláudia Abreu e Cássia Kis, gigantes não só em nossa dramaturgia como em toda cena que figuram. As duas interpretam mães tentando salvar seus filhos, dispostas a tudo para isso. Abreu e Kis “engolem” todos os personagens e atores com quem contracenam e dão um show de interpretação com um texto muita vezes didático e expositivo. O que ocorre principalmente em cenas da bruxa Haia, que tem que revelar e explicar cada reviravolta para o público e outros personagens nos mínimos detalhes.

São os jovens atores que mais sofrem com o texto, parecendo quase mecânicos ao se relacionarem. As cenas em que estão juntos parecem saídas de um livro jovem adulto genérico estadunidense. O uso de cigarros, objeto em cena usado para mostrar a rebeldia dessa fase, vira uma representação vazia e cansada. Os núcleos adolescentes ficam um tanto deslocados dos adultos e até mesmo das crianças (ambos muito bem em cena), já que a direção de cena e de fotografia é sempre limpa e esteticamente agradável em comparação à direção de atores, que parece praticamente inexistente.

A mitologia de Desalma é repetida incessantemente e de forma exaustiva para explicar a transmutação de alma e as maucas. Mas falta a exposição mais importante: a certeza crível de que esse tipo de comunidade ucraniana realmente existe dentro do interior do Brasil. A série peca muito na falta de expositividade entre as relações culturais ucranianas e o resto do país. É necessário que as pessoas que nunca tiveram contato com essa comunidade entendam que a festa de Ivan/Ivana Kupala realmente é celebrada em cidades do interior do Paraná e do Rio Grande do Sul com grande população de descendentes de ucranianos. Mas também era necessário mostrar que a festa hoje se sincretiza com a tradicional festa junina em homenagem a São João Batista, a mesma que ocorre por todo país. Não há nada mais tipicamente brasileiro que o sincretismo.

Assim como acontece com os descendentes de japoneses, o Brasil é o país a abrigar a maior população de descendentes de ucranianos fora da Ucrânia. Porém, a cultura japonesa e de outros países europeus de imigrantes como Itália e Alemanha são muito mais normalizadas entre a população brasileira.

O choque entre a comunidade ucraniana e o resto do país não acontece na série. Giovana, a personagem de Maria Ribeiro, é concebida de forma rasa. Ela aceita e é aceita como parte daquela cidade sem questionar os hábitos dos cidadãos, provavelmente muito diferentes dos que está acostumada como paulistana. Uma cidade que não tem nada de Brasil, onde mesmo num inverno europeu as garotas têm de usar saias no uniforme da escola, já é de cara corriqueira para Giovana e as filhas, que não apresentam problema algum de adaptação. Nem o sotaque teoricamente diferente das garotas é notado, a primeira coisa a se perceber em uma mudança tão grande de um estado da federação ao outro (o que também se deve ao fato de nenhum dos personagens apresentar sotaques). O único estranhamento da personagem vem dos eventos sobrenaturais que a cercam, não dos outros personagens. É ainda indefensável pensar em mais uma oportunidade perdida de inserir diversidade com a família de Giovana. Num país com uma população de mais de 54% de pessoas declaradas negras, um seriado completamente branco é uma afirmação clara do desprezo em situar a trama no Brasil.

A trama de Giovana tenta, mas não consegue retratar um paralelo entre ela e os imigrantes ucranianos. Ao contrário, o que ocorreu com os imigrantes ucranianos de Brígida ao virem para o Brasil foi um total antagonismo. Segundo a história exposta por Ignes (Cláudia Abreu), essas pessoas chegaram sem nada, sem apoio, não ganharam as terras que lhes foram prometidas e tiveram que vender suas filhas para bordéis. É certo que até hoje em muitos lugares o interior brasileiro se parece com um faroeste, uma terra sem lei, no que a própria autora se inspira. Mas a fala de Ignes denota o descontentamento dela com sua própria origem e o país onde mora, além de reforçar o desconforto e o grotesco já marcados na série.

Também esse tema social é diluído em outras questões e acaba por apenas ajudar a dar ar de estranhamento e deslocamento para Brígida. O sul do Brasil, também apresentado de forma genérica, reforça a sensação de Brígida como um local que existe alheio a todo o resto do mundo, menos à Ucrânia (o seriado foi filmado em parte nas cidades de Antônio Prado e São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul, parte no Rio de Janeiro e parte no Paraná). Assim, Desalma é sim uma história de imigrantes, de uma Ucrânia fora da Ucrânia, porém não dentro do Brasil.

Isso poderia ter sido facilmente resolvido com pequenas oportunidades perdidas de melhor situar a série em nosso país sem tirar o ar de reclusão. O professor de 2018, por exemplo, ao falar da mitologia ucraniana cita sereias mas não cita a lenda da Iara. Também o jovem Roman ouvindo rock ucraniano em um walkman no final dos anos 1980 configura um comportamento um tanto estranho para alguém de sua idade, levando em consideração o desejo do moço em sair da comunidade.

É possível entender porque a autora diz que Arquivo X foi uma das inspirações para a série. A justificativa, além da temática sobrenatural, se dá pelo fato de a trama não terminar ao final da primeira temporada, com ações e detalhes que serão reverberados nas próximas duas temporadas (a segunda já confirmada). Ao mesmo tempo, Arquivo X é uma série episódica procedural, com episódios deslocados uns dos outros — os famosos MOTW, “monstros da semana” — e alguns episódios de mitologia pontuais como os de fechamentos de temporada. São esses poucos episódios que no meio dos outros fazem a história de Mulder e Scully em busca de evidências de vida extraterrestre caminhar. Mas Desalma não é uma série procedural, e sim com enredo seriado que conta apenas uma história em todos os seus episódios. O desenrolar da mitologia de Arquivo X durante tantas temporadas faz sentido dentro do esquema de apresentação da série, mas não em Desalma.

Algumas questões não respondidas nessa primeira temporada ficam no ar, deixando a série maçante para 10 episódios. Para uma trama de concepção tão longínqua era necessária uma inclinação mais forte no estilo das antigas minisséries da Rede Globo que tiveram grande sucesso de público no início dos anos 2000. E uma narrativa com mais acontecimentos que fossem contados em um ritmo mais rápido.

É fato que a série poderia ser ambientada em qualquer lugar do mundo, mas comparar o seriado com Dark é desconhecer a trama dos dois seriados. Apesar de um tema de interesse internacional como viagem no tempo, a série traz pontos muito específicos de conflitos geracionais e históricos da Alemanha; ao se comparar com Ragnarok o sentido se esvai: a cultura, religião e ancestralidade de um país inteiro representados e projetados para o resto do mundo.

Desalma dá prioridade ao mercado externo e às premiações deixando de lado o consumidor interno. A sorte da série é que as gerações mais novas são acometidas por muitos representantes da famosa síndrome de vira-lata, enaltecendo tudo que vem do exterior ou tem uma roupagem gringa. Outros vão dizer que é necessário dar valor ao produto nacional, mesmo quando esse produto ignora a nacionalidade de onde vem e é produzido. De um modo ou de outro, a série já nasceu exaltada, com público defensor de todos os lados. Para inglês e brasileiro ver.