Categorias: CINEMA

Quem é mais machista, o Oscar ou a indústria do cinema?

Em 1929, quando foi realizada a primeira edição do Oscar, os Estados Unidos da América eram um lugar muito diferente do que são hoje. A décima nona emenda à Constituição Americana, que garantia às mulheres (brancas) o direito ao voto, tinha sido aprovada há menos de uma década. Quase dava para contar nos dedos o número de mulheres que já tinham sido eleitas como representantes do povo na Câmara dos Representantes, enquanto a única senadora mulher estivera no cargo por um único dia. A primeira mulher a ocupar uma cadeira na Suprema Corte ainda não havia nascido. Naquela época, mulheres americanas ainda não podiam ter cartões de crédito ou estudar em praticamente nenhuma universidade da Ivy League. O Equal Pay Act, cujo lema era “o mesmo salário pelo mesmo trabalho”, ainda não havia sido sancionado e nem mesmo imaginado; a expressão “assédio sexual” ainda não tinha sido cunhada, a vasta maioria das mulheres não fazia parte da força de trabalho e o direito ao aborto legal e seguro estava longe de ser garantido.

Nesse contexto, é claro que nenhum filme dirigido por uma mulher foi indicado ao principal prêmio da noite na primeira edição do Oscar. Mas em 2019, na nonagésima primeira edição, isso também não aconteceu.

Em 2013, a pesquisadora Martha Lauzen, diretora executiva do Centro para o Estudo de Mulheres no Cinema e na Televisão, ligado à Universidade de San Diego, nos lembrava de que “se são homens (brancos) que dirigem a vasta maioria dos nossos filmes, a maioria desses filmes continuará sendo sobre homens (brancos) e realizados a partir de um ponto de vista masculino (e branco)”. Martha Lauzen conduz a Celluloid Ceiling, pesquisa que investiga a representatividade das mulheres por trás das câmeras, desde 1998 — e desde 1998, pouca coisa mudou.

Kathryn Bigelow foi a única diretora a ganhar o prêmio de melhor direção, que esnobou Barbra Streisand.

No relatório publicado no começo de 2019, a Celluloid Ceiling apresentou números desanimadores, mas nada surpreendentes. Dentre os 250 filmes de maior bilheteria lançados em 1998, 83% das funções analisadas (direção, produção, produção executiva, roteiro, fotografia e edição) eram realizadas por homens. Em 2019, eram 80%. As análises individuais da representatividade feminina em cada categoria não são melhores: 9 versus 8 por cento na direção, 13 versus 16 por cento nos roteiros, 20 versus 21 por cento na edição, 4 versus 4 por cento na fotografia. Também é pouco surpreendente o levantamento que demonstra que esses números variam para pior quando analisados apenas os 100 filmes de maior bilheteria, e — sempre há de ter uma notícia mais ou menos boa — levemente para maior quando analisado o top 500. Vale lembrar que, três anos atrás, Patty Jenkins se tornou apenas a primeira mulher a dirigir um live-action com orçamento de mais de 100 milhões de dólares.

Se 8 ou 9 por cento de mulheres na direção (ou ainda 11% em 2000 e 2017, dois anos bons) já parece um número horrível, eles não são nada em comparação aos números a respeito da representatividade das mulheres na categoria de Direção do Oscar, de longe a premiação mais popular mundo afora. O dado é tão ridículo que já é de conhecimento geral: são cinco mulheres em 91 edições, somando o incrível número de 1% das indicações ao longo da história. Em seu banco de dados, a própria Academia divulga outra estatística absolutamente ridícula: em noventa e um anos, um total de treze filmes dirigidos por mulheres foram indicados ao prêmio de Melhor Filme, somando o fantástico número de menos de 3% das indicações.

Os anos de 2010 e 2011, quando o número de indicados a Melhor Filme por edição foi expandido novamente para dez depois de mais de seis décadas, foram dois momentos muito especiais nessa história. Tanto em 2010 quanto em 2011 não só um, mas dois filmes dirigidos por mulheres entraram na lista. Em 2010, Kathryn Bigelow se tornou a quarta mulher indicada ao prêmio de direção e a primeira (e até hoje única) a vencer a disputa. Depois dela, nos últimos nove anos, Greta Gerwig foi a única mulher indicada. Uma mulher, 44 homens. Depois da vitória de Guerra ao Terror, primeiro (e até hoje único) filme dirigido por mulher a receber a estatueta mais cobiçada da premiação, nas edições realizadas em 2012, 2014, 2016, 2017 e 2019, nenhum filme dirigido por mulher foi sequer indicado.

Em 2018, no primeiro Oscar após o movimento #MeToo, parecia que as coisas estavam mudando.

Ao longo das noventa e uma edições do Oscar, mulheres receberam menos de 20% das indicações de edição, roteiro e fotografia — categoria na qual o número é realmente fantástico, com nem 1% das indicações (de onde chegamos ao total de uma mulher, Rachel Morrison, em 2018). Desde 1929, o mundo avançou bastante — e o Oscar também. Mas muito menos do que deveria. Lina Wertmüller se tornou a primeira indicada ao prêmio de direção em 1977 e o prêmio de fotografia é praticamente imencionável, mas as primeiras mulheres indicadas a um Oscar foram as roteiristas Bess Meredyth e Josephine Lovett já em 1930, quando a premiação tinha bem menos categorias do que tem hoje. Num levantamento rápido e bastante informal, pude constatar que entre as dez primeiras e as dez últimas edições muito menos mudou no Oscar do que na sociedade.

Nas primeiras dez edições do Oscar, foram 80 indicados a Melhor Filme. Deles, cerca de 30% tinham uma mulher entre os roteiristas (para contextualização: geralmente era uma mulher entre dois ou três homens), e 20% deles tinham mulheres como montadoras. Na direção e na fotografia, o número era zero. Nos últimos dez anos, foram 89 indicados. O lado bom — e esse dado é realmente positivo, em comparação com o resto — é que quase 8% deles tinham mulheres na direção e 4% na fotografia, enquanto na edição os números se mantiveram iguais. O lado péssimo: no roteiro, a participação feminina caiu bastante, para 12% — mas suspeito que, em contrapartida, a maior parte dessas mulheres teve um papel maior na realização do roteiro final do que aquelas dos anos 30.

Há mais de uma década o Women’s Media Center analisa as indicações de cada nova edição do Oscar. No começo de 2016, o centro de pesquisa publicou um relatório analisando uma década de indicações. Nesse período, as mulheres representaram 19% dos indicados nas 19 categorias analisadas (todas exceto os os prêmios de atuação — que, divididos por gênero, funcionam quase como uma cota feminina na premiação — e de filme estrangeiro). As mulheres foram 2% nas indicações de direção, cerca de 13% no roteiro, 17% na edição e — surpresa — 0 na fotografia. Com exceção das categorias de figurino, na qual mulheres foram a maioria maciça, e de documentário em curta-metragem e design de produção, onde os números foram quase meio a meio, as mulheres estiveram sub-representadas em todas as categorias, chegando a números como 0 em trilha sonora e 1% em efeitos visuais. Nos três relatórios publicados depois desse, pouca coisa mudou. O relatório de 2019 é particularmente desanimador: nenhuma mulher foi indicada aos prêmios de direção, edição ou fotografia, e o número de indicadas para os prêmios de roteiro variou entre 8 e 12% — uma baixa considerável em relação ao ano anterior, quando mulheres foram 43% dos indicados em roteiro original.

Os números da base de dados da Academia são igualmente desanimadores. Na lista de maiores indicados e vencedores da história da premiação, uma única mulher figura em ambas: a lendária figurinista Edith Head. Também não há nenhuma mulher entre os maiores indicados em direção, roteiro e — é claro — fotografia. O prêmio de edição, historicamente uma área na qual as mulheres conseguiram se inserir melhor, traz uma história um pouco mais feliz. Nenhuma mulher foi indicada mais de uma vez ao prêmio de Melhor Direção, e a única diretora que já teve mais de um longa indicado a Melhor Filme foi Kathryn Bigelow com Guerra ao Terror e, três anos depois, A Hora Mais Escura. A boa recepção por parte da crítica de filmes como Não Deixe Rastros, de Debra Granik, Brilho de Uma Paixão, de Jane Campion, O Estranho Que Nós Amamos, de Sofia Coppola, A Guerra dos Sexos, de Valerie Faris, e Sua Melhor História, de Lone Scherfig, não impediu que todos esses filmes fossem completamente ignorados (o filme de Campion recebeu uma indicação de figurino).

Jane Campion, que dirigiu as oscarizadas Holly Hunter e Anna Paquin em “O Piano”, não foi mais lembrada pela Academia.

Em 2018, um ano marcado pelo movimento #MeToo e pelas denúncias de assédio sexual que ajudaram a demonstrar, mais claramente do que nunca, o quão profundo, arraigado e devastador é o machismo na indústria do entretenimento, a temporada de premiações foi marcada por protestos silenciosos nos tapetes vermelhos, menções bem ou mal sucedidas ao gender gap, discursos sobre inclusion riders e uma série de atores e atrizes sendo forçados a questionar com quem estão trabalhando e qual mensagem suas escolhas de trabalho mandam para o mundo. 2018 também viu a quinta mulher na história a concorrer ao prêmio de direção, a primeira a concorrer ao prêmio de fotografia — a última categoria que nunca tinha indicado uma mulher — e o primeiro filme com protagonista feminina a levar a estatueta mais importante da noite desde Menina de Ouro, em 2005. Parecia um momento de mudança sem volta.

E, ainda assim, em 2019 parece que quase nada mudou. Como questiona Carlos Megía no El País:

“Nenhuma mulher foi indicada ao prêmio de melhor diretor do ano, perpetuando assim a injustiça histórica que leva apenas cinco realizadoras a terem ouvido seu nome no Dolby Theatre entre os mais de 350 indicados em 90 anos de premiação. Algumas das organizações feministas mais influentes da meca do cinema já clamam pelo ocorrido. Sério que nenhuma mulher merecia essa honra?”

Como aponta o jornalista, não faltavam opções de filmes aclamados (inclusive mais aclamados que diversos títulos que garantiram seu lugar na lista de indicados), e o próprio processo de apontar um ou outro filme como o melhor é por si só um processo subjetivo. Por que, então, de novo nada mudou?

Em Off the Cliff, livro-reportagem sobre os bastidores do icônico Thelma & Louise, a jornalista Becky Aikman aponta que, por duas vezes durante a carreira da atriz Geena Davis, ela — e todo mundo à sua volta — acreditou que a indústria do cinema estava mudando para sempre, e que dali não tinha mais volta: com o inesperado e estrondoso sucesso do próprio Thelma & Louise e, no ano seguinte, de Um Time Muito Especial. Mas nada de fato mudou, não de verdade, não em grande escala. Nada disso mexeu profundamente nas estruturas ou na maneira como o dinheiro era investido. Geena acabou fundando um instituto de pesquisa, conhecido como See Jane, para investigar que representatividade a indústria do entretenimento tem trazido para meninas e mulheres. O lema do instituto diz que “se ela pode ver, ela pode ser” — um lema que demonstra que Geena sabe muito bem que o cinema e a televisão não são só “arte pela arte” ou então entretenimento, mas também têm uma função social muito mais ampla.

É claro que a lista de indicados à nonagésima primeira edição do Oscar também traz seu saldo positivo. Spike Lee, veterano de 61 anos cuja primeira indicação à estatueta de direção finalmente chegou, também é o terceiro diretor negro indicado nos últimos três anos — mesmo número que vimos nas outras oitenta e oito edições. Também há três anos o Oscar não repete o fiasco racista que foram as duas edições marcadas pelos protestos através da hashtag #OscarsSoWhite. Alfonso Cuarón tem grande chance de consolidar a quinta vitória de um diretor mexicano nos últimos seis anos — isso dentro de um país cujo presidente chama outras nações de “buracos de merda” e cuja população elegeu um projeto que acredita que tornar a América “grande de novo” significa construir muros bilionários. Pantera Negra se tornou o primeiro filme de super-heróis a receber uma indicação à mais cobiçada estatueta da temporada de premiações, sendo também marcantes e significativos sua celebração do continente africano, seu elenco majoritariamente negro e a forte presença de uma porção de mulheres guerreiras em seu roteiro. Os dois longas com o maior número de indicações da edição, Roma e A Favorita, também representam, como explorou Alissa Wilkinson na Vox, uma grande tendência de 2018: histórias que não só centralizaram com força jornadas de mulheres, mas que optaram por simplesmente deixar os homens — aqueles que ainda protagonizam a grande maioria dos filmes — de lado. A comemoração de Yalitza Aparicio, que nunca havia atuado antes, ao ouvir seu nome entre as indicadas já é um dos melhores momentos de 2019. O especial “Mulheres no Oscar” do Mulher no Cinema vem diariamente celebrando as dezenas de mulheres que, apesar de tudo, estão na disputa por estatuetas.

Ava DuVernay poderia ter sido a primeira diretora negra indicada a Melhor Direção, mas foi esnobada pelos votantes.

Tudo isso é realmente muito, muito bom. Mas é frustrante porque poderia ser muito melhor, porque dá para fazer muito mais. Quem é mais machista, o Oscar ou a indústria? É uma pergunta que segue os mesmos moldes de o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? Não tem como existir reconhecimento sem que primeiro exista uma oportunidade; ao mesmo tempo, paradoxalmente, muitas vezes simplesmente não existem oportunidades onde não existe reconhecimento prévio. Durante a divulgação de Mulher-Maravilha, a diretora Patty Jenkins falou muito sobre a carga de responsabilidade que ser a primeira carregava, e sobre as oportunidades que recusou ao longo dos anos pensando não necessariamente em si mesma, mas em como um eventual fracasso — recorrente de uma série longa de fatores para além dela — poderia prejudicar as mulheres da indústria de modo geral. Uma análise publicada no Women and Hollywood explica parte do problema:

“No texto [sobre Jenkins] o The Hollywood Reporter repetidamente descreve ‘Mulher-Maravilha’ como uma aposta arriscada — mas por quê? A misoginia com a qual diretoras como Jenkins se deparam fica óbvia quando você compara como são percebidos sua carreira e seu potencial e os de um diretor homem. O debut de Jenkins na direção de um longa foi com ‘Monster: Desejo Assassino’, drama sobre a serial killer Aileen Wuornos. O filme rendeu uma indicação ao Oscar para Charlize Theron, recebeu ótimas críticas, e lucrou 34,4 milhões de dólares na bilheteria doméstica. O primeiro longa de Colin Trevorrow, a comédia ‘Sem Segurança Nenhuma’, de 2012, arrecadou apenas 4 milhões. O filme gerou um burburinho positivo, mas não teve um impacto comparável ao de ‘Monster’. Mas a Trevorrow foram dadas as rédeas do caro reboot ‘Jurassic World’, de 2015. Seu próximo filme, ‘O Livro de Henry’ chega aos cinemas em algumas semanas, e ele também está cotado para dirigir ‘Star Wars: Episódio IX’ [Trevorrow acabou atuando apenas como co-roteirista]. Fica claro: Hollywood vê as diretoras emergentes como riscos, e os diretores como investimentos.” (tradução livre)

As indicações ao Oscar, como todo mundo sabe, também dependem muito de campanhas de marketing e de investimento massivo por parte dos estúdios — não é à toa que a Netflix investiu pelo menos 20 milhões na campanha de Roma para alcançar seu objetivo: foi a primeira vez que a empresa de streaming apareceu na principal categoria da premiação. O problema da representatividade eternamente pequena das mulheres no Oscar é, em primeiro lugar, um problema da indústria. Mas o Oscar também tem um papel importante quando escolhe chancelar uma produção ou outra, e as escolhas de cunho político também são e sempre serão parte de uma premiação nesses moldes. Como lembra Martha Lauzen no artigo de Carlos Megía, “a Academia não pode continuar ignorando sua função na hora de ajudar a construir nosso panteão cultural de grandes diretores. Não importa quantos planos de inclusão apoiem, se seu processo de indicações falhar na hora de incluir mulheres merecedoras de participar da categoria de melhor diretor a Academia está reforçando o status quo na indústria”.

No começo do ano, o grupo Guerrilla Girls lançou uma provocação incômoda: “O Senado americano é mais progressista que Hollywood”. A arte do grupo nos lembra de que, há vinte anos, as mulheres eram 9% do Senado. Hoje são 25. As diretoras em Hollywood, no entanto, eram e continuam sendo 4%. A política — lá nos EUA como aqui — anda cheia de arroubos conservadores e, ainda assim, conseguiu progredir mais do que a indústria do cinema. Em 2019, continuamos nos perguntando: algum dia esse cenário vai mudar? Esperemos sentadas, pois tudo indicada que essa história deve ser mais longa, cansativa e frustrante do que qualquer cerimônia de três horas e meia — que a Academia quer a todo custo reduzir — jamais conseguiria ser.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!