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Severance, Aggretsuko e a síndrome de burnout

Elemento marcante no processo de constituição das relações humanas, o trabalho tem sido tema explorado por diversas manifestações artísticas. Desde o clássico Tempos Modernos, ou em obras mais recentes e distópicas, como Clube da Luta ou Black Mirror, esse aspecto que ocupa a maior parte de nossas vidas possui camadas profundas e sombrias. Severance, ou Ruptura, em português (2022), serve de exemplo ao utilizar elementos distópicos, característicos da ficção científica, para representar um sentimento coletivo e principal sintoma do caos de um sistema em crise: a desumanização causada pelo trabalho. Por outro lado, Aggretsuko (2018), um anime inspirado por uma mascote da empresa Sanrio (criadora, dentre outras, da Hello Kitty), explora certos elementos de humor e a caracterização de personagens com formas de animais para representar uma considerável cadeia de funcionários de grandes corporações japonesas.

Embora bastante distintas, as obras citadas denunciam as relações profissionais por vezes antiéticas que causam, além da exploração da força de trabalho, danos físicos e mentais quase que permanentes. Entre distopias que em muito se assemelham à nossa realidade e animes com animais que usam terno, este texto busca discutir como a síndrome de burnout (uma consequência, entre várias causas, do assédio moral no trabalho) pode ser percebida na construção de suas personagens, principalmente quando a narrativa destaca um enredo sobre quem vive pelo trabalho, em detrimento do ideal, que é trabalhar para viver.

A síndrome de burnout

Queimar-se por completo. A síndrome de burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, é, em sua essência, fruto de um sistema carregado por jornadas excessivas de trabalho, metas inalcançáveis, extrema competitividade, duplas jornadas de trabalho e, em muitos casos, a liberdade e o acobertamento de casos de assédio moral. Longe de ser este um texto técnico, é importante lembrar que hoje esse distúrbio tem o seu espaço no rol das doenças ocupacionais da Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde (OMS), e é caracterizada pelo excesso crônico causado pelo trabalho.

Queimar-se por completo é perder o pavio. Literalmente, a energia para continuar produzindo se esvai. Dentre sintomas físicos e psicológicos, a desmotivação é uma das grandes consequências, junto com a despersonalização que condições desumanas desencadeiam nos trabalhadores. Essa discussão vai muito além de mudanças de hábito, conforme muitos conselhos superficiais podem indicar como única solução, mas demanda uma reflexão: não é o que estamos fazendo de errado, mas, principalmente, o que estão fazendo de errado conosco. As profissões de risco estão no âmbito das que exigem um envolvimento interpessoal muito forte e, dentre estes, as mulheres configuram como principais vítimas.

Embora esse problema não tão recente não seja explicitamente mencionado nas séries Severance e Aggretsuko, é visível como suas personagens (sobretudo os que protagonizam ambas) têm suas forças sugadas pelo trabalho, e a única perspectiva de melhora que encontram é buscar formas de saída para aquilo que consome uma grande parte da jornada diária de suas vidas.

Severance: a reinvenção de tempos modernos

Considerada por muitos críticos como a série do ano em 2022, Severance constrói em seus nove episódios uma tensão e angústia que deixa o seu público com enormes lacunas e expectativas para uma segunda temporada. Assim como seus personagens-funcionários, que no maior estilo fordismo/taylorismo desempenham funções específicas e pouco descobrem sobre os frutos de seu trabalho, nós, o público, seguimos o curso dos episódios sem grandes respostas, ávidos por solucionar aquele conflito narrativo que, estranhamente, nos é muito familiar.

Somos apresentados à vida de Mark (Adam Scott), que trabalha para uma grande indústria de tecnologia, a Lumon. Ele, assim como vários dos trabalhadores dessa grande corporação, passou por um processo de “ruptura”, no qual é implantado um chip em suas mentes que basicamente os dividem em duas pessoas: os “Innies”, suas personalidades que nascem e literalmente vivem no trabalho, e os “Outies”, suas versões anteriores ao processo da ruptura, que vivem suas vidas lá foram sem uma lembrança sequer do ambiente do trabalho.

Ao atravessar os corredores brancos e gélidos e descer o elevador, suas mentes “trocam de lugar”. Dessa forma, enquanto suas versões no ambiente de trabalho jamais abandonam o prédio executivo, jamais dormem e não sabem quem são, suas versões exteriores são incapazes de lembrar no que trabalham ou com quem trabalham. Os laços que são feitos entre colegas encontram seu limite assim que a porta do elevador se abre. A ruptura é marcada por um dualismo entre as personalidades e os dois ambientes onde vivem, e até mesmo o plano da câmera muda quando o “click” ocorre no elevador. A comunicação entre as duas personalidades é proibida. Nenhum item pessoal de fora é permitido dentro, no trabalho.

Suas vidas se resumem, literalmente, ao trabalho. Sequer compreendem o que suas funções fazem, ou o que de fato as metas estabelecidas pela Lumon produzem ao fim. Como o operário em Tempos Modernos, apertando as ferramentas, os colegas de Mark trabalham em um setor de controle de dados, que se caracteriza por uma ampla sala extremamente branca, sem janelas, com alguns computadores aglomerados em um grupo. Passam o dia explorando, com o cursor do mouse, números de natureza e origem desconhecidas, para organizarem em pastas aqueles que lhes causam um sentimento estranho de medo.

É curioso o fato como os elementos visuais do ambiente corporativo representam a divisão dos setores, cuja comunicação é extremamente vigiada e impedida. Nesse sentido, podemos perceber que o senso de coletividade e de identificação são extremamente perigosos para o controle da Lumon. Os funcionários são segregados, esvaziados do sentido do que fazem. Existem para cumprir metas e, como existem apenas enquanto trabalham, a demissão ou a aposentadoria acarretaria no apagamento daquela versão. Uma espécie diferente de morte.

No primeiro episódio somos apresentados à personagem Helly (Britt Lower), que passa pelo processo de ruptura e sente dificuldades para se adequar ao ambiente de trabalho. Sentimos o seu desespero na primeira cena, em uma sala de reunião vazia, ao não saber como responder perguntas simples sobre sua aparência, seu nome ou sua família. Não há sequer uma pessoa ao seu lado, mas uma voz saindo de uma máquina, fazendo-a constatar que já não sabe mais quem é. Sua agressividade no trabalho revela um esquema de punição e recompensa, no qual todos os seus colegas são atingidos, e suas tentativas de sair daquele terrível ambiente encontram sempre barreiras.

O ambiente de trabalho da Lumon é desumanizador de propósito. A série revela que algumas pessoas do “lado de fora” sequer enxergam os “innies” como pessoas de verdade, com autonomia. Outras esbravejam seu descontentamento com a empresa, alegando que as personalidades interiores não conhecem a luz do sol ou uma noite de sono. Não vivem. Nessa dualidade, Mark, o protagonista, tem um crescimento excelente na narrativa. De início, o trabalho é o contrário para ele. Para alguém que precisa viver com a dor do luto e uma dificuldade de socialização, passar oito horas do dia sem se lembrar de quem é, de início, soa como uma salvação. Mas sua versão interior passa por dilemas estressantes, como a rápida substituição do seu então melhor amigo no serviço, e a dificuldade de gerenciar uma colega de trabalho insatisfeita com aquela situação, bem como a sua influência entre os demais funcionários. Assim, ele começa a suspeitar e desafiar aquele ambiente que até então resumia a sua vida.

Severance ressignifica o trabalho corporativo. Transforma os fundadores da Lumon em “deuses” e a empresa em um culto, uma seita, mostrando como a “lembrança” de quem se é e a união dos trabalhadores são o pontapé inicial para a “ruptura” daquele sistema. Embora essa distopia explore elementos para além do assédio moral no trabalho, a desumanização e a exploração, encontra-se, na construção de seus personagens, uma metáfora para o burnout, principalmente na “despersonalização” que a síndrome causa. A falta de perspectivas, a completa apatia, o sentimento de se sentir incapaz de atingir uma meta ou o simples fato de um estresse crônico fazer com que se esqueça quem se é: é impossível não se identificar com alguns elementos angustiantes dessa obra. Essa é a constância daqueles que passam pelo processo de ruptura. A diferença é que não possuem um parâmetro de realidade fora do trabalho para comparar com a exploração que vivem.

O mais assustador, dentre os vários sentimentos que a série nos causa, é a sensação de assepsia de si. Os ambientes completamente impessoais e a exclusão das particularidades de vida dos personagens causam uma profunda angústia que encontra raízes mais antigas fora da ficção.  A exímia romantização do trabalho pesado, dos workaholics que têm sua personalidade completamente moldada pelo trabalho e a valorização da impessoalidade, de “deixar os seus problemas em casa” acompanha esse grande quadro de adoecimento pelo trabalho e a alienação sobre as causas do verdadeiro problema. 

Aggretsuko: a agressividade contida da “office lady”

Retsuko é uma panda vermelha de 25 anos que trabalha em um escritório de contabilidade de uma grande empresa no Japão. Extremamente frustrada com sua rotina exaustiva, o desvio de funções e sobrecarga de tarefas degradantes (como executar o trabalho dos outros, servir “chá” e outras discriminações de gênero que sofre), ela é descrita como uma personagem “certinha”, que nunca levanta a voz e que segue as ordens que recebe. Há, contudo, uma agressividade contida nela (relembrando, uma das características do burnout), e sua escapatória são os guturais de death metal que canta no karaokê, sozinha, à noite. Gente como a gente.

A música pesada e o fato do gutural ser um som potente em sua garganta é a sua principal válvula de escape. Retsuko improvisa suas letras inspirada pelas inúmeras situações abusivas que passa no ambiente de trabalho. Ela se sente, muitas vezes, presa em sua rotina. Conta até dez para controlar a raiva e voltar a ser “uma funcionária exemplar”. Logo no primeiro episódio, percebemos a diferença entre a Retsuko cheia de esperanças ao ganhar seu emprego e a Retsuko anos depois, sem perspectivas de futuro, sem energia para se alimentar bem, sair com os amigos, arrumar a casa ou entrar em relacionamentos. Da sua rotina casa — trânsito — trabalho — casa — celular — dormir, é o metal que a lembra quem ela realmente é. Por isso é o seu segredo, uma forma de proteger o que a mantém de pé.

No vídeo Aggretsuko: conformismo e revolta, publicado no YouTube pelo canal Meteoro, Retsuko é analisada tendo como referência o perfil da “office lady”. Essa expressão caracteriza as funções desempenhadas pelas mulheres no escritório, e que são marcadas pela discriminação de gênero e o assédio moral. Não é esperado delas que permaneçam no trabalho, pois espera-se que abandonem o cargo junto com um novo casamento. Além disso, as funções como “arrumar o escritório” ou “servir o café/chá” sobram para elas, o que também é muito retratado no anime.

Em cada temporada, um tema em especial marca uma tentativa de Retsuko abandonar seu emprego. Muitas vezes, entre lágrimas e cascas de pão para o almoço, ela segura em suas mãos a carta de demissão e fantasia em esfregá-la na cara do “Porcão”, seu chefe extremamente machista. Em uma delas, fantasia em ter o mesmo destino das “office ladies”: casar-se e virar uma dona de casa, nunca mais trabalhar em uma empresa. Não se sabe a intenção de retratar esse comportamento na personagem, mas não deixa de ser um fator real, visto que o anime demonstra muito bem a dificuldade das mulheres em serem levadas a sério em seu ambiente de trabalho, e o trabalho pesado que precisam arcar para conseguirem chegar até onde os homens caem de paraquedas. Não é por acaso que são as principais vítimas da síndrome de burnout. Em diversos momentos da série, outras personagens femininas revelam diferentes lados da vida das mulheres que trabalham, que são mães e também donas de casa, e como este trabalho é carregado de profundas responsabilidades que, por vezes, são invisibilizadas. 

Aggretsuko exerce muito bem o papel de mascote: representa um grande time de jovens na casa dos vinte, frustradas com o rumo que suas vidas estão tomando e sem vislumbres de um crescimento futuro. Por isso é tão difícil não se identificar com ela. A fuga, muitas vezes, é a sua primeira opção, pois um de seus grandes dilemas é a sua reclusão e dificuldade de impor sua voz ou pedir ajuda. Até mesmo a música, em um momento especial do anime, acaba se tornando uma obrigação que apaga o seu pavio e consome suas energias. Isso tudo para perceber que, embora haja uma grande carga de expectativa e cobrança em suas costas, ela é, no final, substituível.

O limiar entre as duas narrativas

Entre Severance e Aggretsuko, a conclusão que se chega é a potencialidade que o trabalho tem de moldar a personalidade das pessoas. Não há escapatória, somos sim definidos em grande parte pelo trabalho, mas não devemos ser o trabalho, como em Severance, ou adquirir traços de personalidade tóxicos por conta da exploração, como em Aggretsuko. As duas premissas revelam personagens exaustos, inseguros, reservados, com rachaduras em suas relações pessoais e seus hábitos de vida causados por uma demanda desumana de serviço. Em suas trajetórias, o trabalho os torna população em risco de desenvolver distúrbios e doenças.

Essas histórias, distópicas ou reais, também trazem um destaque para a discussão social sobre a saúde mental. Não são simples mudanças de hábito e rotina que irão transformar a relação deles com o trabalho, quando esta é configurada por um grande sistema opressor, um histórico de exploração, ou estereótipos culturais e sociais. O burnout é, sobretudo, social, causado por um sistema. O debate em torno dele deve considerar as relações profissionais, de gênero, de classe, de etnia, entre outras inter-relações que compõem a diversidade humana. Ele começa, principalmente, quando o direito a essa diversidade não é respeitado, e pessoas viram números em uma tela, em uma planilha de contabilidade. Números que podem causar medo.