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O manual da paz de Amanda Lindhout

Houve o tempo em que tivemos a ilusão de que todas as portas se abririam para nós. Lugares exóticos, paradisíacos, luxuosos ou aventurescos, que, antes, só existiam no mundo da fantasia, finalmente se revelariam aos nossos olhos e se colocariam ao nosso dispor: era o início da globalização. Idealmente, o mundo globalizado traria infinitas possibilidades — isso antes dos terroristas, dos refugiados, das crises humanitárias, das políticas segregacionistas e da cultura do medo. Nesse tempo, mesmo para a pequena Amanda Lindhout, numa cidadezinha do Canadá, o mundo fazia seu convite.

Estampado nas páginas de sua preciosa coleção de revistas National Geographic, o mundo lhe parecia irresistível — isso antes de Amanda Lindhout ser sequestrada por uma milícia somali, de passar quinze meses em cativeiro e de viver os horrores escondidos no país mais perigoso do mundo. No livro A Casa do Céu, ela conta, junto com a jornalista Sara Corbett, como se tornou uma viajante e uma jornalista, o que a levou até a Somália e o mais importante: onde encontrou forças para sobreviver como refém e inspiração para, mais tarde, voltar e investir na educação do país.

“Quando menina, eu confiava naquilo que sabia sobre o mundo. Não era um lugar feio ou perigoso. Era estranho, atraente e tão bonito que você sentiria vontade de colocá-lo em uma moldura e pendurá-lo na parede.”

Amanda começa o livro contando que teve uma infância pobre e difícil. Aprendeu a vasculhar latas de lixo e a não se importar em ser chamada de “suja” por outras crianças, na escola. Seu maior tesouro eram as revistas National Geographic que comprava no brechó e lia avidamente, sonhando em visitar lugares distantes, totalmente diferentes e cheios de segredos. Criou uma relação de cumplicidade com o desconhecido e sabia pertencer a algo maior e mais bonito. Por isso, anos depois, tendo conquistado alguma independência e algum dinheiro, fez sua primeira — e inevitável — viagem internacional. Foi um longo trajeto pela América do Sul, cheio de frustrações e embaraços, e, ainda assim, despertou em Amanda uma sensação nova, na qual ela não tardaria em se viciar. Era o início de sua vida de viajante, pouco glamourosa, mas, em certa medida, impagável.

Com o tempo, Amanda foi se tornando cada vez mais confiante e ousada em suas viagens. Era movida pela curiosidade tanto quanto pela teimosia e buscava provar a si mesma e aos outros que havia beleza nos lugares mais remotos do planeta, inclusive nos que haviam sido castigados pela guerra. Logo, decidiu investir todo o seu tempo e dinheiro e passou a trabalhar como jornalista, atravessando zonas cada vez mais perigosas para produzir um conteúdo que fosse mais relevante e inusitado. Foi assim que ela aterrissou na cidade de Mogadíscio, a capital da Somália, em agosto de 2008 — ignorando os muitos avisos contrários e o seu próprio mau pressentimento.

É preciso entender que o panorama da Somália à época era caótico — e mudou pouco desde então. Acontece que em 1991, depois de uma ditadura comunista sangrenta, o então presidente foi deposto e o país foi largado às mãos das forças rebeldes. Essas, na disputa pelo poder, transformaram todo o território em uma imensa frente de batalha. De lá para cá, aconteceram diversas tentativas de intervenção externa, mas todas fracassaram, à medida em que o local se tornava insuportavelmente violento. Já em 2017, um novo governo se estabeleceu, mas, ainda no mesmo ano, o país registrou o pior atentado terrorista de sua história, com mais de 300 mortos. Parece que a Somália parou no tempo, sem perspectiva de futuro — e foi nesse furacão que Amanda Lindhout pisou onze anos atrás, totalmente despreparada para uma tragédia previsível.

Amanda Lindhout

Sem tardar, no quarto dia de viagem, ela foi sequestrada com o fotógrafo australiano Nigel Brennan (que publicou seu próprio relato em 2011, The Price of Life, ainda sem tradução no Brasil). As duas famílias, aliadas a seus respectivos governos, negociaram exaustivamente com o grupo de sequestradores. Casos como o de Amanda e Nigel são muito delicados, pois sabe-se que o dinheiro do resgate é usado para financiar os combates entre as milícias. Então, embora o país da vítima seja pressionado a agir, para preservar uma política externa neutra, age em segredo e tenta barganhar ao máximo, o que torna o processo lento e frustrante para todos os envolvidos. O caso foi particularmente complicado por envolver duas vítimas de países diferentes e de patrimônio desigual. O resgate pedido era de 1,5 milhão de dólares por cada um e a família de Nigel, mais abastada, era tentada a pagar unicamente pela sua liberdade, além de considerar contratar empresas particulares de resolução de conflitos; opções que a família de Amanda não tinha.

Para Lindhout, em muitos aspectos, a situação era consideravelmente pior. Como mulher, desde o início de sua jornada, ela enfrentara dificuldades absurdas, chegando a ter sua hospedagem recusada por hotéis em Bangladesh simplesmente por estar desacompanhada de pai, irmão ou marido. Na Somália, essa desigualdade foi levada ao extremo: cercada por homens islâmicos fundamentalistas, ela era tratada com muita hostilidade e vivia em constante tensão por saber que, segundo o Alcorão, é permitido aos homens explorar sexualmente suas reféns. Desse modo, mesmo na presença de Nigel, Amanda sabia que estava sozinha.

“Eu estava sozinha, ainda mais do que antes — presa dentro do meu corpo, presa dentro da minha vida.”

Ao longo dos extenuantes quinze meses de cativeiro, Amanda passou por situações inimagináveis, sofrendo todo tipo de tortura. Ainda assim, foi capaz de reunir toda a sua coragem e pôr em prática um arriscado plano de fuga, além de criar estratégias para escapar da solidão dentro de sua própria cabeça — coisa que, para o leitor, pode, por vezes, parecer impossível. Sua busca incessante pelo autocontrole, pela paz e pela compreensão foi o que a manteve viva e é o que diferencia sua história de todas as outras.

A Casa do Céu não é apenas um reconhecimento, da parte de Amanda, de que foi imprudente (como o público geral que acompanhava o caso duramente apontava) ou uma denúncia do caos impenetrável em que se tornou o país africano. São também belíssimos — apesar de curtos — relatos de viagem, grandes lições de fé e cenas comoventes de dor e perdão. São os passos tortuosos, porém sem dúvida inspiradores, da mulher que, seis meses após ser libertada, criou a Fundação para o Enriquecimento Global, uma organização filantrópica de apoio às mulheres, à educação e ao desenvolvimento conjunto da comunidade na Somália. É um livro escrito por duas mulheres talentosas em três anos de trabalho duro para compartilhar uma vida inteira de aprendizado.

Amanda Lindhout entendeu que, para além das portas abertas do mundo moderno, por todos os lugares, há uma infinidade de pessoas que os fazem e são feitas por eles. Que, para cada uma, dadas as circunstâncias, há uma série de escolhas — e a divisão não é justa. No entanto, ela segue acreditando que somos todos, essencialmente, iguais e que podemos, mesmo nas piores condições, encontrar, em nós mesmos alguma beleza.


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1 comentário

  1. Não conhecia o livro mas adorei conhecer e ler a resenha. Dá pra perceber que tem dor e beleza na mesma proporção, o que pode ser inimaginável pra quem não viveu o que ela passou, o que torna o livro ainda mais atraente *-*

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