Não é de hoje que mulheres têm dificuldade para se afirmar como pessoas, como seres igualmente importantes e interessantes quanto os homens. Se hoje, nós mulheres que vivemos em 2016, sofremos com a opressão machista, não é de duvidar que mulheres décadas antes de nós também sofriam. É uma triste certeza para se ter.
Suze Rotolo nasceu em Nova York no dia 20 de novembro de 1943 em uma família ítalo-americana. Cresceu num ambiente que, apesar de pobre, era bastante rico em cultura. Seu pai era artista e a mãe escritora, o que despertou o interesse de Suze pelas artes. Seus pais eram ativos no partido comunista da época e logo cedo ela começou a fazer parte da cena folk do Greenwich Village do começo da década de 1960. Foi em um desses cafés em que ela conheceu um jovem músico chamado Bob e logo começaram a namorar. O Bob se tornou Bob Dylan e Suze Rotolo se tornou “a namorada”; rótulo que, mesmo sem todo o vocabulário feminista que possuímos hoje, Suze não queria se encaixar.
A imagem de Suze Rotolo foi eternizada na famosa capa do segundo álbum do Bob Dylan, The Freewheelin’ Bob Dylan, de 1963 e, desde então, até sua morte em 2011, era assim que ela era lembrada; como “a musa”, “a namorada”, mas nunca como a pessoa, a artista, a escritora que de fato foi.
Em 2008, Suze lançou um livro de memórias sobre os anos 60, o A Freewheelin’ Time: A Memoir of Greenwich Village In The Sixties, em que conta um pouco sua vida, o estado das coisas, a atmosfera de Nova York na década de 1960, que é cercada de misticismo e admiração, e também sobre seu namoro de três anos com Bob Dylan. Mas vale ressaltar: esse não é um livro sobre Bob Dylan.
Sou fã de Bob Dylan desde quando aprendi o que é ser fã. Suas músicas me acompanharam por muitos anos e por diversas fases da minha vida. Ele é de longe o meu artista favorito, mas não é sobre ele que quero falar aqui, e sim sobre uma figura que muitas vezes é esquecida nessa história toda. Para ser honesta, eu cheguei até o livro de Suze Rotolo porque eu queria saber mais sobre o Bob Dylan. Isso foi há anos atrás, mas eu ainda não tinha lido seu livro. Talvez por medo de descobrir que meu maior ídolo-de-todos-os-tempos foi um babaca, ou porque talvez o livro fosse mais sobre ela do que sobre ele, ou sei lá, por que diabos às vezes demoramos tanto tempo para ler livros que é certo que iremos amar? Um dos muitos mistérios da vida.
Hoje, depois de ter lido, acho que foi bom os anos de espera, pois desde então eu pude entrar em contato mais de perto com o feminismo, ganhei a maturidade necessária para aprender ser fã sem deixar de lado meu olhar crítico e tenho cada vez mais interesse em narrativas sobre mulheres feita por mulheres. Parecia ser o momento ideal para, enfim, conhecer mais de perto essa figura que eu só entendia através das canções do seu ex-namorado.
Suze, filha de imigrantes italianos, cresceu numa região operária do Queens. Seu pai, Gioachino Pietro Rotolo, era artista, mas para sustentar a família trabalhava em fábricas e era muito ativo nos movimentos sindicais. Ele chegou nos EUA em 1914 com a mãe e irmãos. A mãe de Suze, Mary Teresa Pezzati, trabalhava como editora e colunista para a versão americana do jornal comunista italiano L’Unità. Eles se conheceram através da militância comunista; inclusive, seu pai, Peter — tradução de seu nome do meio, Pietro —, ao propor sua mãe em casamento utilizou as seguintes palavras: I think I need to set up a picket line around you (“Eu acho que preciso fazer um piquete ao seu redor”, em tradução livre). A educação política que Suze teve em casa foi uma grande influência para Bob Dylan no começo de sua carreira musical, quando ele participou de movimentos sociais e suas músicas foram adotadas como hinos dos direitos humanos.
Em 1958, seu pai morreu subitamente de problemas do coração. Suze tinha apenas 14 anos e soube logo após de voltar para casa depois da escola. A morte do pai a afastou de casa, para ficar longe da mãe, e a aproximou do Greenwich Village e da cena jovem folk que estava nascendo.
Suze — que na verdade era Suzan, mas para fugir do nome comum, adotou o Suze inspirada numa obra de Picasso (La Suze) — conheceu Bob Dylan em 1961, quando tinha 17 anos e ele 20 num concerto de folk da Riverside Church em Manhattann e logo começaram a namorar. O livro não é apenas sobre o relacionamento dela com Dylan, mas como é sobre a cena cultural nova-iorquina dos anos 60, o namoro deles ocupa grande parte da história.
Assim como eu demorei para ler seu livro, Suze demorou para escrevê-lo. Mesmo se limitando à sua vida na década de 1960, o livro só foi escrito em 2008, quase 50 anos depois das histórias narradas. Esse afastamento é extremamente positivo para a obra, pois a narração e Suze é distanciada dos acontecimentos, o que lhe dá a possibilidade de reflexão sobre o que viveu. Em muitas passagens ela exprime seu desconforto com o rótulo que lhe foi dado, de “mulher do músico”; “uma corda no seu violão” (a string on his guitar) e que, apesar de ainda desconhecer o feminismo como movimento social, já sabia que mulheres eram e deviam ser mais do que aquilo.
As memórias, organizadas de forma não linear — o que ajuda a criar a atmosfera da época —, constroem imagens interessante daquele tempo, sem exageros apaixonados e sem nostalgias; um retrato autêntico e sem sentimentalismos de quem viveu num tempo tão cultuado, mas não sem poesia. Suze descreve com muita sensibilidade e poucas palavras momentos pesados e difíceis de sua vida, como a morte de seu pai, o aborto que realizou e o término do relacionamento com Dylan, mas sem ser descritiva demais, ou muito detalhista. Era importante que ela ainda mantivesse alguns de seus segredos.
Apesar de Bob e Suze irem morar juntos logo depois do início do namoro, era importante para Rotolo não deixar de lado sua vida particular; seus gostos, seu trabalho como artista, sua independência. Em 1962, sua mãe a convida para ir à Itália por alguns meses para estudar e, apesar de causar um problema no relacionamento com Dylan, ela vai e passa um semestre estudando Artes em Perugia — viagem essa que irá rememorar dois anos mais tarde, quando termina definitivamente o namoro com Bob.
“It wasn’t easy; even when broken, the bond between lovers tends to hold in unpredictable ways. But I knew I was not suited for his life. I could never be the woman behind the great man: I didn’t have the discipline for that kind of sacrifice”.
“Não era fácil; mesmo quando rompido, o laço entre amantes tende a continuar preso de maneiras imprevisíveis. Mas eu sabia que não cabia em sua vida. Eu nunca poderia ser a mulher por trás do grande homem: Eu não tinha a disciplina para tamanho sacrifício.” (tradução livre)
Alguns anos depois, Suze foi à Cuba, numa excursão ilegal, pois naquela época cidadãos estadunidenses eram proibidos de viajarem para Cuba. Ela e outros estudantes, protestando pela liberdade de ir e vir, passaram dois meses na ilha e puderam conhecer Che Guevara e Raul Castro e saber mais sobre a Revolução Cubana. Foi uma decisão ousada. Mesmo sendo os anos 60 conhecidos pela liberdade de experimentação, a sociedade da época ainda era bastante conservadora e machista de modo geral.
Quando eu era mais nova, costumava olhar longamente para a capa do disco The Freewheelin’ Bob Dylan e imaginar a vida daquela moça de braços dados com o Bob. Ela representava a fantasia de muitas meninas ao longo de muitos anos — as minhas inclusas. Suze Rotolo namorou Bob Dylan por três anos, inspirou diversas músicas, entre elas algumas das mais bonitas e românticas, e ainda foi eternizada numa das capas de disco mais singelas e originais da época. Suze se tornou um mito. Só havia um problema: Suze era uma garota real, com ambições reais, com desejos reais. Suze era artista, e ao lado de Dylan ela pôde conhecer muitas pessoas que poderiam ajudá-la em sua carreira, mas apesar de se sentar ao lado delas, não era lhe permitido mais que isso. Ela podia estar presente, mas não podia participar.
“And for the male artist (Picasso, Bob) it didn’t matter what others expected or felt or thought of them or their work; they just did it. I coul identify with that all I wanted, but at that time I could not live ir outright. Permission was not granted. Females were guests, not participants.”
“E para os artistas homens (Picasso, Bob), não importava o que outros esperavam ou sentiam ou pensavam sobre eles; eles apenas faziam. Eu podia me identificar o quanto quisesse com aquilo, mas naquele tempo eu não podia experienciar isso. Não era concedida permissão. Mulheres eram convidadas, não participantes.” (tradução livre)
A sua relação com Bob Dylan tomou tamanha proporção que, mesmo após o término, pessoas não pararam de procurá-la para saber mais detalhes sobre sua relação. Em 1967, Suze casou-se com Enzo Bartoccioli, com quem permaneceu casada até sua morte, em 2011. Ela trabalhou com confecção de joias, como ilustradora, pintora e com livros de artista, mas nenhum de seus trabalhos ganhou tanta notoriedade quanto seu namoro com Dylan. Rotolo se recusou a falar sobre isso até quando foi entrevistada por Martin Scorsese em 2008 e foi essa entrevista que a motivou escrever seu livro.
A Freewheelin’ Time: A Memoir of Greenwich Village in the Sixties ainda não possui uma tradução para o português, mas vale a pena a leitura não só para fãs de Bob Dylan, mas também para quem quiser saber mais sobre os anos 60 em Nova York.
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Ótimo texto 🙂 Onde você adquiriu o livro?
oi! comprei o ebook na amazon (:
Texto maravilhoso! Fiquei encantada com Suze, vim pela curiosidade que demorou a ser tirada sobre quem era a bela moça da capa. Me conectei como se estivesse ouvindo uma amiga falando sobre Suze. Uma pena só ter encontrado agora em 2019. Mas de qualquer forma espero que receba meus parabéns pela trabalho. Com carinho, Joanné
obrigada, seu comentário significa muito, mesmo em 2019 <3
Belo texto!