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Deshice de Mi: feminismo, existencialismo e a pluralidade sonora do trio Fémina

Sabemos que as vivências sonoras são muito diferentes de pessoa para pessoa, mas existe um fenômeno que acontece com todo mundo. Tem artista que você ouve uma, duas, três, dez vezes — quantas for necessário — e não te “desce” (ou pelo menos a afeição demora a aparecer). Mas também existe o efeito contrário: você escuta a banda pela primeira vez e, desde os primeiros segundos da canção, um sentimento diferente se instaura; todos os pelos do corpo se arrepiam e você pensa como nunca tinha ouvido aquilo antes. No meu caso, isso aconteceu com o trabalho de Clara Miglioli, Sofia Trucco e Clara Trucco, através do projeto denominado Fémina.

A história de Fémina começa em 2004, quando as amigas Clara Miglioli e Sofia Trucco decidiram formar o duo ainda em San Martín de Los Andes, cidade localizada na Patagônia argentina, como uma brincadeira de duas artistas adolescentes. Em pouco tempo, decidiram levar o projeto adiante e mudaram-se para a cidade de Buenos Aires, buscando voos mais altos. Embora grande parte da inspiração sonora do trio venha das vivências na pequena cidade turística de San Martín — com cerca de 22.000 habitantes — e do hip-hop estadunidense, foi nas ruas movimentadas de Buenos Aires que Fémina encontrou o combustível necessário para fazer o seu rap latino-americano decolar. Anos depois, Clara Trucco, irmã mais nova de Sofia, também se juntou ao grupo.

Em entrevista à revista Sound and Colors, em 2017, o trio revela que, inicialmente, os seus materiais tinham como base instrumentais baixados da internet e tocados no formato sound system. Embora elas tocassem diversos instrumentos antes mesmo de formarem a banda, a possibilidade de utilizá-los para suas canções surge após conhecerem Apolo Novax, do grupo de hip-hop argentino Koxmox — que, por sua vez, ficou conhecido mundialmente pela mistura entre rap e tango na famosa Mi Confesion.

“Trini (produtor do Koxmoz na época) foi o primeiro que começou a fazer batidas para nós. Ele foi o primeiro a nos convidar para entrar no estúdio e Apolo nos ajudou a escrever rimas e nos expôs a muita nova música para nos inspirar. Eles foram como nossos primeiros professores e padrinhos” — Sofia Trucco em entrevista à Colors and Sounds, em 2017

Com a introdução de instrumentos e a produção de material próprio, a banda trouxe junto ao rap as referências que sempre estiveram presentes em sua bagagem musical — como o folk, samba, tango, bolero, entre outros ritmos latino-americanos. No meio dessa pluralidade sonora, nasce o primeiro álbum da banda, Deshice de Mí, no dia 7 de setembro de 2011; depois Traspasa, em 4 de fevereiro de 2014; e também o mais recente disco, Perlas & Conchas, lançado em 4 de abril de 2019, o qual contém uma belíssima colaboração com Iggy Pop na faixa Resist“. Desde então, Fémina já fez turnê em diversos países e festivais do mundo, inclusive no Brasil. Elas estiveram por aqui em 2018, na programação do Rec-Beat 2018 e também realizaram dois shows em São Paulo no mesmo ano.

No álbum de estreia, Deshice de Mi, Fémina mostra a que veio — e se tornou, particularmente, o meu trabalho favorito do grupo: “Este primeiro disco está dedicado a um tema tão misterioso, complexo e antigo como a própria vida do homem sobre a terra: a origem da música”. É esta a frase que dá início ao álbum, declamada através da faixa Introduccion. Em entrevista à Filo.news em março de 2021, Clara afirma que, em praticamente todas as canções do trio, há a presença de elementos da natureza — um lago, uma lagoa, uma montanha, uma nuvem. “Creio que essa é a riqueza e a grandiosidade da natureza, que é muito ampla e muito vasta também”, finaliza. Aliado ao apreço do trio em utilizar a natureza como concepção teórica às canções, a associação entre música e natureza feita na faixa introdutória também nos remete ao fato de que a origem da música surge a partir da reprodução de sons inspirados pelos próprios sons da natureza. Sendo assim, a música nasce a partir da mescla de inúmeros sons e, posteriormente, gêneros musicais — o que faz total sentido à proposta apresentada por Fémina desde o seu início como grupo: a de mesclar inúmeras sonoridades e em abordar diversas temáticas sobre a existência humana.

Tais propostas nos são finalmente apresentadas através da segunda canção do álbum, “Mi Eje”. Sofia nos introduz à música por meio do potente som reproduzido pelo ronroco argentino — uma das diversas variantes de seu instrumento de origem, o charango boliviano. Em seguida, a guitarra de Clara Miglioli e as batidas de cajón e a flauta transversal de Clara Trucco se misturam e nos imergem numa atmosfera que fica ainda mais potente quando as declamações existencialistas se iniciam. “Mi soy un forastero en falta de un monasterio […] Mi realidad aún es un misterio” [“Sou um estranho que precisa de um mosteiro (…) A minha realidade ainda é um mistério”].

As demais músicas do álbum de estreia não fogem dos questionamentos existencialistas feitos pelo trio, que também se refletem no próprio nome dado para a banda (“fémina“, em espanhol, significa feminino). “Falamos de tudo, mas nós realmente nos tornamos super-existencialistas, como falar do ser, de evoluir, e falamos do amor também, claro. Falamos de tudo. Depende do tema, mas sim, falamos muito do existir, digamos”, comenta Sofia em entrevista à Univision, no ano de 2016.

Trio Fémina

No caso de “Los Senos”, terceira faixa do disco, o que vemos é uma proposta em dialogar acerca do existir da mulher. “Duelen los senos de tanto doler / duele el ser de tanto ser / Habrá que ceder, exigirse existir / y extinguir el ser que duele / y ser sin doler” [“Doem os seios de tanto doerem / doe o ser de tanto ser / Terá que ceder, exigir a existência / e extinguir o ser que dói / e ser sem doer”]: aqui, a personagem relaciona a dor física e a dor da alma; a dor que habita o existir e o resistir feminino em nossa sociedade. Sofia discursa versos poderosos: é preciso que a mulher reconheça suas competências — a sexualidade, por exemplo — em uma sociedade que, a todo instante, tenta discriminá-las. Logo, a dor — ora paralisante — presente na existência feminina não pode calar a sua força.

“Eu não prometo o que professo. Ao final do dia, somos carne e osso” é declamada durante o início da segunda parte do álbum, através de Interludio 1, que segue com as canções “Deshice de Mi” (faixa-título do álbum), “El Amunche”, “Mas Vale Tarde do que Nunca” e “Muchacha”. As quatro canções marcam uma parte do disco que fala, principalmente, sobre auto aceitação, amor próprio, liberdade e superação. Em Deshice de Mi, a sintonia sonoramente alegre dos instrumentos antes vistos se misturam às palavras do trio: “Si soy o si fui / Así como así / Yo soy así” [“Se eu sou ou se fui / Só assim / Eu sou assim”].

“El Amunche” retorna com a associação entre música e natureza e nos apresenta uma atmosfera fantasiosa ao retratar uma lenda de um jovem mapuche (povo indígena do sudoeste da Argentina) que se apaixona por uma maitén (árvore sul americana e muito presente na Patagônia argentina). “Ele se veste de árvore para conquistá-la e nada… Se veste de cervo e nada… Até que finalmente se enterra ao seu lado, e assim permanecem unidos para sempre. Essa música é linda e é uma homenagem à nossa terra”, disse Clara em entrevista à Filo.news.

Em seguida, Mas Vale Tarde do que Nunca reafirma a pluralidade sonora do trio ao mesclar folk francês, mpb, samba e até um pouco de bolero, aos versos que retratam a superação de um amor frustrado: “Tarde pero aprendí / Mas vale tarde que nunca” [“Tarde, porém aprendi / Mais vale tarde do que nunca”]. A segunda parte do álbum é finalizada com Muchacha, contrastando o arranjo sonoro pop e melódico aos intensos versos que abordam questões de gênero ligadas à liberdade e amor próprio: “Poder libre expresarse, no espero agradarle / (…) Talvez rece a la gente, para que se respete” [“Livre para se expressar, não espero te agradar / Talvez eu reze pelas pessoas, para que se respeitem”].

“Menina louca, você sabe que não é melhor ser outra coisa”: a terceira e última parte do álbum se inicia com os versos presentes em Interludio 2, e são seguidos pela última canção do disco, a sensual e eletrônica Sin Ton Ni Son, na qual o trio narra a busca em aceitar as adversidades apresentadas anteriormente através da busca à essência, à evolução e ao amor.

Somado ao conjunto letra e melodia, a força do álbum Deshice de Mi também se exprime através das inúmeras performances ao vivo realizadas pelo trio: a apresentação de “Los Senos” feita para a Sofar Sounds em 2016 e de “Mi Eje” na estação de rádio KEXP em 2016, são alguns exemplos que nos mostram a habilidade corpórea do trio ao expressar, à sua maneira, a dualidade força/dor presente nas composições do álbum. A presença de palco é uma característica em destaque de Fémina: para além do poder sonoro, a corporalidade das integrantes é linda de se ver e contribui muito para a proposta artística do trio.

Fémina traz à baila a sonoridade latino-americana em sua melhor forma. Em suas canções, demonstram a sua identidade musical e regionalidade e, assim como já proposto por grupos como Ibeyi, a mistura de gêneros musicais explora — e extrapola  — as inúmeras fronteiras culturais.