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She-Hulk: Defensora de Heróis

Antes mesmo de sua estreia no Disney+, She-Hulk: Defensora de Heróis, sofreu uma série de críticas por parte dos “fãs” da Marvel. Após a exibição do primeiro episódio, vieram ainda mais críticas, um padrão que se repetiu semanalmente, a cada episódio lançado. Protagonizada por Tatiana Maslany, atriz aclamada por seus múltiplos papéis em Orphan Black, She-Hulk é a introdução da personagem Jennifer Walters no MCU.

Atenção: este texto contém spoilers

Logo no primeiro episódio descobrimos como Jennifer conquistou seus poderes após sofrer um acidente que fez com que o sangue de Bruce Banner (Mark Ruffalo) entrasse em seu corpo por meio dos ferimentos sofridos, mas se seu primo demorou anos para controlar o Hulk, Jennifer o fez com a graça e a certeza que somente uma mulher poderia ter, afinal, manter a raiva sob controle é algo que compreendemos e fazemos diariamente pelo bem da nossa segurança e saúde mental. Sendo assim, Jennifer não está realmente interessada em ser uma super-heroína e, muito menos, uma She-Hulk, nome que ela detesta e só começa a aceitar mais adiante na série. Ela quer continuar sua carreira como advogada e viver uma vida normal.

A cada episódio conhecemos mais da personalidade de Jennifer, seus problemas no trabalho, a maneira como procura entender seu lugar no mundo agora que tem poderes, e as várias questões que envolvem relacionamentos amorosos enquanto uma mulher de trinta anos. São temas praticamente universais — com exceção dos poderes, é claro — e perfeitamente relacionáveis a qualquer pessoa, mas parece que parte da audiência prefere se ater a pontos pouco lisonjeiros do roteiro de She-Hulk: Defensora de Heróis para desmerecer a série como um todo. Assim como boa parte dos filmes do Universo Cinematográfico Marvel, She-Hulk se apoia na comédia e nas piadas para desenvolver sua narrativa e não há o menor problema nisso, principalmente se quem está entregando as falas com perfeição é uma atriz do calibre de Tatiana Maslany.

She-Hulk: Defensora de Heróis é uma série divertida de acompanhar não apenas pelo viés da comédia, mas justamente por fazer graça de si mesma e do universo em que está envolvida. Jennifer quebra a quarta parede por diversas vezes enquanto lembra ao telespectador que está ciente do que acontece do lado de cá — ela sabe das críticas tanto quanto sabe que faz parte de uma série de televisão e usa desse conhecimento para fazer graça do MCU e do que os fãs esperam de suas produções. E é por meio desses estalos de consciência que vemos várias cenas pós-créditos fazendo chacota do apetite da Marvel por inserir nesses momentos pistas do que está por vir no seu universo e, às vezes, nenhuma informação relevante — impossível esquecer quando Capitão América (Chris Evans) deu uma bronca na audiência, em Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, pela falta de paciência do público de aguardar todos os créditos terminarem para descobrir o que vem a seguir.

Em She-Hulk, até mesmo esse mecanismo é utilizado de maneira diferente, favorável à série e seu viés cômico. Em alguns episódios os easter eggs estão, sim, nas cenas pós-créditos, em outras aparecem nas ótimas ilustrações de Kagan McLeod. O fato é que, mesmo ao final, She-Hulk consegue fazer graça de si mesma e do MCU. E nada melhor para ilustrar esse momento do que a season finale de sua primeira temporada em que Jennifer, em sua forma She-Hulk, sem concordar com o final que recebeu, decide quebrar a quarta parede e ir até a sala dos roteiristas para exigir outra conclusão para sua história, como a boa millennial fanfiqueira que ela é. Além da graça de vê-la exigir outro final, também fica a crítica a respeito da “fórmula Marvel” de fazer filmes: com uma virada de roteiro original e divertida, a crítica que fica por parte de She-Hulk: Defensora de Heróis é como a maior parte dos projetos do MCU acabam do mesmo jeito devido a tão falada fórmula de sucesso do estúdio. A aparição da IA chamada K.E.V.I.N., clara alusão ao chefe dos estúdios, Kevin Feige, não deixa de ser engraçada, mas sabemos que o buraco é muito mais embaixo quando envolve os profissionais responsáveis pelo CGI da Marvel e as exaustivas jornadas e condições de trabalho, algo que uma piada, por melhor que ela seja, está longe de resolver.

Após nove episódios lidando com seus novos poderes, clientes problemáticos e aplicativos de relacionamentos amorosos que só a colocam em encontros com homens de caráter duvidoso, Jennifer Walters merecia um final à altura de seu carisma. Ainda que ela precise descobrir o que deseja para seu futuro agora que tem poderes, a personagem é cativante o suficiente para fazer o que quiser, inclusive pedir por um final a sua altura. Mas aqui estou me adiantando, pulando logo para o final. O fato é que She-Hulk é uma série despretensiosa e divertida, daquelas que você escolhe para assistir quando quer ficar com um sorrisinho bobo nos lábios — e ela faz exatamente isso. É impossível passar imune ao carisma de Tatiana Maslany e é uma pena que o CGI não consiga acompanhar a fofura da atriz em seus momentos como She-Hulk.

A trama da primeira temporada não é muito mirabolante e mira no feminismo branco de sempre e essa é, de todo, a maior crítica à condução da produção. Ela não se aprofunda em nenhum assunto muito espinhoso mas, mesmo assim, não se furta a falar de trolls da internet, incels, fanboys, assédio, slut-shaming entre outros assuntos — o que é mais do que pode ser dito sobre qualquer outra produção da Marvel até então. Claro que a maneira de lidar com os temas, sem aprofundá-los, acaba por fazer com que o roteiro se torne um pouco fraco e sem complexidade, mas a série não deixa de ser um pequeno acerto em um mar de escolhas equivocadas das produções do MCU como um todo.

O universo de Jennifer Walters não difere do universo de uma mulher comum que lida diariamente com micro e macro agressões — agressões que surgem exatamente do fato da personagem ser uma mulher. Desde o sexismo casual do local de trabalho aos encontros com caras esquisitos e ataques na internet, não há nada que Jennifer experiencie que não seja comum à rotina de uma mulher. Jennifer é bombardeada pelas amarras do patriarcado a todo instante, tal como qualquer uma de nós — salvo as devidas proporções, visto que é importante sempre pensar no recorte racial e econômico para esse tipo de debate ser levado a sério. E, assim como cada uma de nós, Jennifer precisa engolir sua raiva, ranger os dentes em um sorriso e lidar com essas agressões com graça, controlando seus sentimentos o tempo todo para não ser descrita como emotiva, difícil ou terminar morta. Sua habilidade de guardar esses sentimentos é o que a faz uma Hulk tão no controle de si mesma, fazendo com que sua transformação seja muito mais simples do que no caso de Bruce Banner que demorou anos para controlar o Hulk. E isso é algo que Jen diz para o primo logo no primeiro episódio:

“Eu sou ótima em controlar minha raiva. Eu controlo o tempo todo. Quando assoviam pra mim na rua, quando um homem incompetente explica minha própria área de expertise pra mim. Eu controlo basicamente todo dia, porque se eu não controlar, vou ser chamada de emotiva, ou difícil, ou posso até literalmente ser morta. Sou especialista em controlar minha raiva porque faço isso mais do que você.”

E todo esse controle de Jen é testado diariamente, inúmeras vezes, principalmente quando um grupo na internet, liderado por uma pessoa autointitulada Hulk-Rei, inicia uma perseguição à She-Hulk em um fórum muito parecido com o 4chan, o reino dos incels, batizado de Intelligencia. Os participantes do fórum discutem o quanto Jennifer não é merecedora dos poderes do Hulk, chamando-a de vadia entre tantos outros nomes. Todo o controle de Jen, impecável durante toda a temporada, é colocado à prova quando ela, em sua versão Hulk, se prepara para receber um prêmio e vê sua intimidade exposta para todos os convidados: no palco, ao lado de outras advogadas, Jen assiste, impotente, a uma filmagem em que aparece transando com Josh (Trevor Salter), um homem com quem vinha se relacionando desde que o conheceu em um casamento. Além de roubar seu DNA e a fotografar enquanto dormia, Josh a gravou sem consentimento e a expôs para todos durante a premiação, causando a ira da sempre controlada e espirituosa Jen.

Ainda que Mallory (Renée Elise Goldsberry), colega de trabalho de Jen, tente alertá-la, ela explode em ira ao ver sua intimidade exposta para todos verem. E é isso o que a Intelligencia desejava, destruir a reputação de Jen, e é isso o que consegue quando ela, tomada por uma ira incontrolável, começa a quebrar as telas que exibem as cenas de sua noite com Josh. E sua ira é perfeitamente justificável e compreensível, visto que ter a intimidade exposta pode ser responsável por acabar com a carreira de uma mulher e, é claro, sua vida. Enquanto Jennifer explode de raiva, a plateia foge, aterrorizada, ao vê-la em modo Hulk, vendo tudo em vermelho, sem controle algum. Nesse momento, She-Hulk consegue pegar um dos incels da Intelligencia, mas é obrigada a soltá-lo quando se vê rodeada por guardas fortemente armados. E enquanto os membros do fórum conseguem escapar, todos os olhos estão voltados para She-Hulk mas, dessa vez, repletos de medo e pavor após a advogada mostrar sua raiva para o mundo. O ataque de Hulk-King à Jen não acertou apenas em sua privacidade, mas em sua popularidade enquanto super-heroína/advogada e celebridade, fazendo com que a opinião do público não mais estivesse ao seu lado em mais um típico caso de culpar a vítima pelo crime sofrido.

Enviada para a prisão devido ao seu descontrole, Jen recebe a opção de sair em condicional caso concorde em não se transformar em Hulk novamente. Ela perde o trabalho, tem que deixar seu apartamento e acaba voltando para seu quarto na casa dos pais. Com a vida de cabeça para baixo, Jennifer decide buscar conforto no rancho de Emil (Tim Roth) apenas para descobrir que lá está acontecendo um encontro da Intelligencia e que o líder dos incels, autoproclamado Hulk-Rei, é um de seus desastrosos matches do aplicativo de encontros, Todd (Jon Bass). É aí que tudo vira uma grande confusão com Todd injetando sangue de Jen em si mesmo, transformando-se em Hulk, Titania (Jameela Jamil) aparece atravessando uma parede e até Bruce Banner retornando para lutar contra Emil em sua forma de Abominação. Enquanto Jen observa a confusão, ela decide que já teve o suficiente e a tela inicial da Disney+ surge no meio do episódio.

E é aí que Jennifer salta da tela em busca da sala de roteiristas até encontrar a IA K.E.V.I.N. e pede por seu final feliz. Jennifer, com seu carisma imensurável, convence K.E.V.I.N. de que o que interessa para seu final não é uma grande luta com personagens em um CGI questionável, mas que ela, a protagonista disso tudo, chegue a uma evolução condizente com sua jornada. Jen faz com que Todd e Emil paguem por suas ações, envia Bruce para onde quer que ele estivesse antes e ainda pede para que Matt Murdock (Charlie Cox), com quem se encontrou anteriormente e teve uma química de milhões, fique por perto. Titania, por algum motivo incompreensível, ainda está por ali, tão perdida quanto sempre foi, ainda que sua intérprete seja realmente ótima. É um final que foge da curva dos padrões da Marvel, mas que, de alguma maneira, consegue ser satisfatório tanto para a audiência que aprendeu a se importar com Jen e sua jornada, quanto para a própria personagem que consegue ter sua própria história validada depois de tanta confusão.

Como Jennifer diz logo no primeiro episódio, olhando diretamente para a câmera, She-Hulk: Defensora de Heróis é a sua história. Mesmo com todas as aparições especiais — por mim, Wong (Benedict Wong) pode aparecer em todos os shows da Marvel — e easter eggs, além de todas as perguntas disparadas por Jen para K.E.V.I.N. (ela estará nos filmes, se juntará aos Vingadores? Quando teremos os X-Men na Marvel? Qual o problema de todos os personagens com seus pais?), fica claro que a série é inteiramente de Jennifer, o que é reconfortante por si só. Ela não precisa que Hulk ou o Demolidor apareçam para salvar o dia, ela dá conta sozinha. Ainda que o roteiro não seja brilhante, ele é divertido e uma ótima porta de entrada para Jennifer Walters e sua She-Hulk na Marvel, e tudo isso enquanto aponta a toxicidade do fandom e brinca com o gênero procedural das séries de advogados.

Só o tempo dirá se teremos uma segunda temporada da série, se Jennifer aparecerá ao lado dos Vingadores em algum momento ou se até mesmo fará uma pontinha na vindoura Daredevil: Born Again. O que fica, por enquanto, é uma série leve e divertida de assistir, personagens carismáticos como Jennifer, e misteriosos, como Nikki (Ginger Gonzaga), e a certeza de que ainda há potencial para muitas tramas. Criada para a Disney+ por Jessica Gao e com episódios dirigidos por Kat Coiro e Anu Valia, She-Hulk não está tentando inventar a roda, ser mais complexa do que precisa ou destruindo Matt Murdock ao colocá-lo saindo da casa de Jen, pela manhã, na famosa “walk of shame” [caminhada da vergonha] — afinal, a química entre Tatiana Maslany e Charlie Cox é tão incrível que seria um desperdício não aproveitá-la ao máximo.

O que a série pretendia, e o fez, é apresentar Jennifer Walters como uma mulher de seu tempo, uma millennial com seus 30 e poucos anos de idade tentando navegar em um mundo nem sempre lisonjeiro com ela, procurando um cara legal com quem passar o tempo e que, nas horas vagas, também é uma Hulk. Cada novo episódio é um pedacinho da vida de Jen como advogada, tentando equilibrar sua vida normal com ser a She-Hulk, além de seus diversos relacionamentos amorosos, suas amizades, sua família e todos os problemas normais que as mulheres enfrentam — e muito mais.