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De frente com Valkirias: Julia Anquier

A diretora e roteirista Julia Anquier voltou ao Brasil depois de cinco anos estudando e trabalhando em Nova York — e trouxe com ela seu curta-metragem, Adeus à Carne, que passou pelos festivais New Orleans Film Festival, Festival des Films du Monde, Oaxaca FilmFest, Fest New Directors, Festival do Rio e levou o prêmio Independent Filmmaker Project. Adeus à Carne, que pude ver no Festival do Rio, onde competiu pela Première Brasil, é um retrato jovem e inovador de uma situação de violência: passado no Rio de Janeiro e protagonizado por um grupo de amigas, o curta apresenta uma narrativa de estupro e vingança, transformando e subvertendo as expectativas do público quanto aos papéis limitados reservados às mulheres.

O filme é seu primeiro grande projeto autoral — antes disso, colaborou com projetos de outros cineastas e explorou pequenos projetos pessoais. Agora, sua carreira está deslanchando: depois de Adeus à Carne, já trabalhou no desenvolvimento de duas séries para o canal HysteriaEstrangeiras e ¼ Delas — e atualmente está dirigindo o primeiro clipe da Mc Gabz, “Do Batuque ao Bass”. A experiência jovem e feminista é parte fundamental de todos os seus trabalhos, que mostram seu talento, criatividade e investimento na exploração artística de temas muito importantes.

A cineasta conversou com a gente, falando sobre Adeus à Carne, seus atuais projetos, feminismo, expectativas de gênero, pressões da juventude e experiências cinematográficas.

Entrevista: Julia Anquier

Uma das coisas mais interessantes do Adeus à Carne, para mim, foi o universo tão brasileiro, tão carioca, tão jovem, tão feminino — um universo que é nosso de um jeito pouco explorado e mostrado na mídia. O quão deliberado ou natural foi, pra você, criar um filme nesse universo? Era uma das suas prioridades? Surgiu espontaneamente por ser a sua experiência?

JULIA ANQUIER: Quando sentei pra escrever o filme, a única coisa que eu sabia era que queria que o filme fosse carioca, mas carioca do mesmo jeito que eu sou. Morando em outro país, eu sentia muita falta de não ter muitas referências visuais que espelhavam minha cidade, minhas experiências, minha vida, inclusive para poder compartilhar com meus amigos estrangeiros de onde eu venho. Daí nasceu uma necessidade grande de criar esse conteúdo.

Além disso, o quanto esse universo se refletiu no processo de produção? Lembro quando você estava gravando a cena do bloco de Carnaval e procurando figurantes, mas não acompanhei de perto o resto do processo. Foi importante a equipe e os atores estarem inseridos nesse universo real que se assemelha ao filme, de certa forma?

J.A.: Foi fundamental ter uma equipe que conhecia o universo do qual estávamos falando. Eu já estava morando fora há quatro anos então a minha equipe me ajudou muito a readaptar certas lembranças que eu tinha. Nesse dia do bloco também foi imprescindível que meus amigos fizessem a figuração, pois são eles que populam esses espaços na “vida real”. Além do mais, filmamos sem música muitos takes por conta da captação de som, então eles tinham que saber como se comportar mesmo sem estímulos.

(AVISO DE GATILHO: estupro) O enredo do curta é focado em uma violência de gênero muito específica e comum, o estupro. No entanto, a narrativa tem um viés feminino e um desfecho específico que fogem do padrão do que vemos em histórias sobre mulheres estupradas, em que normalmente o estupro é usado para mover a história e confinar a mulher a um estado de vítima. Como foi seu processo, no desenvolver da trama, com o cuidado relacionado a esse lugar e a essa subversão?

J.A.: Quando eu estava escrevendo o curta, estava um tanto obcecada por Thelma & Louise. Isso se juntou à minha vontade de fazer um filme no Rio, sobre meninas cariocas, e resolvi fazer uma homenagem ao filme de certa maneira. Também estava interessada em algumas teorias feministas sobre o estupro. Essas feministas — especialmente Sharon Marcus (Fighting Bodies, Fighting Words: a Theory and Politics of Rape Prevention) e Virginie Despentes (Teoria King Kong) — pregam que a vítima reaja à agressão por diversas razões, seja para impedir o ato, para criar machucados que servirão de prova para o crime (numa sociedade onde a palavra da mulher-vítima não parece ser suficiente) e principalmente para que as mulheres parem de ser cúmplices de seus próprios estupradores. Pois, no momento em que um potencial estuprador se vê em situação oportuna, ele não conta com a reação da vítima, ela não é um obstáculo, pois já estamos muito bem domesticadas a não reagir à esse tipo de agressão. Acho que está na hora de mudar isso, então quis colocar a faca na mão de uma personagem e fazer com que elas reajam e sejam protagonistas de suas próprias vidas. E em relação à esse estado de vítima, ele também é um tanto mentiroso. As mulheres que já sofreram esse tipo de agressão não estão todas deprimidas, derrotadas, sem conseguir seguir com sua vida, pelo contrário. Num país onde uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, nós teríamos uma grande parcela da população inválida se esse fosse o caso.

Quem/quais são/foram suas inspirações profissionais e artísticas — tanto para o Adeus à Carne, quanto para sua carreira e sua visão sobre o cinema de forma geral?

J.A.: Essa pergunta é muito difícil de responder. É impossível fugir da pequena lista de mulheres diretoras, claro! Um grande inspiração estética é a Sofia Coppola, que capta o universo feminino adolescente de forma delicada e forte. Eu também gosto muito de uma diretora inglesa chamada Andrea Arnold, ela é uma grande inspiração para mim, principalmente seu último filme, American Honey. Ela apresenta personagens femininas muito interessantes, sempre muito marginais, mas com muita verdade e humanidade, seus personagens são sempre profundos e não se limitam aos estereótipos. Acho que o Almodóvar também tem muita influencia na maneira como eu vejo o cinema. Ele sempre me lembra que um filme é só um filme e que a gente tem que se divertir também, que nem tudo precisa ser tão correto e verossímil. Para o Adeus à Carne as duas grandes inspirações foram Thelma & Louise e Spring Breakers, do Harmony Korine, que é um filme que eu aprendi a gostar muito.

Uma questão que surge muito entre as colaboradoras do nosso site quando a gente conversa sobre arte produzida por mulheres jovens é o quanto a questão da idade afeta o trabalho, a produção, as pressões. Afinal, o tempo é um assunto muito presente na nossa geração — a pressa para produzir e consumir, a valorização da novidade acima de tudo… Você sente uma influência da sua idade no seu trabalho? Ou alguma pressão ligada a isso?

J.A.: Eu acho que a minha idade tira um pouco da pressão, na verdade. É como se errar fosse permitido por eu ser jovem. Eu não sinto muita pressa, acho que sou bem tranquila nesse sentido de saber que existe um momento para tudo. Acho que se eu fizesse um longa e passasse para todos os festivais e ganhasse prêmios e fosse tudo incrível aos 24 anos a vida não teria mais tanta graça depois disso, né? Precisa de um crescendo — não só para manter a gente interessada, mas também para que estejamos prontas para esses grandes passos de vida e de carreira e essa sabedoria a gente só alcança com o tempo.

Você agora está produzindo conteúdo para o Hysteria, certo? Quer contar para a gente um pouco sobre o canal, os projetos que você está desenvolvendo dentro dele e o que te interessa e motiva nesse tipo de trabalho, que funciona de uma forma diferente de um filme mais autoral como Adeus à Carne?

J.A.: O Hysteria é uma plataforma de vídeos, textos, podcasts, playlists e outras coisas produzidas e idealizadas por mulheres. O mais legal de trabalhar nessa configuração é que muitas das minhas preocupações com relação a conteúdo (que conteúdo queremos produzir e apresentar para o mundo), formato (como apresentá-lo) e a quebra de padrões e estereótipos são compartilhadas pelas minhas chefes e colegas. Isso é muito acolhedor, não ter que ficar constantemente se explicando. Eu desenvolvi duas séries para o canal: Estrangeiras, que já está no ar, e ¼ Delas, que deve entrar no ar no final de janeiro. Eu acho esses projetos tão autorais quanto o filme pois eu participei de absolutamente todas as etapas do processo, desde a ideia inicial, que foi minha, até a edição e finalização. São só formatos diferentes que devem ser respeitados.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!