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Crítica: Docinho da América

“Então você é uma garota do Sul. Um verdadeiro Docinho da América, como eu.”

Uma garota, aproximadamente 18 anos, com dreads e várias tatuagens, está catando comida do lixo em frente a uma loja de conveniência junto de duas crianças. De repente, ela vê um grupo de jovens barulhentos entrando na loja; eles chamam a sua atenção. Ela também entra, junto com as crianças, e observa aqueles jovens fazerem bagunça, derrubando produtos, dançando em cima do caixa, não estando nem aí para os olhares reprovadores dos demais clientes. Um deles a atrai, mas eles são expulsos da loja. Ela vai atrás deles, o jovem que a atraiu a está esperando. Ele pergunta se ela quer rodar os EUA trabalhando como vendedora de revistas. Ela aceita.

Assim começa a história de Star (a estreante Sasha Lane, incrível e hipnotizante em seu primeiro papel) em Docinho da América, uma garota pobre do sul dos Estados Unidos, que precisa cuidar de duas crianças fruto de um pai bêbado e uma mãe ausente, e que vivem em um lar abusivo. Ao conhecer Jake (Shia LaBeouf, um dos poucos rostos conhecidos do filme), ela vê a oferta de cair na estrada como uma oportunidade de finalmente fugir dos abusos e da pobreza, de finalmente ser livre. Star então embarca nessa road trip pelos EUA com um bando de jovens vendedores de revistas tão desajustados quanto ela, cada um tentando fugir de uma realidade infeliz para, quem sabe, ter um futuro diferente.

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Ao assistir ao filme da britânica Andrea Arnold — vencedora do Oscar de Melhor Curta-Metragem em 2005 por Wasp e diretora da adaptação de 2011 de O Morro dos Ventos Uivantes —, eu só conseguia pensar em Jack Kerouac e no resto da Geração Beat, um dos maiores movimentos da nossa contracultura moderna, precursora do movimento hippie, punk, feminista e tantos outros. Foi o movimento onde os marginalizados pela sociedade começaram a ter voz. Além de Jack Kerouac, nomes como Allen Ginsberg, William S. Burroughs, Diane Di Prima, Elise Cowen eram escritores e poetas desse movimento que ia contra a normalidade vigente na sociedade. Eram escritores que estavam cansados do estilo de vida imposto no período pós-Segunda Guerra, no qual a sociedade americana era guiada pelo consumo desenfreado determinado pelo American Way of Life e o capitalismo.

Em seus poemas e livros, esses escritores colocavam em palavras tudo o que estava entalado em suas gargantas, denunciando a hipocrisia do modo de vida pacato americano, falando abertamente de sexo, feminismo, homossexualidade e drogas. Allen Ginsberg foi processado inúmeras vezes por conta de Uivo, livro de poemas que é literalmente um uivo de libertação de toda uma geração, no qual admite que é homossexual e fala abertamente sobre sexo. Porém, ao assistir Docinho da América, me lembrei imediatamente da obra que se tornou a “Bíblia Hippie”, escrita por Jack Kerouac: On the Road — Pé na Estrada. O livro foi e ainda é um marco do movimento beat, no qual Kerouac narra sua jornada pelas estradas dos EUA com o seu amigo Neal Cassidy, considerado herói dos poetas beats (porém nos livros Neal era Dean Moriarty e Kerouac, Sal Paradise). On the Road é uma celebração da liberdade, sem hipocrisias, mostrando o “belo” e o “feio” da América.

E se os “vagabundos iluminados” da Geração Beat vivessem nos dias de hoje, eles provavelmente fariam parte daquele grupo de jovens vendedores de revistas, caindo na estrada, sem rumo certo, parando em hotéis de beira de estrada, fazendo festas ao redor da fogueira, com sexo, bebedeiras, drogas e até roubos. Sendo livres, em sua própria liberdade anárquica, em uma América capitalista pós-crise, que ainda tenta vender o sonho americano, mesmo que várias camadas da sua sociedade vivam na pobreza e nem tenham perspectiva de mudança. Muitos desses são jovens delinquentes que têm como única chance de trabalho integrar esses grupos de vendedores de assinaturas de revistas, em um mundo cada vez mais digital onde quase ninguém lê revistas impressas.

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Ao longo das 2 horas e 30 minutos de filme, acompanhamos Star e o grupo de jovens vendedores viajando pelo Sul dos EUA, em paisagens que vão do subúrbio de cercas brancas e jardins floridos aos bairros mais pobres, com famílias apinhadas em trailers. O “belo” e o “feio” da América, sem a polidez Hollywoodiana, sem hipocrisias, assim como os poetas beats derramavam em suas poesias: a verdadeira América.

Star e o grupo são liderados por Krystal (Riley Keough, de Mad Max: Estrada da Fúria), a “alfa” dessa alcateia de desajustados, que os lidera com um pulso quase tirânico, mostrando que nem mesmo a liberdade na estrada é sem preço. Todos devem conseguir vender as assinaturas de revistas; o preço pela pouca ou nenhuma venda é ser surrado pelos demais do grupo. Ninguém questiona Krystal sobre para onde envia o dinheiro que eles ganham, eles só sabem que parte dele serve para pagar as acomodações e a alimentação. O resto vai para uma empresa que eles não sabem o nome, mas que arranca boa parte dos seus lucros e que não liga para o seu bem-estar. Ao mesmo tempo em que esses jovens vivem uma liberdade cheia de anarquia, são usados como máquinas para manter o capitalismo de forma voraz; o retrato do que é a América, sem rodeios.

Em meio a essa jornada, acompanhamos o crescimento de Star e sua tentativa de se encaixar de alguma forma no mundo. Ela ainda sonha em ter uma casa e filhos, em se estabelecer, em ter ela mesma o tal do sonho americano. Ingênua, acaba se colocando em perigos reais, causando divergências entre ela e Jake, e entre ela e Krystal. Jake e Krystal são os dois contrapontos de Star no filme: Jake é o interesse amoroso de Star, selvagem, malicioso, serve de exemplo como o melhor vendedor, ao mesmo tempo que tem rompantes de raiva. É toda essa selvageria que atrai Star e, ao mesmo tempo, que a repele; ela sonha em se casar com ele e se estabelecer, no entanto sabe que isso é impossível — tanto pelo temperamento do rapaz quanto pelo próprio gosto da liberdade que Star adquire. Já Krystal é os “pé no chão” de Star — tendo um desafeto pela protagonista desde o início, é ela que fala para Star esquecer seu sonho de uma vida perfeita com Jake, pois nunca daria certo. Apesar de levemente cruel (e de Arnold usar o já batido clichê de rivalidade feminina), é Krystal que desperta Star para a sua realidade no momento, e que a faz enxergar que o mais próximo, por enquanto, que ela terá de uma família é aquele grupo de desajustados. E que está tudo bem, pois ela mesma já se afeiçoou àquela alcateia de lobos solitários, sendo ela mesma uma deles.

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O grupo de vendedores acaba se tornando a verdadeira família de Star, as únicas pessoas com quem ela realmente pode contar naquela situação. Em um dos momentos mais lindos do filme, QT (Veronica Ezell), uma das garotas do grupo, começa a cantar “American Honey” de Lady Antebellum, mas ela está rouca, a voz quase não sai; no entanto, todos se unem para cantar juntos. Todos se apoiando, pois estão na mesma situação, alguns com saudades de casa, todos sem rumo, só tendo um ao outro.

“Firme como um pastor
Livre como uma erva
Não podia esperar para ir
Mas não estava pronta para partir
Tão inocente, pura e doce
Docinho da América”

“American Honey” (Lady Antebellum)

Andrea Arnold produziu de forma independente Docinho da América, com o orçamento bem pequeno (para os padrões hollywoodianos) de 3,5 milhões de dólares. Todos os atores (tirando, é claro, Shia LaBeouf e Riley Keough) são na verdade não-atores (o pessoal do grupo de vendedores foi todo escalado por Arnold em testes feitos em frente ao Walmart). Incluída aí está Sasha Lane, que foi descoberta por Andrea enquanto tomava banho de sol durante o Spring Break e é uma grata surpresa. Lane traz uma interpretação natural, pueril e orgânica de Star — não tem como não se apaixonar por ela e por sua jornada de autodescoberta. Docinho da América não é um filme de grandes dramas, nem de grandes ações. É sutil, às vezes arrastado, o que pode não agradar a todos. Porém, é um retrato da América sem a higienização hollywoodiana, e de uma juventude sem perspectivas.

Star saiu de casa a fim de fugir de uma realidade de abusos e pobreza, sem rumo, mas ainda sonhando com uma vida pacata nos moldes da sociedade americana. Acabou encontrando uma vida na estrada, uma vida de liberdade, que não deixa de ser difícil, feia e violenta, ainda que bela e divertida e sem hipocrisias. Com festas ao redor da fogueira, com um grupo de desajustados que ela pode, sim, chamar de família. Rodando pela verdadeira América. Aquela América dos poemas da Geração Beat.

“Porque os únicos que me interessam são os loucos; os loucos por viver, loucos por falar, loucos por serem salvos, que desejam tudo ao mesmo tempo e nunca bocejam ou dizem coisas clichês, mas queimam, queimam, queimam como fogos de artifício pela noite.”

Pé na Estrada (Jack Kerouac)

Camila Novaes tem 22 anos e sempre viveu em um triângulo amoroso com a Literatura e o Cinema. Escolheu a primeira e está fazendo graduação em Português e Literatura na UERJ, porém vive um relacionamento aberto que sempre inclui o Cinema. Nerd, feminista, também é canceriana com ascendente em Leão e lua em Sagitário (God Help the Girl!). Em Hogwarts é Sonserina sim, Sonserina sim (mas promete que não morde)!

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