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Nem doces, nem travessuras: o Halloween e a celebração da memória em Carmen Sandiego

O Halloween é, culturalmente, uma festa associada às fantasias, às travessuras e aos doces — características que representam as transformações e influências cristãs sobre a celebração pagã dos celtas. Quando surgiu, a véspera do Dia dos Mortos era o momento em que os vivos se protegiam dos espíritos malignos que vinham do seu mundo para destruir colheitas e gerar o caos, e, para evitar maldições e pragas, era necessário fantasiar-se de formas horríveis e oferecer a eles um banquete.

Dentre as várias transformações que a festa sofreu nas culturas de origem celta (os Estados Unidos, por exemplo) com o passar dos anos, não existe nenhuma que retire dela o seu caráter assustador: as fantasias representam sempre as imagens e símbolos horríveis dos quais nos afastamos regularmente e as “travessuras” são um comportamento malvisto em qualquer outro dia, menos naquele. É, portanto, apenas no Dia dos Mortos que podemos, em tese, agir como verdadeiros vilões e incorporar as maldades humanas às nossas atitudes — conceito que é explorado em diversos filmes que representam o feriado.

E, embora a cultura pop tenha se apropriado do Halloween para muito mais que filmes de terror, fazendo com que a festa também fosse o tema de grandes franquias que subvertem esse caráter horripilante, um dos seus elementos cruciais continuou sendo repetido à exaustão: em algum momento, as bruxas são derrotadas, os fantasmas e monstros são desmascarados como apenas homens fantasiados e os vampiros viram poeira sob a luz do sol; reforça-se, assim, a noção de que a dualidade bem versus mal será sempre resolvida em favor dos “mocinhos” quando a noite do dia 31 acabar.

No Halloween de Carmen Sandiego, entretanto, como em toda a série, essa dualidade é esticada ao seu limite: o “bem” e o “mal” não são conceitos estáticos, mas ideias que mudam de lugar e de intensidade a partir do nosso ponto de vista. Não é à toa que torcemos para uma anti-heroína, e nem é por nada que o desenho não é formado apenas pela equipe da Carmen contra a equipe de professores da V.I.L.E.: há também o papel dos agentes secretos que tentam “cumprir a lei” — e vivem falhando, vale lembrar.

Valkirias - Halloween e Carmen Sandiego - imagem 1

A terceira temporada da animação, que estreou recentemente na Netflix e, até o momento de publicação deste texto, conta somente com cinco dos dez episódios lançados, continua pensando a relação entre bem e mal, esticando-a até onde é possível, mas, dessa vez, contribui para a dissolução dessa visão dual dentro de um dos mais famosos feriados da cultura americana. No mesmo esquema das temporadas anteriores, ainda vemos Carmen e sua equipe viajando pelo mundo e tentando impedir que crimes sejam cometidos, mas, dessa vez, há um destaque especial para o feriado em questão e as suas diferentes representações culturais. Não vemos apenas a solução dos homens malvados fantasiados; no seu lugar, somos apresentados a um ponto de vista completamente diferente sobre o Halloween.

O Día de los muertos é uma festa tradicional mexicana — que também acontece em alguns países da América Central — cujo objetivo é comemorar e lembrar os antepassados. A véspera desse feriado, ou seja, o dia 31 de outubro, é, portanto, um dia de celebração, cuidado e lembrança: montam-se altares, acendem-se velas, penduram-se fotos; tudo com o objetivo de receber os espíritos dos entes queridos e falecidos em suas casas, lembrando-os e comemorando-os, agradecendo por suas vidas e seus sacrifícios.

O Halloween em Carmen Sandiego é esse o feriado que se contrapõe às maldades dos professores da antiga academia de ladrões da protagonista. Sim, o Dia dos Mortos pode ser uma festa horripilante; sim, os bandidos serão vencidos no final das contas. Mas o “Halloween” também pode ser essa outra coisa: colorida, bonita, esperançosa. Pode ser um espaço de completa imersão na história de quem nós somos, de gratidão pelos nossos antepassados.

Dentro do enredo da série, celebrar e comemorar um feriado que fala sobre as nossas origens e a nossa memória tem um peso diferente: Carmen ainda está descobrindo quem foi sua família e de onde ela veio. E embora parte da sua vida seja moldada pela dualidade entre o bem e o mal, ou pela sua dissolução, é fora dessa disputa que essas descobertas podem aparecer: é em um porta-retratos no fundo de uma cena; em uma construção que será identificada depois, por um amigo; em um ângulo de foto que pode ser reproduzido. Não é atrás de máscaras assustadoras nem entre doces que ela descobre o seu passado — é pela celebração dele.

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A memória e a sua preservação é uma característica comum aos povos americanos que não fazem parte do grupo “desenvolvido”, cuja história é marcada por uma série de ataques externos à democracia e às chances de sobrevivência. O cuidado com o que os forma como nação, mas também como famílias e indivíduos, é um resultado direto do constante apagamento dessa história que está sempre sendo recontada pelos “vencedores”, e aparece em livros, filmes e séries de maneira muito explícita. Em Carmen Sandiego não é diferente. Na verdade, é uma ação extraordinária da parte dos produtores, que levam a sério a decisão de dar à Carmen um passado latino, mesmo nesses detalhes.

No fim das contas, o Halloween de Carmen Sandiego apresenta ao espectador de fora do território estadunidense uma visão menos hollywoodiana da celebração que permite também nos permite conhecer um pouco mais da cultura que nos forma — que não tem o hábito de celebrar a festa com doces, mas que anualmente é marcada por procissões, por idas ao cemitério, por um dia de luto pelos nossos entes partidos. Quando viajamos com Carmen, salvamos obras de arte e conhecemos essa outra forma de pensar a morte e a história, de alguma maneira estamos também conhecendo o que nos faz uma nação de memória — e a importância dessa característica para a nossa construção enquanto sociedade. O que me parece, enfim, um jeito muito mais interessante de honrar os espíritos e comemorar o Halloween.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!