Transição capilar, de uns tempos pra cá, tem sido um assunto bem recorrente nos blogs e canais de YouTube das influenciadoras. A Netflix não ficou fora dessa “onda” com Felicidade Por um Fio, que chegou à plataforma no dia 21 de setembro.
Muito embora o termo seja mais aplicado com relação a meninas negras (“transição capilar” e “black power” têm raízes muito próximas e muito ligadas ao movimento negro e ao movimento de resistência), nós também temos visto muitas blogueiras brancas documentarem suas próprias transições. Isso não é ruim, mas acaba virando um produto quando atrelado a um discurso que é pouco político, e causa um certo estranhamento.
O filme conta a história da Violet Jones (Sanaa Lathan), que é uma publicitária com mais de trinta anos, super bem sucedida, no auge da sua carreira trabalhando com contas de beleza e femininas, e que está em um relacionamento heterossexual sério com um homem também muito bem sucedido. Naturalmente, ela espera ser pedida em casamento, porque esse é “o caminho natural das coisas” segundo o jeito como ela foi criada. O ponto de partida da história se dá quando uma discussão com o namorado a leva a perceber que ele não tem intenção de se casar com ela e Violet se vê sem aquela coisa que a prendia à realidade e aos padrões.
A narrativa de Violet é muito parecida com o que eu gosto de chamar de “conto da Beyoncé branca”, que nada mais é que a surpresa que a mídia e as pessoas tiveram quando a viram falar de assuntos que cabiam à população negra, justamente por esse ser o seu lugar de fala. Quando Violet se vê tendo que sair do padrão liso para sua realidade cacheada, as pessoas ao seu redor, e ela mesma, de repente percebem que ela é negra. Uma negra que foi criada para ser uma mulher branca e é assim que ela age, mesmo sabendo no fundo que é diferente. Isso fala demais sobre o apagamento que as mulheres negras sofrem a vida inteira, a desconstrução de sua própria negritude para se encaixar em um padrão e viver uma vida que não é sua.
É aí também que entra outro ponto: como assim viver uma vida que não é sua? Durante toda a sua vida, Violet foi preparada para ser uma dona de casa e ter filhos e fazer o que se espera de uma mulher, e está feliz em colocar sua carreira em segundo plano. Esse tipo de pensamento muito me lembra as discussões do Dia Internacional da Mulher onde as mulheres brancas dizem não querer flores, e sim, mais poder, o que não é uma realidade para a mulher negra. É preciso fazer parte de um clichê para poder então rejeitá-lo, quem vai culpar a mulher negra por querer ser amada e ser a dona de casa? Ou receber flores no Dia da Mulher? Ou ser protagonista de comédias românticas ridículas?
Mas, como disse a Gabi Oliveira no seu vídeo sobre o filme, Felicidade Por um Fio é muito mais do que isso: é quase como se a questão da transição capilar fosse apenas uma base para que a vida da Violet se transformasse quase 100%. Eu digo “quase” porque, bom, ela continua ocupando os mesmos lugares de sempre, apenas com outro olhar – e isso é ótimo!
No ensaio autobiográfico que é introdução do livro Quem tem medo do feminismo negro?, da Djamila Ribeiro, a autora diz que “Reconhecer fragilidades, dores e saber pedir ajuda são formas de restituir as humanidades negadas” e é justamente nesse ponto que o filme toca, na necessidade de continuar se afirmando como humana e como merecedora de clichês. É muito comum que a cultura pop trate a mulher negra como solução de todos os problemas, sábia, a melhor amiga conselheira, a mulher que é muito forte e não precisa de macho, e o que Felicidade Por um Fio diz é: estaremos aqui na comédia romântica, sim! Tem lugar pra explorar um problema inerente à autoestima negra mas também tem lugar para ela crescer como mulher, como profissional e ainda assim querer ser mulher de alguém. Ao nos enxergar nesse tipo de filme com um clichê “idiota”, nós normalizamos a mulher negra na vida.
Desde os momentos-chave do filme, como a cena em que ela raspa o cabelo, até coisas que acontecem na sua vida profissional, como ela querer fazer publicidade para coisas que não são só produtos de beleza, a história de Violet é bem construída e ao mesmo tempo mostra que fazer a transição capilar não é a resposta para todos os problemas, e sim o primeiro passo para o autoconhecimento, um processo que dura para sempre. E que é muito melhor quando a gente começa aceitando quem a gente realmente é. Além de discussões sobre a publicidade e o jeito como ela retrata a sociedade, coisa que a personagem só enxerga quando se vê “fora do padrão”, também cabem no filme leves pinceladas com outros tipos de crítica, como a masculinidade tóxica trazida por Will (Lyriq Bent), que é um cabeleireiro – profissão que carrega um esteriótipo do homem gay – e pai solteiro, mas é o garanhão que mexe com a vida de Violet.
Como todo bom filme clichê de comédia-romântica, ele tem uma narrativa às vezes previsível e às vezes superficial, mas que nos mostra MUITO. Foi um alívio assistir a um filme que retrata uma parte tão importante da história de uma mulher negra de forma tão leve, mas ao mesmo tempo muito poderosa, e que nos insere em algo que deveria ser tão simples e normal para nós quanto uma história de amor.
** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!
** A arte do banner é de autoria da artista Raquel Gouvea.