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A Filha Perdida: mergulhadas em histórias de nós mesmas

A Filha Perdida é um livro que termina no começo. Com um acidente e uma frase de impacto: “as coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender”.

O ferimento de Leda, uma lesão inexplicável no lado esquerdo do corpo causada por um alfinete de chapéu, era, na verdade, reflexo da própria culpa. Como se Leda buscasse essa agressão como um jeito de se redimir do mal que acredita carregar em si. Quando sente a pontada no corpo, ela diz: “Senti um pouco de frio e medo”, e como a própria mãe quando morreu, ela se sente também um pouco morta, mas ainda assim, bem. Ela acha que recebeu o que merece.

A primeira pergunta que o livro me faz é: quem é a filha perdida à qual o título se refere? Elena, Nina, Leda, Bianca, Marta, ou todas elas, incluindo as bonecas Lenu e Mina, que nem são vivas e já se perderam? Os nomes próprios nos livros de Elena Ferrante se confundem em poucas sílabas. Parece que os personagens não têm direito a nomes diferentes e únicos. Vão se misturando entre si em nomes simples, incluindo apelidos pequenos, para mostrar que são todos feitos da mesma matéria.

Medo, culpa, traumas, memórias de famílias imperfeitas. Não estamos todos perdidos em histórias assim? Parecidas entre si, que se repetem, até que a gente se dê conta de que nossas relações não são assim tão intrincadas ou exclusivas. As famílias se parecem, para que a gente possa aprender com as histórias das famílias dos outros. Leda não precisa se demorar muito no sol para encontrar em outra família a projeção do seu passado. Os fantasmas, como as bonecas, seguem vivos.

A pergunta que me interessa na história é: o quanto de Leda carrego em mim? O quanto esse incômodo que me acompanhou durante toda a leitura diz respeito ao julgamento por essa mulher distante, autocentrada e egocêntrica, e o quanto é justamente pelas partes de egoísmo que enxergo do mesmo jeito em mim? Em certo momento, Leda admite: “Eu estava cheia de mim mesma. Eu, eu, eu: isso é o que sou, isso é o que sei fazer, isso é o que devo fazer.” E é admirável essa vontade da personagem de se priorizar. Esse cansaço com as demandas externas, em atender aos egoísmos dos outros. Por que quando Gianni se prioriza e foca em seu trabalho é uma ambição corajosa? E com Leda se trata de um impulso egoísta?

Quando ela analisa os homens, demonstra compreensão, através do não julgamento. Na ausência do pai, que mal aparece em seus pensamentos, o personagem invisível é, portanto, livre. Enquanto é sua mãe a dona de suas reclamações, o alvo do seu ódio, por quem ela não aparenta sentir saudade nem remorso. O problema de Leda não está em priorizar a si. O problema está em fugir de si. É a não aceitação de quem se é, que causa os momentos repetidos, o mesmo padrão de erros que são, na verdade, a oportunidade da vida, dizendo: chegou o momento de aprender. Sua mãe não era tão ruim assim. Nem é tão ruim assim ser você mesma.

É justamente por reprovar tanto Nápoles, com suas famílias de gestos exagerados e pouca cultura, com suas mulheres iguais a Rosalia, e um dialeto matuto, que sua própria história a persegue. Enquanto Leda continua recusando seu passado, ela continua se comparando com mulheres como Nina, apenas pra concluir que Nina também tem seus erros e inseguranças. Ninguém está imune às próprias sombras. Quem vê de fora, consegue entender o modo como ela tenta deter Nina de cometer os mesmos erros infantis do seu passado. Ela tenta arrancar de Nina a esperança de encontrar na aventura, a satisfação que não encontra na vida cotidiana. Como a mesma disse, quando estava grávida de Marta: “parecia que não havia prosa, verso, figura de linguagem, frase musical, sequência de filme ou cor capaz de domesticar a fera sombria que eu carregava no ventre”.

“Uma mãe não é nada além de uma filha que brinca.”

Isso porque a beleza da realidade, com suas cores e poesias, só aparece de fato quando se aceita a realidade pelo que ela é também de imperfeita. Com suas minhocas escondidas no ventre, as pinhas que nos atingem nas costas, as comparações, traições e renúncias. Outro dia, vi um meme que dizia que a bibliografia de Elena Ferrante é sobre personagens que sempre se comparam com mulheres mais bonitas. Seja a amiga de infância mais bonita, a tia inteligente e mais bonita, a mulher desconhecida na beira da praia ou qualquer outra, exceto nós e as que nos lembram de nós, são sempre mais bonitas e melhores.

Tenho certeza que a identificação com essa ideia é socialmente construída: desde que nascemos, fomos ensinadas a competir. Elena Ferrante entende essa disputa e escancara que, nessa comparação, todas saímos perdendo e nos sentindo inferiores. Leda se compara com Nina, a achando melhor mãe e mais bonita. Mas Nina se compara com Leda e sente exatamente a mesma coisa: Leda sim é livre e independente. Lê e escreve o dia todo e, portanto, sabe das coisas.

Afinal estamos todas construindo essas projeções sobre felicidades, achando que os outros sim têm o que nos falta. E logo nos apressamos em ter filhos para buscar o tal amor incondicional, ou amar desesperadamente o professor universitário que, esse sim, vai nos preencher, ou largar tudo e tentar a vida no Canadá, ou seja lá qual gesto impensado da vez, apenas para tempos depois, perceber que bom mesmo era descascar frutas e fazer serpentes na mesa da cozinha velha, e então parar o que estiver fazendo e voltar para dentro de si. Não para os outros nem pelos outros, mas por um amor desinteressado e profundo nutrido por nós mesmas.


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