É de conhecimento prático geral — e não só na teoria dos acadêmicos e estudantes de comunicação — que a realidade que experimentamos hoje é intensamente imagética. Passamos horas lendo tweets engraçados, trocando figurinhas com amigos e vendo filas de stories e fotos de gente bonita e (aparentemente) bem sucedida no Instagram. É no interior dessas práticas lúdicas, entretanto, que encontramos uma dinâmica de natureza contraditória. Busca-se constantes e incansáveis novidades em termos de conteúdo, porém o que, por forças consequentes e contrárias, germina-se são repetições exaustivas de tendências momentâneas, que rapidamente alcançam uma saturação do que toleramos ver e cultivar nas redes.
Essa propensão para sucessos iterativos e passageiros não poderia deixar de escorrer sobre o campo do fazer artístico. Tratando-se da fotografia, então, seria quase impossível argumentar de forma positiva quanto a durabilidade das imagens e de suas mensagens no espaço confinado das plataformas digitais. A sensação primordial que compartilhamos, a partir disso, é a de que o retrato, a paisagem, o mundo visual como um todo, se sustenta hoje enquanto produto a ser consumido em tempo recorde na linha do tempo. Independência criativa toma o lugar de coadjuvante, à medida que se moldar às mais novas tendências estéticas e às vontades comerciais garante a consumação e, de brinde, a popularidade necessárias para se amparar nesse ambiente. Investir nas métricas da repetição e do efêmero, dessa maneira, torna-se uma escolha, intencional ou não, conveniente e, até mesmo, promissora. Porém, a que custo?
Para Driely Carter, o preço é altíssimo. Para a fotógrafa brasileira baseada em Nova York, nenhuma exigência externa pode vir primeiro do que sua autonomia intelectual e artística. Muito menos uma que lhe coloque em contornos limitantes e lhe esgote em termos opacos. E é por conta disso que, mais do que advogar contra as atuais imposições rasas à arte — com seu jeito despachado e falas assertivas, a artista apresenta, na prática, um universo visual subversivo aos comprometimentos superficiais do contexto das redes.
Se fosse possível acompanhar Driely nas redes sociais nesse momento — sua presença é esporádica, mas sempre significativa — encontraríamos seus mais recentes projetos com pratos de urânio, bactérias criadas no seu quintal em placas de laboratório e cristais crescidos em vidro. Outros mais antigos não deixam de apresentar esse caráter radical e multifacetado: polaroids grampeadas e queimadas em aparelho de micro-ondas e/ou com isqueiro e fotos em película mergulhadas em misturas químicas que distorcem a coloração original. Não há preciosismo e apego barato com seus arquivos, se for preciso destruí-los, quebrá-los e desfigurá-los para atingir o resultado final satisfatório, então assim seja. Como se pode ver e imaginar, suas ideias estão sempre na fronteira entre a viabilidade prática e a ideação extravagante, operando entre os dois lados para permitir que a experimentação caminhe ao seu ponto mais extremo.
Não é à toa que sua grandeza e sua posição destoante e vanguardista enquanto artista contemporânea venha exatamente do seu uso inovador de processos analógicos da época de nascimento e inicial maturação da fotografia. Para criar imagens memoráveis, seus maiores aliados são a ambrotipia, a ferrotipia e outros processos em colódio úmido, técnicas de produção de imagens, respectivamente, em vidro e em chapas de ferro, desenvolvidas no século XIX. Esses métodos, para fins explicativos, dependem de mão de obra extensa, equipamentos químicos de prontidão, uma câmera larga e pesada de grande formato (tamanho final da imagem) e tempo de sobra. Isso tudo porque existe a demora do “click” da câmera e a necessidade de revelação instantânea das placas emulsificadas com substâncias que a transformem sensível à luz. Logo, para preparar uma foto desse tipo, por exemplo, ao ar livre é preciso o transporte e a preparação de um laboratório ambulante, o qual garanta a possibilidade de fixar a cena no material. Fica claro e transparente o trabalho árduo que exige esse tipo de captação fotográfica, o que atesta o comprometimento e a elaboração meticulosa do enquadramento para que, no fim, apenas uma imagem seja colocada no mundo. É nessa brincadeira profissional e adversa a pressa, portanto, que Driely Carter alinha o passado e o presente para apresentar novas configurações para o futuro da área.
Os rostos em seus ambrótipos vão desde os mais célebres: Kanye West, Kim Kardashian, Janelle Monáe, Aaron Paul, Earl Sweatshirt, Rosalía e Vince Staples, até os mais rebeldes frequentadores e talentosos artistas do festival de arte e cultura negra Afropunk, como o coletivo Parliament Funkadelic, a cantora Kelsey Lu e a banda Tv on the Radio. Esses, entre outros dos seus retratos analógicos, nos teletransportam direto para o ensaio de Walter Benjamin, “A Pequena História da Fotografia”, que discorre sobre a magia dessa prática em razão de sua sensação de presença tridimensional dos modelos na bidimensionalidade da foto. As imagens produzidas por Driely, nesse sentido, se assentam exatamente no que o filósofo alemão aponta como “a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”, contribuindo para a longevidade memorável de um rosto que nunca mais se comportará do mesmo jeito duas vezes.
De frente com demais projetos, até mesmo os mais “conservadores” em termos formais são marcantes e ricos em conteúdo imagético. Inúmeros são os trabalhos, por exemplo, nos quais conseguimos sentir a dinâmica do movimento em suas fotos, numa percepção que, provavelmente, só o cinema, em sua cadência, possa nos proporcionar. Um deles, nomeado “Poetic Terrorism”, de 2018, baseado no ensaio homônimo de Hakim Bey, pseudônimo de Peter Wilson, expoente do movimento anarquista, constrói na frieza da pausa, o calor da energia material e humana, seja através do jornal pegando fogo, do vidro quebrado em foco e da água e do hidrante espirrados em cena, seja através do modelo capturado de cabeça para baixo ou apontando um bastão em primeiro plano para a câmera. Outro, feito em sua estadia em Joanesburgo, despretensiosamente captura as cores vivas e primárias de um ambiente jorrado de luz solar e a cinestesia de um grupo de jovens locais jogando bola, andando de bicicleta e dançando em cima de um telhado.
Um, em particular, hoje, causa melancolia e nostalgia por tempos mais simples de comunhão. Tendo como guia a canção “This Is How We Walk on the Moon” de Arthur Russell, as imagens simulam um grupo de amigos se divertindo entre cigarros passados de uma boca a outra, manobras de skates, trocas de referências musicais e literárias e aparentes performances instrumentais com acordeões e trompetes. Servindo quase como um manifesto visual da nossa vida pré-pandemia de Covid-19, a proximidade com o que está sendo retratado é evocada porque nos coloca de frente com memórias e sentimentos comoventes, mas também incômodos. O que, novamente, testemunha a favor do caráter persistente ao tempo das fotos de Driely: a realização de que podemos nos conectar e nos confrontar com uma outra época, próxima ou longínqua. Afinal, quem nessa altura do campeonato não pagaria uma fortuna por uma mesa de bar com os amigos e menos angústias e frustrações adquiridas na quarentena?
De maneira mansa ou turbulenta, boa e volumosa arte, acredito, desperta o que de mais profundo nos incomoda, nos mobiliza e nos forma. E no caso da fotografia é o exercício de manifestação da memória, sentido que precisa ser constantemente cultivado para não se tornar esquecimento. Assim, se por um lado a imagem captura e perdura sua figura em representação, o que a faz genuinamente resistente, por outro, talvez seja a vontade de voltar e ressignificá-la ao longo da vida, sustentando-a no percurso da história. Driely tem construído um repertório que se encaixa nesses dois atributos, mesclando passado e futuro em uma realidade intensamente fugaz e presentificada. Olhar para seus trabalhos, portanto, é parar o tempo e tirar a atenção do que é passageiro para colocá-lo no que é indestrutível: o empenho criativo da arte.