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Prazeres Violentos: Romeu e Julieta na Xangai dos anos 1920

Que Romeu e Julieta é uma das histórias mais famosas de todos os tempos, todo mundo sabe. A peça escrita por William Shakespeare entre os anos de 1591 e 1595  já serviu de inspiração para inúmeros artistas — da canção “Love Story” de Taylor Swift ao filme brasileiro O Casamento de Romeu e Julieta dirigido por Bruno Barreto, entre outros — e com a autora Chloe Gong não foi diferente. Seu livro de estreia, Prazeres Violentos, chegou ao Brasil esse ano pela Editora Alta Books e se inspira nessa trama tão famosa. No lugar de Verona, na Itália, e das famílias Capuleto e Montéquio, no entanto, aqui temos a Xangai de 1926, duas gangues tentando controlar a cidade e um monstro à espreita.

A Xangai dos anos 1920 é um caldeirão efervescente prestes a explodir. Além das gangues que controlam seus territórios na cidade com facas, armas, extorsão e muitas ameaças, a cidade também é disputada por estrangeiros — especialmente britânicos e franceses — que veem na desordem em vigor uma oportunidade de enriquecimento fácil e rápido. Mas a Sociedade Escarlate, liderada por Lorde Cai, e os Rosas Brancas, sob domínio de Lorde Montagov, não deixarão essa disputa sangrenta sair de suas mãos tão facilmente. Assim, quando Juliette Cai, orgulhosa herdeira da Sociedade Escarlate, retorna de sua estadia nos Estados Unidos, ela está pronta para assumir as rédeas da situação e colocar sua organização no topo. Embora a Sociedade Escarlate esteja muito acima da lei enquanto organização criminosa, eles sempre batem de frente com os Rosas Brancas, os únicos capazes de retribuir os ataques dos Escarlates à altura.

“O peso de Xangai era uma coroa de aço pregada à sua cabeça. (…) Esta era sua vida, esta era a sua cidade, este era o seu povo e, por seu amor a eles, há muito tempo jurou a si mesma que faria um trabalho muito bem feito sendo quem era, pois não podia ser ninguém mais.”

Com uma história de ódio e rancor que remonta à gerações, a Sociedade Escarlate e os Rosas Brancas dividem Xangai na base da violência e do sangue que tinge as ruas de vermelho, e o retorno de Juliette apenas coloca mais combustível em uma situação já prestes a explodir. Quando Roma Montagov, herdeiro dos Rosas Brancas, fica sabendo do retorno da Juliette, ele tenta se fazer de indiferente, mas as lembranças do que viveram no passado sempre retornam para assombrá-lo. A Juliette que retornou para Xangai não é a mesma que conheceu aos quatorze anos, mas uma mulher que se blinda com roupas estadunidenses e seu penteado wave fingers, a diferenciando de qualquer outra moça chinesa. Roma, por outro lado, escolheria uma vida mais simples se pudesse, mas o destino o fez herdeiro dos Rosas Brancas e, na situação em que se encontra Xangai, é melhor ter algum poder do que poder nenhum.

Como se não bastassem as disputas por territórios e as brigas entre Escarlates e Rosas Brancas, um surto tem varrido as ruas de Xangai provocando mortes e histeria que nada tem a ver com as gangues. Não se sabe como a epidemia teve início, mas em poucos minutos os infectados começam a dilacerar as próprias gargantas, jorrando sangue e disseminando pânico entre os moradores da cidade. A doença não escolhe lado e tanto Escarlates quanto Rosas Brancas são pegos pela epidemia, o que coloca Juliette e Roma em estado de alerta. Quando nenhuma ação independente foi capaz de fazê-los chegar mais perto de solucionar o mistério que assola Xangai, eles decidem que precisam colocar de lado as disputas e os velhos rancores de maneira a trabalhar juntos para salvar o que sobrar da cidade na esteira do monstro que dissemina o surto entre a população.

“Por meses eles flertaram, encenaram e se equilibraram sobre a linha entre amigo e inimigo, um sabendo quem era o outro, mas omitindo o fato, tentando tirar algum proveito daquela amizade, mas sendo descuidados, caindo no abismo sem perceber.”

Assim, Juliette Cai e Roma Montagov, herdeiros e gangsters rivais, formam uma aliança para salvar suas famílias e sua cidade, mas não será fácil colocar todos os sentimentos de lado em prol de um bem maior. Não há mocinhos e heróis nessa história, apenas dois jovens destroçados pelas disputas de poder entre as famílias, presos em uma teia de meias verdades e traições capazes de marcá-los por toda a vida. O dever e a família ocupam posições importantes nas vidas dos dois, e a associação que fazem para desvendar os mistérios que se escondem nos becos e vielas de Xangai poderá ser responsável por tornar a disputa entre Escarlates e Rosas Brancas ainda mais sangrenta. Juliette tenta se blindar o máximo possível dos sentimentos que esconde no fundo do coração, mas a mera presença de Roma a faz se questionar. Para o herdeiro Rosa Branca, não é diferente: estar perto de Juliette o faz se lembrar de mais coisas do que gostaria.

Entre cenas de ação, slow burn e enemies to lovers, Chloe Gong constrói uma narrativa que cresce em intensidade no decorrer das páginas, nos levando por uma Xangai que é tão rica e fascinante quanto perigosa. A cidade é viva e transborda pelas páginas, e a narrativa da autora atua quase como um filme, nos fazendo visualizar as ruas repletas de pessoas atarefadas com seus carrinhos de comida e riquixás, seus prédios e lanternas chinesas, as roupas e características da Xangai de 1920. A capacidade de descrição de Chloe Gong não se resume aos cenários, mas também aos seus personagens: a narrativa em terceira pessoa nos faz mergulhar nos dramas e questionamentos de seus personagens, e não apenas nos protagonistas embora, por motivos óbvios, eles brilhem muito mais.

A começar, é claro, por Juliette Cai. A herdeira da Sociedade Escarlate sempre soube de seu dever para com a família, e mesmo passando alguns anos longe, manteve certo em seu coração que os Cai são os mais importantes para ela. De personalidade forte e do tipo que não leva desaforo pra casa, Juliette aceita de cabeça erguida o posto de herdeira Escarlate e se faz notar, agindo e tomando decisões de maneira a sempre proteger a família. Orgulhosa, altiva e dona de si, Juliette não cede  sua posição por ninguém, o que a faz parecer arrogante, mas quem a conhece bem sabe que seu coração é enorme — ainda que as circunstâncias da vida a levem por caminhos em tons de cinza. O cenário político da Xangai que encontra quando retorna faz com que Juliette perceba que sua presença e ações são cada vez mais necessárias para manter a família no domínio da cidade, e ela não pensa duas vezes antes de se sacrificar por eles. Xangai, a Sociedade Escarlate e sua família são os três pilares da vida de Juliette e ela fará tudo por eles — inclusive se associar a Roma Montagov.

Fica claro que houve um relacionamento entre Juliette e Roma quando eram mais novos e que o amor entre eles acabou em tormento e ruína, com rosas vermelhas esmagadas entre dedos e dezenas de mortos. As feridas pareciam cicatrizadas entre eles, mas a aliança a que se propõe as reabre, mostrando como velhos hábitos são difíceis de serem deixados para trás. Do outro lado da disputa entre os mafiosos de Xangai está o herdeiro Rosa Branca, Roma. Não apenas por fazer parte da máfia rival, mas Roma é o completo oposto de Juliette: onde ela arde e queima, ele suaviza e ampara. Ainda que ele seja firme e resiliente, tendo sobrevivido aos mandos e desmandos de um pai abusivo, do qual se ressente, Roma sabe de seu papel nos Rosas Brancas, mas entende, no seu íntimo, que poderia facilmente viver sem a organização criminosa em sua vida.

“Por isso não devemos amar mais que o necessário. A morte vem para todos no fim…”

Com seu temperamento mais tranquilo, Roma imaginava um futuro melhor para Xangai e a disputa entre a Sociedade Escarlate e os Rosas Brancas — futuro que lhe foi tomando quando o caos político e social em que a cidade mergulhou tomou proporções ainda maiores quando a epidemia passou a ceifar as vidas das pessoas na figura de um monstro que surge nas águas do Rio Huangpu. Roma é mais contido em suas ações do que Juliette, mas nem por isso deixa de ser tão eficiente em seu ofício quanto ela. É fácil se apaixonar pelos protagonistas de Prazeres Violentos, visto que a escrita envolvente de Chloe Gong nos faz reféns da trama como se fôssemos peões nas mãos dos gangsters que a habitam. O relacionamento entre Juliette e Roma, tão trágico e repleto de feridas, é desenvolvido sem pressa, levando aos poucos pelos meandros que os fez romper em meio à guerra entre as famílias. O rancor e o ódio que dizem nutrir um pelo o outro, as traições e abandonos de que não conseguem se esquecer. Tudo é descrito de maneira ótima, desde os olhares roubados, as faíscas de amor e ódio que surgem sempre que estão próximos, a urgência dos pequenos toques e a intensidade das trocas de ofensas — com direito, inclusive, a cano de revólver no queixo e faca no peito.

Para os demais personagens que orbitam ao redor de Juliette e Roma, Chloe Gong também reservou tramas cuidadosas e inspiradas; é o caso, por exemplo, de Kathellen, prima de Juliette e uma mulher trans, e de Benedikt e Marshall, primo e amigo de Roma cujo relacionamento faísca na direção de eventualmente se transformar em algo a mais. Kathleen se tornou uma personagem favorita com facilidade: para além de sua jornada ao lado de Juliette, suas espionagens e amor à prima, sua história de vida foi conduzida com muita delicadeza pela autora. Espero acompanhar mais desses personagens na continuação da trama, Our Violent Ends, ainda sem tradução no Brasil.

“Ela o odiava tanto. O odiava por estar certo. O odiava por estar provocando aquela reação nela. E, acima de tudo, odiava ter que odiá-lo, porque, se não o fizesse, o ódio se voltaria contra ela e não haveria nada mais a odiar senão sua própria fraqueza.”

Prazeres Violentos é um livro repleto de tensão e cenas de ação onde tudo ocorre em uma crescente capaz de deixar o leitor vidrado em suas páginas. A disputa entre a Sociedade Escarlate e os Rosas Brancas permeia todo o livro, misturado à presença de britânicos e franceses, além de um cenário político caótico com embates entre Nacionalistas e Comunistas. A autora se utiliza de um período específico da história chinesa e o envolve em sua própria trama, inserindo os mafiosos Cai e Montagov, um monstro que surge das águas do Rio Huangpu e dois jovens que se odeiam tanto quanto se amam. Os surtos que permeiam as páginas do livro faz a tensão ir às alturas enquanto Juliette e Roma tentam desvendar todos os mistérios que envolvem suas vidas, lutando com garras e dentes para que possam sobreviver ao final.

Chloe Gong faz um ótimo trabalho ao transportar o clássico Romeu e Julieta para a Xangai do final dos anos 1920. O cenário político intenso, os personagens carismáticos e complexos, a trama do romance proibido e todo o slow burn fazem de Prazeres Violentos um livro de estreia fantástico — e, não à toa, figurou na lista de mais vendidos do The New York Times. Além de Our Violent Ends, conclusão da duologia de Juliette e Roma, a autora publicará em 2023 Immortal Longings, inspirado por outro clássico de Shakespeare: a peça Antônio e Cleópatra de 1608.

“Estes prazeres violentos
têm finais violentos
E em seu triunfo morrem,
como folgo e pólvora,
Que, ao se beijarem,
se consomem.”

– William Shakespeare


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