Quatro mulheres bem sucedidas, bonitas, amigas e que se encontram entre drinques e festinhas particulares para falar sobre relacionamento. A descrição lembra Sex and the City — série de televisão premiada que, posteriormente, virou filme, é sem dúvida um sucesso dos anos 90 e influenciou inúmeras mulheres. Baseada no livro de Candace Bushnell, a série começou a ser transmitida em 1998 pela HBO. Da autora, li outro de seus livros: Os Diários de Carrie, também sobre o universo de Sex and the City, sobre uma Carrie adolescente, entre um intervalo e outro do colégio. Bushnell tem aquela escrita que se encaixa bem em maio aos anseios da época. Posso dizer que Carrie é uma personagem que, mesmo adulta, se encaixa nos anseios e buscas adolescentes. Sex and The City é o livro mais conhecido da escritora, que deu nome e inspirou a série, e foi lançado em 1996. Contudo, quatro anos antes, a escritora afro-americana Terry McMillan lançava seu terceiro romance chamado Waiting to Exhale, um livro que talvez poucos no Brasil conheçam, mas que ficou onze semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times.
No livro de McMilan, mulheres bem-sucedidas que têm tudo, menos um relacionamento, algo que elas pleiteiam e buscam, são o centro. A diferença dessa narrativa para o livro de Candace é que Waiting to Exhale é sobre quatro mulheres negras — detalhe que soa sutil no que diz respeito ao protagonismo, mas que torna a narrativa revolucionária quando levada à sétima arte. No artigo do Los Angeles Times em dezembro de 1996, escrito por Elaine Dutka — “The Money’s Where the Action Is – Movies: Big budgets and special effects push the film industry to yet another record performance” —, o filme homônimo baseado na obra de McMilan é considerado um fenômeno social:
“O potencial de uma audiência afro-americana com fome de imagens de tela positiva foi demonstrada pelos US $ 67 milhões obtidos por ‘Waiting to Exhale’, que se tornou um fenômeno social.”
O sucesso entre negros começou a ser traçado quando o livro de McMilan tratou como tema o amor. A intelectual e ativista feminista negra bell hooks, em seu artigo “Vivendo de Amor”, elucida que mulheres negras sentem ao longo de suas vidas a falta de afeto, e que esse assunto é pouco debatido entre negros. O amor acaba sendo algo distante e não visto como necessário, pois negros ainda operam numa lógica construída no período escravocrata, no qual era mais importante sobreviver do que construir laços afetivos, até porque esses eram impedidos:
“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.”
É dentro desse paradigma do amor e afetividade em distintos campos negados para negros, em especial para mulheres negras, que se constrói o que entendemos como Solidão da Mulher Negra, expressão usada entre mulheres negras para designar privações e negações afetivas que acometem suas vidas. Por isso, ainda é difícil falar sobre o assunto; muitas pessoas entendem que a solidão afetiva é um problema pessoal, quando na verdade é uma questão estrutural e sistêmica. Porém, o amor é um necessidade de sobrevivência que precisa ser explorada, e a própria bell hooks enfatiza o seu potencial de cura:
“O amor cura. Nossa recuperação está no ato e na arte de amar. Meu trecho favorito do Evangelho segundo São João é o que diz: ‘Aquele que não ama ainda está morto’”.
E elenca a forma como o amor é também uma resposta e combate a estrutura racista:
“Uma vez disse para algumas mulheres negras que gostaria de viver em um mundo onde existisse amor, onde pudesse amar e ser amada. Depois disso elas passaram a rir de mim sempre que nos encontrávamos. Para que esse mundo possa existir é preciso acabar com o racismo e todas as formas de dominação. Se escolho dedicar minha vida à luta contra a opressão, estou ajudando a transformar o mundo no lugar onde gostaria de viver.”
É devido a esse contexto que Waiting to Exhale [Falando de Amor, no Brasil] se tornou um dos meus filmes preferidos enquanto feminista negra. Tudo começa no fato do filme ter negros para além da tela, a direção é a estreia de Forest Whitaker como diretor e a trilha que tem Babyface, Aretha Franklin, Mary J. Blige e Whitney Houston, que por sua vez também dá vida a uma das principais personagens, Savannah. Além dela, temos Bernadine, interpretada pela consagrada; Angela Bassett; Robin interpretada por Lela Rochon e Glória, vivida por Loretta Devine.
Quatro mulheres negras, amigas, de diferentes idades e situações econômicas, cada uma delas com narrativas afetivas que aproximam mulheres, em especial o reconhecimento de mulheres negras. Glória é uma mulher fora do padrão estético: além da pele escura, ela é gorda, cabeleireira e que criou um filho sozinha, sendo assim mãe solo. A sua situação a coloca como uma mulher que teve menos possibilidades de ter relacionamentos comparada às outras. Por isso, para Glória, a sua busca e enredo é sobre se permitir e tentar ter uma relação com alguém, e isso inclui ponderar o quanto isso significa envolver o próprio filho. Os medos de Glória são os da maioria das mulheres que são também mães solo, que aprenderam a não esperar companheirismo e afeto, algo que aos poucos ela vai descobrindo na figura de um vizinho.
Já Robin é a jovem negra bonita que se enquadra num padrão de beleza que a faz nunca ficar solitária, o que não significa plenitude afetiva. Ela é a clássica moça envolvida em relacionamentos abusivos que está sempre acompanhada de homens interessados na sua sexualidade, não em companheirismo e trocas. Claudete Alves, em diversas entrevistas que deu por conta dos seus estudos e do livro Virou Regra?, onde ela aborda a afetividade entre negros, diz que mulheres negras, mesmo em relacionamentos, vivem o que ela chama de solidão a dois. A personagem Robin é um exemplo disso, a narrativa de sucessões de abusos vivenciados com homens destrutivos vão a encorajando rever o seu amor por si mesma e buscar por ele em primeiro lugar.
Existe uma proximidade na narrativa de Robin e de Savannah, uma mulher bem sucedida, linda, inteligente que é amante do homem que ama, e se condiciona a essa situação por acreditar que esse é o tipo de amor que ele realmente pode lhe dar. Só que Savannah tem mais dificuldade em compreender que as migalhas, mesmo quando não aparentam ser migalhas, não são o que ela merece e o que ela busca em relação a si.
Por fim, temos a personagem mais complexa: Bernadine, uma mulher rica e casada, que descobre que o marido a traía com uma mulher mais jovem e branca e por isso a estava abandonando. A noção sobre o que esse fato significava vai transformando suas atitudes. São dela cenas icônicas como a que coloca fogo no carro do ex-parceiro e a transformação física marcante do filme, quando ela assume os cabelos curtos num processo de empoderamento e liberdade de uma relação que aos olhos dos outros soava perfeita, mas que era desrespeitosa para com ela.
Relacionamentos ruins, sexo frustrante, homens egoístas. Tudo isso só não sucumbe essas mulheres porque elas têm umas às outras. As cenas em que as quatro amigas dançam juntas ou cantam num carro são, sem dúvidas, a principal demonstração de amor ao longo do filme. E que para nós, mulheres negras, se transformam numa lição em relação às nossas buscas afetivas: a construção do amor próprio também é sobre amar nossas semelhantes. O que torna a narrativa na revolução que ela foi entre e para negros é o fato de que, ainda hoje, ver mulheres negras em situações cotidianas, rindo, bebendo, falando bobagens e se reconstruindo é revolucionário. Dada a forma como negras são representadas em destaque, sem suas subjetividades, apenas como sobreviventes em narrativas deprimentes como Preciosa ou Monster’s Ball, Waiting to Exhale foge da curva ao tratar de assuntos íntimos e centralizar personagens femininas negras tão diferentes entre si — o que o torna uma narrativa singular e empoderadora.
Stephanie Ribeiro é arquiteta, escritora e feminista negra. Acredita no papel fundamental da arte, da política e da cultura no ativismo negro interseccional e a experiência da mulher negra no mundo. Co-fundadora do Afronta, um site que busca visibilizar a história de mulher negras e artistas, atualmente se dedica a escrita do seu primeiro livro pela Cia das Letras. Facebook | Instagram