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A Poderosa Thor: uma trajetória de sensibilidade, amor e trovão

Em sua empreitada de tentar mudar a cara da cultura pop (de novo), a Marvel anunciou durante a San Diego Comic Con (SDCC) uma série de filmes para o futuro do estúdio — incluindo uma nova versão de Blade, com ninguém mais ninguém menos do que o vencedor do Oscar por Moonlight e Green Book, Mahershala Ali; e o elenco diverso e inclusivo de Os Eternos, que terá a primeira atriz surda-muda no elenco, Lauren Ridloff, além de Angelina Jolie, Salma Hayek, Kumail Nanjiani e, claro, a incrível diretora Chloé Zhao (mais conhecida por ótimos longas como Domando o Destino, de 2017). Não só isso, mas também foi anunciado que o filme irá tratar de apresentar o primeiro herói LGBTQ+ — e vamos esperar que dessa vez eles realmente explorem isso, já que Valquíria supostamente é bissexual, mas não existe espaço para isso no roteiro.

Só isso já seria o suficiente para chamar a atenção da internet e dos fãs de quadrinhos. As novidades, no entanto, não acabaram por aí. O anúncio que mais causou alvoroço foi o de que Natalie Portman, que viveu Jane Foster nos dois primeiros filmes de Thor, voltaria como a personagem no quarto capítulo e que agora ela que levantaria o Mjölnir.

As reações ao anúncio foram mais barulhentas e infelizes do que o normal. Durante dez anos, Thor foi um símbolo da “virilidade masculina” no MCU — pelo menos até Vingadores: Ultimato, quando, pela primeira vez ele demonstrou sentimentos que geralmente não são associados com o macho-alfa comum do cinema blockbuster. Agora o fã médio será privado dessa visão que foi explorada tantas e tantas vezes pela Marvel, em mais de uma forma. O longa, que será lançado com o subtítulo de Love and Thunder (Amor e Trovão, em tradução literal, um nome cafona e perfeito demais para ser verdade), terá a direção de Taika Waititi, que fez o primeiro filme do herói que realmente agradou, misturando uma cinematografia razoável (para os padrões da Marvel), humor divertido e, o principal, que focava nas dinâmicas dos personagens em si.

Tudo isso é mais do que o suficiente para todos entrarem no trem do hype, algo que a Marvel sabe fazer muito bem, e esperar aproveitar os filmes da Fase 4. Infelizmente, alguns “fãs” não pensam assim. A linha de raciocínio deles é tão fora do comum que, se eles tivessem se incomodado em ler algum quadrinho da Jane Foster como Thor, teriam percebido que o arco é um dos melhores materiais que a Marvel liberou nos últimos anos e pode render uma ótima adaptação para os cinemas.

A trajetória da Poderosa Thor nos quadrinhos 

A figura nórdica e mitológica do Thor alega que o Deus do Trovão é um homem viril, potente e que, principalmente, não demonstra sinal de “fraquezas”. Dessa maneira o personagem foi retratado em diversas releituras da cultura pop, justamente porque não existia espaço para aprofundar sentimentos normais e comuns a todos os humanos. Mas, quando Nick Fury sussurra no ouvido de Thor algo que faria com o herói se tornasse indigno em um dos seus arcos, as coisas mudaram para sempre — e para a melhor.

Quem assume o manto e carrega o Mjönir é Jane Foster, em uma sequência muito bem escrita, ilustrada e emocionante. Quem escreve é Jason Aaron, enquanto as ilustrações ficam por conta de Russell Dauterman. O primeiro momento em que Jane aparece como Thor, inclusive, é cheio de surpresa e mistério. A nova identidade do Thor tinha sido mantida em segredo pela Marvel, que só revelou o destino do personagem quando a heroína aparece nas sombras e diz que deve sempre haver um Thor — seja lá de qual gênero —, para, na página seguinte, surgir a imagem de Jane com seu uniforme e portando o martelo. É uma página que carrega muito significado em si, com cores e características brilhantes, memoráveis. Não é por nada que, quando Portman foi anunciada como a nova versão do herói, Aaron disse no seu Twitter que esse projeto era o de que ele tinha “mais orgulho até então”. 

A trajetória da heroína, no entanto, foi marcada por mais de uma dificuldade. Além de enfrentar figuras muito importantes para o universo do Thor anterior, como Loki, o Deus da Trapaça, e o próprio Odin, que se mostra um dos seus maiores perseguidores e um baita machista, acreditando fielmente que não existe espaço para uma Thor mulher, quando Jane assume o manto, a personagem também está com câncer. Eis aqui a questão: como uma Deusa, ela tem que enfrentar problemas que vão além das questões diárias da Terra, mas como Jane Foster, ainda tem que lidar com seu câncer, que não é curado pelo poder do martelo. Essa visão é importante porque oferece uma alternativa à dinâmica pré-estabelecida dos Deuses, figuras que são intocáveis e irreparáveis, sem ter que lidar com questões mundanas.

Poderosa Thor

Os quadrinhos misturaram essa narrativa muito bem, e cada vez que a história deixa os elementos místicos de lado e passa a focar nos problemas da doença de Jane, o baque é tenso e triste. Mesmo assim, não existe um momento em que seu câncer e essa trama não tenha sido tratada com sensibilidade. É importante ressaltar também que a força de Jane não vinha apenas daquele aspecto, do seu sofrimento. Ela sempre foi extremamente inteligente, forte e uma cientista de primeira. Por isso, ela nunca foi definida apenas por seus problemas de saúde, mas sim por sua personalidade.

Ciente das críticas que o público fazia em relação à personagem, Jason Aaron chegou a usar desse aspecto para fazer com que a história de Jane fosse mais interessante e, por vezes, até mais engraçada. Na mesma hora em que foi anunciado que Portman seria a nova heroína dos cinemas, uma imagem começou a circular online onde o Thor pergunta: “Mas uma Thor mulher?” e ela responde, “Calm thine tits”, ou seja, “acalme suas tetas”. Atualmente nos quadrinhos, Jane Foster não tem mais o manto da Poderosa Thor, mas sim de Valquíria. A série também é escrita por Jason Aaron, ao lado de Al Ewing. Como ela mesmo diz: “Goodbye to the old, as we make way for the new” ou “adeus ao velho, enquanto abrimos espaço para o novo”. Ironicamente, isso se aplica perfeitamente também ao universo cinematográfico da Marvel.

O que torna uma pessoa digna? 

Uma das cenas mais famosas de Ultimato é a que o Capitão América (Chris Evans) consegue finalmente levantar o Mjölnir, provando que ele é digno, assim como Thor (Chris Hemsworth). Steve foi uma pessoa justa, honesta e leal e, por isso, se tornou digno. Além disso, ele sempre lutou para se encaixar no mundo, sendo um homem que foi congelado e acordou anos no futuro, em uma época completamente diferente e sem Peggy Carter (Hayley Atwell).

Ultimato também coloca a prova toda a questão de Thor e sua “dignidade”. Depois de cortar a cabeça de Thanos (Josh Brolin), o herói entra em uma espécie de depressão profunda, se isola em New Asgard e quer pouco saber da vida de super-herói. Ele acaba engordando, e passa a maior parte de seu tempo jogando vídeo-game. Esse é um dos arcos que os fãs mais odiaram, justamente porque sua situação foi tratada apenas como um alívio cômico na maioria das vezes. Quando os Vingadores voltam para o passado, no entanto, ele tem uma conversa profunda com sua mãe sobre a pessoa que ele se tornou e a pessoa que ele quer ser. No final, quando ele estica seu braço para resgatar seu martelo no passado (que tinha sido destruído em Ragnarok), e o Mjölnir volta para ele, deixa claro não só para a audiência em si, mas para o próprio Thor: ele ainda é digno, mesmo que esteja passando por um período complicado na sua vida. Apesar dos vários problemas que sua jornada em Ultimato enfrenta, esse momento foi importante e, no geral, um momento incrível e vulnerável, com uma mensagem positiva para se dar às pessoas que enfrentam doenças mentais todos os dias, e tem que seguir com suas vidas: você também é digno.

Poderosa Thor

A narrativa do que faz uma pessoa digna não é desconhecida para a Marvel, mas mesmo assim Jane Foster é a oportunidade perfeita para se aprofundar nesse aspecto. Enquanto escrevia os quadrinhos, Aaron redefiniu o conceito do que é “ser digno” algumas vezes. Primeiro, Jane foi atraída pelo martelo por causa do seu trabalho como médica. Afinal, nada mais honesto do que salvar vidas, certo? Depois, na medida em que ela vai lutando contra inimigos e ameaças exponencialmente maiores, e principalmente sendo questionada por todas as pessoas ao seu redor, que não acreditam na possibilidade de uma mulher ser Thor, ela cria seu próprio discurso com uma voz potente, única e que tem plena consciência de que não precisa provar nada para ninguém.

Durante uma entrevista para a imprensa brasileira durante a CCXP, para o veículo BuzzFeed Brasil, Brie Larson disse que Carol Danvers, a Capitã Marvel, com certeza era uma das pessoas dignas e que ela conseguiria levar o martelo. Durante o filme solo da heroína, ela entra em uma jornada de auto-descoberta importante e sensível que, apesar de ser muito diferente da história de Jane Foster, resgata elementos das suas personalidades que são muito parecidas. Talvez Larson esteja certa e Danvers seja realmente digna.

Assim como o Capitão América de Anthony Mackie, que ganhou o escudo de Rogers, e passa por uma série de provações para ser aceito como o “novo rosto da América do Norte”, Jane enfrentará algo similar ao retornar ao MCU como a nova Thor. Essa saga nos quadrinhos é uma das melhores do herói, e deve ser adaptada pela Marvel na série Falcon and Winter Soldier, que chega em 2020 na plataforma de streaming da Disney+. Não existe época mais perfeita para adaptar essa trama do que durante o governo ultranacionalista de Donald Trump.

A questão Natalie Portman 

Poderosa Thor

Uma das atrizes mais renomadas de Hollywood hoje, Portman, que nasceu em Jerusalém, Israel, pula de projetos distintos com uma facilidade absurda. Seu filme mais recente, por exemplo, é Vox Lux, onde faz uma popstar que tem mais traumas do que consegue lidar, uma analogia com a situação de várias artistas que caem no buraco da indústria musical.

Natalie também viveu a incrível Padmé Amidala na segunda trilogia de Star Wars; Jackie Kennedy no longa de Pablo Larrain, onde levou o nome de uma das primeiras damas mais icônicas dos Estados Unidos; Aniquilação, um dos melhores e mais intrigantes filmes de sci-fi do século XXI; Cisne Negro, pelo qual adquiriu o Oscar de Melhor Atriz; ou até mesmo os antigos V de Vingança ou O Profissional. Como diretora ela se aventurou na produção Amor e Trevas.

Mesmo com esse currículo extenso, sua Jane Foster foi mais de uma vez maltratada pela Marvel, reduzida apenas a um interesse amoroso de Thor — mesmo que ela seja uma personagem interessante por si mesma. Isso causou alguns problemas entre a atriz e a própria Marvel, que durante dez anos não esteve pronta para sair tanto da curva como faz agora, reconstruindo seu universo por completo.

Em 2011, quando Thor: O Mundo Sombrio estava apenas em pré-produção, a diretora Patty Jenkins acabou sendo demitida do projeto, causando um atrito entre Kevin Feige e Natalie Portman. Todas as suas aparições futuras nos filmes foram feitas por dublês de corpo (como em Ultimato) e ela tinha dado sua participação na Marvel como finalizada, até que… ela apareceu na première do último Vingadores, levantando alguns rumores. Alguns meses depois, ela foi confirmada como a Poderosa Thor dos cinemas.

Mas e os outros personagens? 

Honestamente, não vai acontecer nenhuma mudança muito drástica com eles. Como indicado no final de Ultimato, Thor foi com os Guardiões da Galáxia explorar algum aspecto aleatório do universo enquanto Valquíria (Tessa Thompson) se tornou Rainha de New Asgard. Os dois voltarão para o quarto filme do herói, que parece ser mais um “soft” reboot do que qualquer outra coisa, e Thompson mesmo já disse que sua personagem está a procura de uma companheira (romântica, para deixar bem claro), para governar ao seu lado.

Quanto ao futuro do Thor de Hemsworth, ainda é muito cedo para ditar o que vai acontecer. Talvez ele se torne indigno como nos quadrinhos, ou talvez ele siga no espaço. James Gunn confirmou que Guardiões da Galáxia Vol. 3 virá apenas depois de Love and Thunder, mas milhares de coisas podem acontecer nesse meio tempo. Resta esperar.

Natalie Portman como a Poderosa Thor não é o suprassumo da representatividade, justamente porque ainda existe muito espaço para ser preenchido por mulheres não-brancas, por exemplo. Mesmo assim, o conjunto da obra, todos os envolvidos no projeto e sua trajetória nos quadrinhos garante que algo bom será feito para os fãs. Mais do que isso, mostra que a Marvel finalmente não está ligando para as críticas de má fé que são direcionadas ao estúdio, principalmente por seguidores da alt-right. Depois de dez anos, onde o elo entre os personagens era Tony Stark (Robert Downey Jr.), está na hora de seguir em frente, abusar de uma trama divertida, claro, mas que não deixe de apresentar uma certa importância, pegando uma página (ou várias) de Pantera Negra, Mulher-Maravilha e Capitã Marvel. Que venha Miss Marvel e outros heróis que ainda tenham muito potencial de explorar um público mais diverso.