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Vox Lux: a realidade da sociedade do espetáculo

De Norma Desmond a Baby Jane, a cultura pop sempre teve um fascínio muito grande por histórias cujas protagonistas eram mulheres amarguradas pela fama ou por todas as expectativas decorrentes dela. Pulando da Hollywood Clássica para os últimos anos, percebemos o quanto esse tipo de narrativa ainda suscita o interesse do público. A nova adaptação de Nasce Uma Estrela, estrelando Lady Gaga e Bradley Cooper, é um exemplo de como uma história sobre fama e autodestruição ainda mobiliza plateias pelo mundo. É a quarta versão do filme, que já teve Barbra Streisand e Judy Garland como suas protagonistas. Crepúsculo dos Deuses, filme de 1951 que pode ser considerado o inaugurador desse tipo de narrativa, ganhará outra versão cinematográfica no ano que vem.

Mas por que gostamos tanto dessas histórias? E por que são sempre as mulheres as protagonistas delas? São questões profundas que entrelaçam a maneira como o patriarcado olha para o envelhecimento e um certo sadismo em ver mulheres envelhecendo sofrer nas telas. Vox Lux, de Brady Corbet, usa essa fórmula um pouco batida, mas com uma diferença: ele retrata a fama sob o olhar da sociedade do espetáculo, chamando nossa atenção para o quanto a dor e o trauma podem virar mercadoria. Porque, se existe uma coisa que o capitalismo faz bem, é mercantilizar todo e qualquer bem, material ou não, que possa dar dinheiro. É o que aconteceu ao feminismo, ao empoderamento e já acontece com a dor há muito tempo.

Atenção: este texto contém spoilers!

Celeste: uma diva pop em meio a uma sociedade do espetáculo

Por contar a história de uma popstar, Vox Lux é dividido em três atos, ou melhor, eras. Cada era do filme cobre uma fase da vida da personagem principal, Celeste (Raffey Cassidy, na adolescência, Natalie Portman na vida adulta). Acredito que essa escolha não seja fruto do acaso. As maiores divas da atualidade, como Lana del Rey e Lady Gaga, se valem de um conceito a cada álbum que lançam, explorando-o à exaustão, até o começo da próxima era. Uma era para uma diva pop é a representação de um conceito e uma ideia. Quem não se lembra do conceito nostalgia cunhado por Del Rey em seu álbum de estreia, Born to Die?

Na vida de Celeste, cada era representa uma etapa de lapidação de sua personalidade. Talvez por isso mesmo, Vox Lux nos dê a sensação de andar devagar, porque ele demora quase dois atos para estabelecer o centro da história. Quando chegamos ao último ato, e nos deparamos com a personagem adulta, é que as peças começam a se encaixar. “Gênesis” é o primeiro ato do filme, evocando o período na Bíblia em que o mundo foi concebido por Deus. Gênesis é repleto de inocência, com Eva sendo criada através da costela de Adão. Tudo vai bem neste paraíso até que a tentação, em forma de serpente, faz com que Eva morda a maçã. A inocência foi perdida e surge o pecado original. Em Vox Lux, temos a mesma dinâmica: Celeste é uma garota inocente e comum, mas um tiroteio em massa em sua escola acaba com qualquer resquício de vida normal que ela poderia ter dali para frente.

Celeste é a única a conversar com o atirador, pedindo para que ele poupe seus colegas. A aparência do menino é muito interessante: ele está maquiado, de cílios postiços e lápis no olho. É o próprio retrato do que esses massacres se tornaram: um espetáculo no qual a violência é a única saída para lidar com os efeitos que a masculinidade tóxica causa em garotos e homens. Durante o massacre, Celeste acaba levando um tiro e lesionando a medula. Ela não chega a ficar paraplégica, mas precisa fazer fisioterapia. É aí que ela começa a desenvolver trauma de túneis, pois, enquanto estava entre a vida e a morte, Celeste se viu dentro da ambulância, fazendo curvas perigosas e lutando por sua sobrevivência. O trauma de ter sobrevivido a um tiroteio já é pesado por si só, mas então entra um fator que infla ainda mais o problema: a cobertura midiática.

Guy Debord cunhou o termo “sociedade do espetáculo” para descrever como nós, enquanto sociedade, nos comportamos diante de determinados eventos. Na sociedade do espetáculo, o que está em cartaz é a vida. No entanto, não é bem a vida como a conhecemos, mas o que ela acaba se transformando nas mãos da cobertura de mídia:

“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.”

Debord era marxista, o que influenciou profundamente sua análise sobre a sociedade do espetáculo. Para ele, existe uma ligação profunda entre ela e o capitalismo. Vivemos em um modelo que transforma qualquer coisa em um produto vendável, com uma embalagem muito bonita. A violência vende. O racismo vende. A dor vende — e muito.

Na época do atentado do filme, em 1999, a internet ainda não tinha a força que carrega hoje. Porém, existiam a televisão e as revistas de fofoca. Talvez a maior afirmação da sociedade do espetáculo durante os anos 90 tenha sido a morte da Princesa Diana. Ela morreu em Paris, em um acidente de carro, quando estava sendo seguida por paparazzis. De sua morte surgiu um mito, e a sociedade do espetáculo continuou se aproveitando dela. Boatos de que ela estava grávida de Dodi Al Fayed surgiram logo depois. Dessa forma, a sociedade do espetáculo não tem tempo para o luto, desde que ele não seja transformado em mercadoria. Não é o que acontece em Vox Lux. Existe tempo, tempo até demais, para explorar aquela tragédia. Por não saber como lidar com sua dor, Celeste, com o auxílio de sua irmã, escreve uma música. Ela a canta durante uma homenagem, exibida em rede nacional.

Como em todo massacre, precisamos de heróis e heroínas, pessoas com as quais possamos nos identificar. Ao cantar inocentemente nessa homenagem, Celeste sem querer se tornou a figura com a qual os americanos poderiam se identificar. Sua música foi espalhada pelos quatro cantos do país, como um hino. Ninguém queria discutir sobre o controle de armas nos EUA, apenas cantar a música e acreditar que as coisas iriam melhorar dali para frente. Durante o evento, conhecemos a figura do futuro agente de Celeste, interpretado por Jude Law. Ele percebe o diamante bruto ao qual está assistindo. Como a sociedade do espetáculo precisa lucrar em cima da dor, ele decide agenciá-la. Afinal, o que mais vende do que uma garota sobrevivente a um atentado, dando a volta por cima e gravando um CD? É a personificação do sonho americano.

A partir daí, o agente começa a treinar Celeste para ser uma grande estrela. São jornadas exaustivas nas quais ela precisa gravar e aprender a dançar ao mesmo tempo em que se recupera (ou não) de seu trauma. Depois do massacre, é como se ela não pudesse mais ser uma adolescente. Afinal, estes são os sacrifícios “necessários” para que ela possa deslanchar. É claro que a trajetória de Celeste acaba lembrando a de muitos outros ícones da cultura pop, em sua maioria mulheres, como Judy Garland e Shirley Temple. Garland, por exemplo, era obrigada a tomar remédios para emagrecer desde os 13 anos por ordem de seu estúdio, a MGM. Sua passagem para a vida adulta foi extremamente traumática, pois, por causa de sua “beleza peculiar”, o estúdio não sabia o que fazer com ela, com quem escalá-la para fazer papéis românticos, já que o público estava acostumado a vê-la como a Dorothy, de O Mágico de Oz.

No caso de Celeste, também existe a mesma cobrança absurda. No entanto, ela é personificada pela figura de um homem que a descobre, uma espécie de mentor e Pigmaleão. Geralmente, tais figuras acabam sendo muito abusivas, e é o caso do agente. Inclusive, um detalhe bastante curioso é que ele não tem nome. É apenas “o agente”. Dessa forma, é como se Vox Lux tentasse generalizar a experiência de mulheres com seus agentes. Quem não se lembra de Dolly Parton, cujo marido e agente queria ter a carreira dela em suas mãos?

Celeste aos 31 anos: como ainda se manter relevante na indústria musical?

Ao entrarmos no último ato do filme, chamado “Renascimento”, nos deparamos com a personagem adulta, já na casa dos 31 anos. Muito tempo se passou, e parece que a soma de fardos que Celeste precisa carregar só aumenta. São apenas 31 anos, mas a sociedade misógina em que vivemos já começa a dar os primeiros sinais de que uma mulher, ainda mais na indústria musical, precisa se manter relevante. Mãe muito cedo, ainda adolescente, e vítima de uma paralisia no olho de tanto ter ingerido metanol, Celeste tem dificuldade em se manter relevante. Como aconteceu a muitas famosas que começaram suas carreiras cedo demais, ela cresceu e o público parece ter perdido o interesse nela. Ser mulher é incrível, mas um fardo. Ser mulher e cantora pop é duas vezes pior. Isso porque, em um mundo competitivo de hoje, a cantora precisa se sujeitar a diversas performances para se manter interessante.

O mundo patriarcal não perdoa os fracassos de mulheres. Enquanto famosos viciados em drogas, como Jim Morrison e Jimi Hendrix, são vistos como gênios, mulheres são sempre sujas e vexaminosas caso se envolvam com drogas. O caso de Amy Winehouse é um bom exemplo disso: os paparazzi adoravam fotografá-la drogada, com o vestido para cima, uma forma de humilhá-la ainda mais. Por que a fama afeta as mulheres de um jeito tão doloroso e diferente? Porque vivemos em uma sociedade que não aceita o envelhecimento de mulheres. Uma das maiores críticas à cantora Madonna é porque ela ainda faz shows e grava discos de pop. Ela não deveria estar cuidando dos filhos? Fazendo shows em um banquinho e violão? É coisa de uma senhora de 60 anos? Além do medo de não fazer mais sucesso, as mulheres precisam se preocupar com procedimentos estéticos que visam a parar o tempo em seus rostos e corpos. É uma maratona cansativa, porque nunca existe fim.

Celeste tem apenas 31 anos e já sente que está difícil permanecer na indústria. É por isso que ela está realizando um novo show, Vox Lux, com a ideia de voltar a ser quem era. Porém, um acontecimento bastante peculiar acaba, inicialmente, abalando sua confiança: um tiroteio em uma praia, no qual os atiradores utilizaram máscaras presentes em um de seus videoclipes. Mais uma vez, a sociedade do espetáculo nos acerta em cheio na trama. É muito interessante que os atiradores tenham usado essa máscara, ressignificando toda a mensagem que a cantora quis passar por ter sido uma sobrevivente de um tiroteio em massa. É como se a narrativa de Celeste agora fosse de outros, no caso, os incitadores da violência.

Celeste também precisa lidar com a filha Albertine (também interpretada por Raffey Cassidy), que foi praticamente criada por sua irmã mais velha. Em um único diálogo, dá para perceber o quanto Celeste se ressente com o fato de não ter tido tempo para assistir à filha crescer. Não é fácil para nenhuma das duas, pois Albertine parece não saber se está convivendo com a versão pública ou privada de sua mãe. Ela fica sabendo sobre a vida de sua mãe através dos jornais. Nathalie Portman declarou recentemente que considera Vox Lux um de seus filmes mais políticos. Se pensarmos pelo viés de como a fama afeta as mulheres, nos tiroteios em massa e a espetacularização da tragédia, ela realmente tem razão.

Apesar de se perder em diversos momentos no roteiro, Vox Lux é um filme bastante necessário. Com músicas assinadas por Sia, ele nos dá a possibilidade de poder assistir Natalie Portman cantando e dançando. Além disso, discute a sociedade do espetáculo sob o ponto de vista do abuso de um trauma, que acaba sendo inflado por todas as expectativas que a personagem enfrenta em um mundo patriarcal. Esta discussão é mais importante que as qualidades técnicas do filme.