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Nasce uma Estrela, o grande filme do século passado

Garoto encontra garota. Garoto se encanta pelo talento de garota. Garota se encanta pelo talento de garoto. Eles se encantam um pelo outro, obviamente. Garoto e garota se apaixonam. Nasce um romance. Garoto é um homem famoso, de sucesso, mas cada vez menos. Garota começa a fazer sucesso e fica famosa, cada vez mais. Nasce uma estrela e também um conflito. Você já viu essa história antes, certo?

Já vimos essa história tantas vezes, em tantos formatos, que seria até limitante dizer que ela faz parte de um único roteiro revisitado várias vezes. É um misto de Gata Borralheira com Pigmaleão, um conto de fadas com jeito de sonho americano que faz parte do DNA de Hollywood. É nessa tradição que Bradley Cooper, diretor estreante, se insere — ao lado de Lady Gaga — ao realizar um remake de Nasce Uma Estrela, o quarto da história do cinema.

Na nova versão da história, cujo roteiro Bradley Cooper assina junto Eric Roth (Forrest Gump) e Will Fetters (Um Homem de Sorte), o garoto atende pelo nome de Jackson Maine (Bradley Cooper), grande astro da música country, que após uma noite de bebedeira vai parar em um bar de drag queens onde se encanta por Ally (Lady Gaga) ao ver sua performance inspirada de “La Vie en Rose”. Desse momento até o clímax da primeira parte do filme, quando Jackson e Ally cantam “Shallow” no palco de um grande show, é impossível tirar os olhos da tela. O meet-cute do casal principal começa na boate, passa por uma briga de bar e vira um encontro no estacionamento do supermercado, onde Jackson se revela um príncipe rústico de inesperada delicadeza ao cuidar da mão de Ally — que havia socado um homem minutos antes — usando um pacote de ervilhas congeladas. Ela também está longe do ideal de princesa, seja numa versão glamourosa da fantasia ou ingénue à la Judy Garland, mas é cheia de charme com seu nariz enorme.

Observar os dois é hipnotizante, e nesse início o filme nos seduz com a mesma facilidade com que os dois protagonistas seduzem um ao outro. A câmera acompanha o nível do olhar de cada um e é sempre próxima, íntima, o que nos leva mergulhar na história sem muita resistência. É o efeito mágico e ao mesmo tempo confortável, familiar, que um filme de um grande estúdio sempre almeja alcançar, desses que te deixam até com vontade de comprar pipoca, mas com um olhar fresco para os lugares comuns da narrativa que parece vindo de um filme independente, moderno.

Quando Ally, que estava nos bastidores, é chamada de surpresa para cantar com Jackson, essa proximidade faz com que o espectador se sinta no palco junto com eles e perceba a dimensão daquele espetáculo não pelos olhos do público — uma plateia de verdade, vale dizer, já que as cenas de apresentação foram gravadas nas edições mais recentes dos festivais Coachella e Glastonbury — mas de quem está no palco sentindo todo aquele impacto, aquela energia. Quando seus vocais ganham confiança e Ally domina a canção “Shallow”, sem dúvida uma das grandes cenas e músicas de 2018, Nasce Uma Estrela também já conseguiu estabelecer o significado daquele momento na história da personagem em uma hora de filme que cobre pouco mais de um dia em sua vida.

Além de se apresentar no show de drags, Ally trabalha como garçonete depois de tentar a carreira como artista por meios tradicionais e ser dispensada por não ser bonita o suficiente e ter um nariz grande demais. Ela mora com pai, Lorenzo (Andrew Dice Clay), que trabalha como motorista para ricos e famosos e vive com a casa cheia de amigos, companheiros de profissão de uma vida inteira que tratam Ally como um bibelô. Ela não veste muito bem o papel de protegida, mas basta uma cena de poucos minutos na casa barulhenta para entendermos que a forma despachada como ela se comporta com eles também é cheia de carinho e muito cuidado, principalmente pelo pai. Ele, que também é um cantor frustrado, de início parece mais entusiasmado que a própria Ally com a aproximação de Jackson Maine, e é um dos grandes incentivadores para que ela largue tudo e saia em turnê com ele depois do sucesso da apresentação de “Shallow”. Os acontecimentos escalam numa proporção de conto de fadas quando garoto e garota partem juntos rumo a uma aventura por palcos espalhados pelos Estados Unidos, uma jornada que é também a narrativa do amor dos dois.

Nasce uma estrela

Nasce uma Estrela é fiel à rapidez com que as coisas acontecem no show business quando se tem timing, talento e influências a seu favor. Não demora para que Ally chame a atenção de agentes, produtores e gravadoras que desejam transformá-la na próxima artista do momento. Em meio a tantas possibilidades, ela contrata Rez (Rafi Gavron) como empresário e é aí que a coisa desanda — para o casal e para nós, meros espectadores, que de repente começamos a ver um outro filme que não é aquele que esperávamos ver, tampouco o mesmo registro intimista e charmoso que assistimos na primeira parte do longa.

Se no início Bradley Cooper conseguiu estabelecer muito bem quem eram seus personagens e o contexto em que estavam inseridos, na segunda metade ele perde completamente a mão no desenvolvimento da história. O roteiro acelera e a trama passa por grandes saltos temporais, em que num momento Ally está fazendo seu primeiro show e no seguinte ela já se apresenta no SNL, é indicada ao seu primeiro Grammy, e surge na tela com um cabelo pintado de laranja que ninguém entende. A mudança de ritmo não seria um problema se fosse acompanhada de algum desenvolvimento da personagem, que perde espaço e agência na história quando o arco de Jackson Maine toma conta da narrativa.

Jack e Ally se conhecem porque ele estava bêbado quando foi parar no bar de drags e não é surpresa quando seu vício em álcool e drogas continua a interferir no relacionamento dos dois e no resto de sua vida. Mas se no início do filme conhecemos uma Ally que disse que não sairia com ele se estivesse bêbado, com uma sugestão que o alcoolismo era algo que ela já conhecia de perto por conta do pai, é difícil aceitar a forma como ela passa a se anular diante do vício do namorado e, depois, marido. Não que não seja uma postura verossímil, uma vez que o relacionamento dos dois passa a emular uma dinâmica bem conhecida de gênero, onde de um lado está o homem alcoólatra — sendo o alcoolismo uma das doenças mais associadas à masculinidade — e do outro a mulher que acolhe, perdoa e cuida sem pedir nada em troca.

O problema de Nasce uma Estrela não é ter uma protagonista que toma decisões equivocadas, que cai nas armadilhas do patriarcado, ou que vive um relacionamento disfuncional. O problema é que o filme parece não se dar conta disso. Na segunda parte da história, conhecemos mais sobre a infância de Jack, suas relações familiares, seus problemas, os conflitos de sua carreira, e sua relação com a bebida e as drogas se constrói como consequência de tudo isso de maneira muito clara. A boa performance de Bradley Cooper vende com facilidade o alcoolismo como resposta a traumas nunca endereçados, e é possível estender a análise até como um retrato da socialização masculina, que dá pouco espaço para que homens lidem com seus problemas e sentimentos ao não permitir esse confronto com as próprias vulnerabilidades. Enquanto isso, Ally se reduz a uma representação opaca da mulher por trás do grande homem problemático, disposta a sacrificar tudo, inclusive sua carreira dos sonhos, em nome desse amor e sequer vive um conflito por conta disso. É como se ela fosse a mãe que ele nunca teve, numa representação igualmente rasa de maternidade abnegada a que tudo perdoa.

Como aponta Camille Castelo Branco em sua crítica, o problema de Nasce uma Estrela é deixar de fazer algumas perguntas essenciais para que a personagem se desenvolva: “Que tipo de socialização continua nos levando a maternar homens adultos? O que há na formação de mulheres que torna tão corriqueiro que consigamos abrir mão de nós mesmas em função de um homem? Por que uma narrativa sobre o apagamento da subjetividade e das ambições femininas por um homem continua a ser encarada como uma linda história romântica?” Sem essas questões, é como se o filme acatasse essa dinâmica como se ela não fosse um problema, ou como se ele sequer se desse conta do lugar em que coloca a personagem. Desse modo, Ally acaba inscrita em outro grande tropo bem conhecido, o das mulheres que desempenham esse papel diariamente, famosas e anônimas, dentro e fora de obras de ficção, e que não têm a complexidade de sua experiência reconhecida.

Nasce uma estrela

Se a intenção do filme não era falar sobre quem é Ally dentro desse relacionamento, Nasce uma Estrela também falha ao abordar sua trajetória no estrelato, premissa que dá título ao filme. Ao embarcar na carreira solo, fica claro que Rez, o empresário, tem planos para Ally que não são exatamente aquilo que ela imaginava e sua sonoridade e estética sofrem uma guinada pop e, novamente, a personagem parece ter pouca agência sobre isso.

Jack não está de acordo e não faz questão de esconder que não respeita a nova proposta artística de Ally, que a considera vendida, e isso já seria ruim o suficiente sem toda a dicotomia que o filme constrói desde o início entre a ideia de autenticidade e artifício, em que de um lado está o country e o rock de Jack e, do outro, o pop feito por Lady Gaga — ops, Ally. Isso nos leva a uma discussão profundamente rasa, datada e machista que coloca pouco ou nenhum valor artístico na música pop, um tema que a própria Lady Gaga já destrinchou em entrevistas e através do seu trabalho, e o fez de forma eficiente o bastante para que essa discussão seja considerada ultrapassada, e um clichê que o filme poderia ter aberto mão.

Nasce uma estrela

A escolha de Lady Gaga para protagonista de Nasce uma Estrela não é uma escalação qualquer. O papel de Ally não poderia ser interpretado por alguma outra atriz que soubesse cantar, porque o lastro que ela traz para a história enquanto Lady Gaga é o que torna tudo mais interessante, ou pelo menos poderia tornar. O mesmo acontece com Judy Garland e Barbra Streisand, que estrelaram versões anteriores do filme, como escreve Rachel Syme num perfil da artista para o The New York Times: desde sua primeira versão, Nasce uma Estrela é um filme sobre uma mulher que já é superfamosa estrelando um filme, e é por isso que a franquia funciona. O conforto do clichê em uma história de amor também se manifesta em uma jornada artística que você já sabe que será bem sucedida, pois não existe chance de uma personagem aspirante a estrela ser interpretada por uma mulher talentosa como Lady Gaga (ou Judy Garland, ou Barbra Streisand, ou Janet Gaynor) e não brilhar.

Portanto, não é possível esquecer que por trás de Ally está Lady Gaga, nem o filme deseja isso, e é o seu legado, e a inabilidade do filme em reconhecê-lo e explorá-lo, que faz com que assistir Nasce uma Estrela seja tão incômodo. Nascida Stefani Joanne Angelina Germanotta, até seu nome é uma performance. Bradley Cooper — ops, Jackson Maine — veria sua trajetória como pouco autêntica, enquanto no século XXI é consenso que essa maleabilidade, a forma como Gaga se apropria de gêneros e plataformas, é seu grande triunfo. Espero que os fãs da trilha sonora deem uma segunda chance para Joanne, álbum de 2016 em que Lady Gaga faz uma incursão ao country, uma proposta mais crua e autêntica, porém crua e autêntica de um jeito performático.

Enquanto Bradley Cooper pede pra que Lady Gaga tire toda a maquiagem para fazer o teste do filme, para que assim ele possa vê-la “de verdade”, sem artifícios, sabemos que a versão de cara lavada é apenas mais uma dentre as muitas coisas que a artista pode ser — como, inclusive, mostra seu documentário, Five Foot Two. É uma grande pena que o roteiro não saiba o que fazer com isso e talvez fosse mais fácil relevar essas falhas se não fosse pela atriz principal, que é simultaneamente o que faz o filme funcionar e o que expõe suas fragilidades.

Esse ponto cego de Nasce uma Estrela revela outros problemas na história: quando Jackson diz que quer ver o verdadeiro rosto de Ally por trás da maquiagem, ainda no bar de drags, o filme deixa escapar que também não entende a complexidade do que é ser drag queen ao contrapor Ally com suas colegas de show. A participação das drags na história foi mais uma das formas de inserir o universo pessoal de Lady Gaga na construção de sua personagem, o que foi feito de forma deliberada, mas quem é que está sendo homenageado aqui? O melhor amigo de Ally, Ramon (Anthony Ramos), também não tem espaço ou função alguma no filme além de apoiar e torcer pela protagonista, caindo no clássico estereótipo do melhor amigo gay. É como se Bradley Cooper quisesse modernizar o filme ao inserir personagens LGBTQ+, mas desumaniza essas figuras ao fazê-lo e mostra que desconhece a cultura que deseja retratar.

Nasce uma estrela

O sucesso de bilheteria e até mesmo de crítica de Nasce uma Estrela mostra que clichês sempre terão o seu lugar cativo no entretenimento. Assim como têm sido muito utilizados por minorias para ocupar espaços em histórias que antes lhe eram negadas, os clichês se tornam interessantes sobretudo quando são utilizados para olhar de outra forma o momento presente.

Bradley Cooper consegue isso na primeira parte do filme ao fazer com que uma clássica história de amor fosse vista de um jeito novo, mais íntimo e interessante. No entanto, o diretor parece inverter a lógica no desenvolvimento do longa, e enquanto Nasce uma Estrela contemporiza alguns elementos da história, o olhar sobre eles é a mesma perspectiva superficial, atrasada e limitada de antigamente, principalmente no que diz respeito a relações de gênero. Essa é uma história repetida que dispensaríamos de bom grado. The FameThe Fame Monster — que completa dez anos em 2019 — falam de fama, gênero e star system de forma muito mais sofisticada que Nasce uma Estrela, assim como Born This Way, e quem estiver interessado em um olhar contemporâneo sobre os temas pode trocar o filme pela discografia de Lady Gaga, e quem estiver em busca de romance é só ir direto para a faixa “Yoü and I”.

Nasce uma Estrela recebeu 8 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Atriz (Lady Gaga), Melhor Ator (Bradley Cooper), Melhor Ator Coadjuvante (Sam Elliott), Melhor Mixagem de Som (Steven Morrow), Melhor Canção Original (Lady Gaga, Mark Ronson e Anthony Rossomondo), Melhor Fotografia (Matthew Libatique), Melhor Roteiro Adaptado (Bradley Cooper, Eric Roth e Will Fethers).

2 comentários

  1. Ótimas reflexões!

    Agora sobre essa incursão da personagem no pop e a rejeição do namorado/marido, me passou a impressão de que o roteiro queria nos induzir a concordar com ele, ao mostrar a visão dele sobre o fato. Por isso, fiquei na dúvida se ela realmente “se vendeu” ou era isso que o filme queria fazer com que pensássemos, até percebermos que essa a visão reducionista de Jackson, o que não significa ser a verdade. Sei lá, ela poderia estar confortável com esse novo rumo da carreira, não? Ela só não cumpriu o que Maine esperava dela…

    1. Oi Carol!
      Também pensei muito sobre isso, se esse novo caminho era algo que ela desejava, aí revendo o filme fiquei pensando sobre a cena final. Ela volta com o cabelo pra cor natural e apresenta a música que ele escreveu pra ela, e naquela visita da clínica ele diz que queria que ele encontrasse “quando voltasse a ser o que era”. Acho que essa visão é a do Jackson sim, de que ela se vendeu e não estava sendo autêntica, mas a impressão que fiquei foi que esse é o ponto de vista do filme também, já que no fim da jornada da Ally ela “se encontra” com um estilo diferente.

      Obrigada pelo comentário 🙂

      beijos!

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