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Até que ponto o Estado controla o corpo da mulher?

“O corpo das mulheres é a última fronteira do capitalismo. (…) Imagine se as mulheres entram em greve e não produzem filhos, o capitalismo para. Se não há controle sobre o corpo da mulher, não há controle da força de trabalho.”Silva Federici em Calibã e a Bruxa

Silva Federici, é uma autora feminista-marxista, que estuda principalmente a questão da divisão sexual do trabalho; o trabalho exclusivo da mulher dentro da sociedade capitalista, entre outras reflexões. A ponderação trazida por Silvia no trecho anterior muito diz respeito ao assunto que será pautado nesse texto, ou seja, a questão do corpo, da mulher estar situada maquinalmente como alguém que produz a prole, gerando novos trabalhadores. Em outros termos, o corpo feminino é responsável por dar continuidade à lógica de produção de capital.

O Conto da Aia, de Margaret Atwood, foi publicado em 1985, no ápice dos Estados Unidos e do imperialismo cultural norte-americano. Sendo assim, a obra está inserida entre o pós-Segunda Onda Feminista e pouco antes do início da terceira onda do movimento, na década de 90. Na Segunda Onda, a grande demanda havia sido sobre os direitos reprodutivos e a liberdade sexual feminina. Também nesse contexto, existiram como Chefe de Estado o ex-presidente Ronald Reagan, um dos mais conservadores da história norte-americana e defensor da ideia de Estado Mínimo.

“A maioria das distopias — inclusive a de [George] Orwell — foram escritas por homens e o ponto de vista era masculino. Quando as mulheres apareciam, eram geralmente autômatos desprovidos de gênero ou rebeldes que desafiavam as regras do regime. Eu queria tentar uma distopia do ponto de vista feminino — o mundo de acordo com Julia, de certo modo.”My hero: George Orwell por Margaret Atwood

Atwood não precisou fabular ou fantasiar sobre os acontecimentos de sua obra, ela apenas reorganizou episódios verídicos em uma nova cronologia. Aqui está um ponto muito importante de sua obra, ao contrário de Nós (Evgeni Zamiatin) e 1984 (Orwell), por exemplo. Sendo assim, O Conto da Aia não se trata de uma distopia científica, mas de uma ficção especulativa. Além do mais, Margaret reverte o papel feminino em sua distopia, fazendo com que a mesma seja a personagem principal, ao invés de colocá-la apenas como contraste, como visto em “As Júlias de 1984 a 2022”.

Outro ponto importante para a análise é que, na obra, os Estados Unidos são um país totalitário e teocrático. É interessante pensar que, durante a colonização inglesa nos EUA, foram uma ala extremamente radical do protestantismo, que estavam fugindo da Reforma Protestante, que são os puritanos. Estes tinham uma grande preocupação com a castidade, com o controle do corpo feminino e com a sua vida sexual. Um dos casos a respeito da discordância dessa moral é o de Mary Webster, que foi torturada e posta na fogueira. Muito disso é visto no interior da obra e no contexto atual brasileiro (ano de 2022), visto que há um chefe de estado que usa de versículos da Bíblia, além de usá-la para disseminar seu ódio e, ainda com grande base religiosa, qualquer cristão que se oponha é perseguido e difamado por seus apoiadores.

Para explicar um pouco mais do contexto dos anos 90 e 80, o seguinte trecho de Eric Hobsbawm irá analisar o século XX:

“Na década de 1980 e início da de 1990, o mundo capitalista viu-se novamente às voltas com problemas da época do entreguerras que a Era de Ouro parecia ter eliminado: desemprego em massa, depressões cíclicas severas, contraposição cada vez mais espetacular de mendigos sem teto ao luxo abundante, em meio a rendas limitadas de Estado e despesas ilimitadas de Estado. (…) A destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores.” — Eric Hobsbawm em A Era dos Extremos

O Conto da Aia

Conforme dito anteriormente, as leis sociais serão dadas a partir da moral religiosa, ou seja, as leis patriarcais do Antigo Testamento. Como exemplo dessa afirmação, temos que, em O Conto da Aia, as mulheres são um grande ponto de controle, independente de seres esposas ou aias (concubinas, escravas sexuais). Elas não têm direito a propriedade, trabalhar ou ler. A prática da leitura é reservada apenas aos homens, estes que são justamente aqueles que criam as leis. Por consequência, se metade da população não possui o domínio da leitura, apenas os homens podem identificá-las.

Outra questão relevante é a problemática das “traidoras de gênero”, ou seja, a população LGBTQ+ não ser sequer levados para os campos de concentração radioativo, chamados de “colônias”. Estes serão torturados e aniquilados pelo sistema. Novamente, traçando um paralelo com a conjuntura brasileira, onde o chefe de Estado declara que “ter um filho gay é falta de porrada, a população se vê no direito de fazê-lo. Há também a frase da ministra Damares Alves, que muito se assemelha com Gilead, tanto no sentido literal, quanto figurado: as crianças possuem uma educação dirigida para seu gênero, ou seja, meninos seguem a educação formal, enquanto meninas aprendem artes manuais e cuidados com a casa. Na ideologia do governo brasileiro existem apenas dois gêneros e cada um possui seu papel.

“A dominação masculina é resultado daquilo que eu
chamo de violência simbólica, violência suave,
insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se
exerce essencialmente pelas vias puramente
simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou,
mais precisamente do desconhecimento, do
reconhecimento ou, em última instância do
sentimento.”Pierre Bourdieu

A partir do trecho de Bourdieu, entramos no tema de direito e/ou liberdade. Há a “Liberdade Para…” ou seja, uma ilusão de que a mulher é livre. Livre para fazer as tarefas domésticas, reproduzir e cumprir papel e funções sociais. Pensando na primeira onda do feminismo, quando a mulher não podia sequer votar, existe aqui uma falsa liberdade. Existe também a questão da “Liberdade De…”, ou seja, as aias são livres de ler, de ter liberdade religiosa ou de expressão. Elas não precisam se preocupar com isso. Estar livre de algo é uma liberdade negativa, uma proibição. Se estamos nós, mulheres, livres de algo, estamos sendo censuradas. Outra vez recuperando o Brasil atual, ainda que legalmente a imprensa tenha livre direito à informação, estamos constantemente sofrendo tentativas de privar o que nos é concedido por lei. Diversas foram as vezes que jornalistas foram agredidos verbalmente e fisicamente, além da difamação dos veículos de imprensa, e até mesmo a punição de funcionários por divulgar determinados dados. Há uma negação de fatos e o incentivo das fake news.

O Conto da Aia

A liberdade funciona para quem? Ela é coletiva? Não! Não há uma responsabilidade coletiva e social, há muito do “está impedindo minha liberdade individual”, “está inviabilizando meu direito de expressão”. A liberdade individual quase sempre cai na opressão de uma outra pessoa, ela parece ser positiva, mas muitas vezes desemboca no autoritarismo.

O Conto da Aia gradualmente nos mostra a perda de direitos, além da desinformação, sendo caracterizada pela censura de livros e proibição de leitura dos mesmos. No Brasil, a disseminação de fake news, o corte de verbas e o precário incentivo ao estudo, levam a aceitação do que é imposto e à domesticação, presentes na obra de Atwood. Outro ponto apresentado claramente pela autora é a dominação sobre o corpo feminino. A ferramenta de pôr aias com o mesmo traje permite a não identificação de quem é quem, há uma perda de subjetividade. Todavia, paradoxalmente, a não identificação permita a formação de uma tropa, que é o movimento que as aias fazem para retirar pessoas de Gilead e levá-las para o país fronteiriço.

A ideia da ficção especulativa é evidentemente muito interessante, pois a autora pega elementos presentes em nossa sociedade, palpáveis e faz uma síntese dos mesmos. Para mim, saber de forma mais explícita que vivo em uma sociedade em que todos esses elementos comentados estão presentes, estão ao nosso redor é espantoso, e ainda sim, com todo o terror, há muitas figuras de poder indo muito bem. Mas, a custa de quem? Acredito que já sabemos a resposta, mas preferimos não proferir.


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1 comentário

  1. A reflexão com uma ficção especulativa dessa época torna a realidade algo ainda mais questionável, as comparações com o Brasil são reais e trágicas, refletindo também muito o mundo no geral, ao meu ver isso só pode mudar através grande revolução, quebrando o capitalismo.

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